Luciano Oliveira

Soube há coisa de um mês que um livro do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – comandante do DOI-CODI paulista entre 1970 e 1974 –, A Verdade Sufocada, estava na lista dos mais vendidos veiculada pela Folha de S. Paulo. Sendo pesquisador bissexto do assunto “tortura”, saí em busca do livro, que aparecia como esgotado. Tendo o coronel falecido o ano passado, pensei inicialmente tratar-se de um livro póstumo. Encomendei-o e, quando o recebi, vi que já estava na 11ª edição! Era um livro de dez anos atrás, já que sua primeira edição é de 2006. Como quer que seja, onze edições de um livro em dez anos de existência é um sucesso de público. No caso, notável, tanto mais que, ao longo desses anos, a grande mídia e a intelligentsia universitária não lhe deram a menor bola. E ainda que eu não seja exatamente uma amostra qualificada desse universo, o fato de só agora ter tomado conhecimento do livro sugere que sua carreira tinha sido até recentemente tanto subterrânea; ao mesmo tempo, sugere que personagens como Brilhante Ustra, até pouco tempo relegados às coxias de um auditório de “generais de pijama”, começam a aparecer no proscênio… Tenho medo de que tomem conta do palco.

Entendam. Um pesquisador não pode ser contra que os vencedores da “guerra suja” que houve no Brasil entre, digamos, dezembro de 1968 (quando se editou o AI-5) e dezembro de 1976 (quando parte da cