Fernando Dourado

Presidente Dilma Rousseff discursando.

Presidente Dilma Rousseff discursando.

I –  Despertar prematuro

Já passava das três da manhã quando o celular do Assessor Especial tocou à cabeceira e a voz gutural do Ministro reverberou, traindo extremo cansaço.

“Fizemos de tudo, mas a situação na última hora ficou insustentável. Nem queira ver os jornais que estão para sair. O documento está pronto? Venha para o Planalto agora, por gentileza. Aqui podemos dar os retoques finais.”

“Ministro, pode ficar tranquilo. Dentro de meia-hora estarei com vocês”.

“Não deixe vazar para ninguém, se me permite pedir. Ela está machucada e não quero que sejamos acusados de jogar a última pá de cal. Enquanto há vida há esperança”.

“Pode ficar tranquilo, Ministro. Vou relevar a ofensa, viu? Prefiro atribuí-la ao momento. Até já”.

Atordoado, mas movido a uma adrenalina inexplicavelmente boa, o Assessor tirou do armário um pequeno computador e colocou-o na pasta de couro. Bóris se agitou na cama e olhou-o atônito, revirando o lençol de seda, como se tentasse entender o que acontecia. Ele fez sinal de que continuasse dormindo. Com um aceno à distância, sinalizou que telefonaria mais tarde.

Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o Ministro cofiou a barba branca e mandou um sinal combinado para a esposa que estava na Bahia. O dia chegara, avisou em código que só o casal entenderia. Deixando o corpo cansado se esparramar sobre a poltrona, pensou em tomar um uísque com gelo. Mas logo desistiu. Iria ler o pronunciamento e, na sequência, tomaria um banho, talvez ali mesmo. Depois, talvez só um café forte. O dia prometia ser longo, isso era certo.

Quando a tarde daquela sexta-feira chegasse ao fim, ele estaria desembarcando do avião presidencial em Porto Alegre. Era o mínimo que poderia fazer. Riu sozinho da observação que um amigo gaúcho lhe fizera recentemente:

“Não sei se é pelo agravamento da crise ou não, mas tu estás cada dia mais parecido com o Samuel Wainer, tchê. Só falta tua chefe te chamar de Profeta, como fazia o velho Getúlio com ele”.

II-  A fonte

O motorista Dante guiava em Brasília há quase trinta anos. Natural de Oeiras, no Piaui, vivia em Taguatinga, mas tinha ponto no Setor Hoteleiro Norte, o que era um bom termômetro para saber a quantas ia a vida política na capital. Bom ouvinte, dizia que conhecer essa arte era o grande trunfo de um profissional da capital, onde quer que ele atuasse. Agora, depois de um dia dramático, ele entendia a conversa que tivera na tarde anterior.

“Escuta bem o que vou lhe falar, seu Dante”, disse a goiana Kátia quando entrou no carro, então parado à porta do hotel.

“Pode falar, filha. Quando foi que eu deixei de te ouvir?”

“Mas dessa vez a coisa é séria, viu? Escute só: se o senhor quiser ganhar muito dinheiro, passe num posto e tome uma latinha de energético pra virar a noite até onde der. E pra rodar muito entre hoje e amanhã. Essa cidade vai ficar pequena para o tanto de gente que vai chegar. Já soube até de umas meninas de Anápolis que estão chegando pra dar conta do movimento”.

Quando ouviu isso da boca bonita da moça de Catalão, Dante ficara de sobreaviso. Dificilmente incorria em erro e ele sabia que as fontes dela eram primárias, diretas e sem intermediário. Com aquela falinha musicada, ela arrancava de cada um o que queria. Especialmente de gente do Senado, sua especialidade e faixa de preferência.

Chegando ao destino, por trás da W3 Sul, ele ouviu dela o que já esperava:

“A corrida de hoje ficou por sua conta, seu Dante. Com o que eu acabo de lhe dizer, o senhor ganhará esse tanto multiplicado por cem, se for esperto. Vá lá e que Deus o proteja e sua família”, disse ela enquanto fechava a porta. Recitar as bençãos de despedida era um ritual que se tornava cada dia mais torturante. As fórmulas se distanciavam cada vez mais do ´até logo` de anos passados.

Efetivamente, as chamadas para ir do Plano Piloto ao aeroporto e vice-versa não dariam trégua pelas próximas vinte e quatro horas.

“Uns choram e outros vendem lenço”, pensou. Pelo menos dessa vez, ele estava do lado certo do balcão.

Mas ela tinha razão. Agora que o pior da tormenta parecia ter ficado para trás, ele afinal chegou em casa. Foi direto à geladeira; pegou uma cerveja; vestiu uma bermuda e, sem atentar muito para as perguntas da esposa, se sentou diante da televisão para ouvir pela terceira vez o discurso que escutara no rádio do carro no final da manhã daquela sexta-feira.

A última corrida que fizera fora de todas a mais enigmática. Um senhor jovem, meio embriagado, acenara da Praça dos Três Poderes e pedira a Dante que o levasse para o Lago Norte. Por três vezes, no espaço de quinze minutos, perguntou ao taxista a mesma coisa:

“O que o senhor achou do discurso?”

Ao deixá-lo em casa, um rapaz e um cachorro vieram recebê-lo no portão de madeira escuro.

“Faça um café forte para ele, mocinho”, disse Dante antes de tomar outro Red Bull para aguentar chegar a Taguatinga.

III –  O discurso de Dilma

“Povo brasileiro, Diz a sabedoria popular que tudo na vida tem começo, meio e fim. E é pelo fim que vou começar esse importante pronunciamento que faço hoje em cadeia nacional. Este que será, certamente, o último que dirijo às brasileiras e brasileiros como Presidenta da República. Assim, em consideração às inquietações que assolam todas as regiões do País e tendo em vista o compromisso supremo do Governante de balizar seus atos de conformidade com o bem maior da Nação, venho a público anunciar minha renúncia em caráter irrevogável ao cargo que tive a honra de receber do eleitorado por duas oportunidades.

Não pense quem me ouve nesse momento dramático de nossa História que cedo a pressões torpes ou que me apequeno diante das alegações insidiosas que pesam sobre minha pessoa e a de meu antecessor. Ora, para quem já resistiu com tenacidade às provações da ditadura, as aleivosias recém-saídas do forno da boca de indiciados e desequilibrados estão longe de abalar minha integridade moral e física. Tanto quanto permitem as circunstâncias, saibam todos que estou bem. Mas eis que agora esse conjunto perverso de forças que se revelaram más perdedoras, eis que agora, repito, elas querem denigrir a instituição mesma da Presidência. E isso eu não posso admitir.

Alguém já disse: numa negociação, podemos hipotecar tudo, menos a honra. Quero, e vou descer logo mais a rampa do Palácio do Planalto com a mesma dignidade com que a subi, ou seja, de cabeça erguida. Para o povo do Brasil – a única entidade a quem me sinto devedora nesse momento – saiba que nego e negarei sempre quaisquer das acusações maldosas que assaquem contra mim os detratores de ocasião. Saibam que tampouco vejo vício de qualquer ordem no processo eleitoral que me trouxe até aqui, como quiseram insinuar alguns. À custa de tanto repetir a mentira sórdida do financiamento indevido, o eco dela reverberou nos tribunais. Mas isso agora pouco importa.

Acho sim que estamos perdendo velozmente a capacidade de governar e o clamor das ruas já não dá margem a dúvidas de que o Brasil pede uma mudança. Se me compete arcar com o sacrifício, pois bem, que assim seja. Para complicar um quadro já tão deteriorado – muito embora eu insista em que estejamos legando um país muito melhor e mais inclusivo do que aquele que recebemos de nossos adversários -, os recentes acontecimentos que tiveram lugar no Congresso Nacional comprometeram o vigor do arco de aliança que regia nossa coalizão, logo a governabilidade. De ambas as Casas do Congresso ecoou o pedido de mudança de guarda a que hoje, com humildade, me rendo.

Em assim fazendo, procuro dar o melhor exemplo de desprendimento, na esperança de assim ser seguida pelos líderes do Legislativo. Nesse contexto de fatos, é bom que diga o quanto prezo o trabalho do Poder Judiciário. Não obstante o respeito que lhe devo, advirto que, liberada das nobres funções de que fui investida, me empenharei em demonstrar que são infundadas as alegações que recaem sobre o período em que ocupei o Palácio do Planalto ou mesmo sobre aqueles em que estive investida de outras funções. Além do mais, nenhum brasileiro ou brasileira está em condições de avaliar a pleno o intrincado jogo de poder que se trava diariamente nas mesas de Brasília – cidade que deixo logo mais, sem a menor intenção de aqui voltar um dia.

Tais complicadores, saibam todos vocês, decorrem em grande medida de nosso gigantismo territorial e populacional. Da complexidade da máquina pública. Das sucessivas crises internacionais que sacudiram o mundo. E, como deixar de admitir, dos desmandos que foram cometidos por altas instâncias partidárias no aparelho do Estado – tumor que minou as resistências de nossa economia a um ponto em que renovação hoje se torna inevitável para acalmar os mercados e restaurar a esperança. Agradeço, nesta hora, a todas as pessoas humildes que me contemplaram com carinho, apoio e compreensão até o fim desse ciclo que hoje se encerra. Foi para elas que tentei governar. A História dirá se consegui.

Quero também deixar lavrado meu agradecimento aos servidores da Presidência e a meu Ministério que, democraticamente, me acompanhou nessa renúncia. Do corpo ministerial, tenho uma gratidão especial à amiga Kátia Abreu com cuja compreensão e apoio sempre pude contar, especialmente nas horas dramáticas que marcaram este breve segundo mandato. Registro também os nomes de Aluízio Mercadante; de José Eduardo Cardozo e de Jaques Wagner. Sem vocês, o que hoje é doloroso poderia ter sido trágico. Isso dito, me despeço em definitivo. Que Deus ilumine os caminhos de meu sucessor em sua difícil missão de aglutinar a Nação em torno de um novo projeto. Que Deus ajude o Brasil. Hoje e sempre. Obrigada e adeus”.

IV –  A caminho de casa

No começo da tarde, quando todos estavam a bordo, o Comandante foi até a cabine presidencial e ainda perguntou: “A Senhora gostaria que sobrevoássemos a cidade a baixa altitude para uma despedida, Presidenta?”

“A Presidenta não está mais aqui, Agora eu sou mais uma Ex nesse País. Toque para Porto Alegre direto, sem sobrevoos desnecessários. Aliás, antes que eu esqueça: hoje o senhor pode furar as nuvens à vontade. Um pouco de turbulência vai até fazer bem”.

A seu lado, o Ministro de barba branca apalpou os bolsos. Fizera bem em levar dois lenços. Poderia ter que emprestar um logo mais. Em quinze minutos, o nariz do avião apontava para o sul, ganhando altura no céu azul que caracteriza aquele mês no Centro-Oeste.

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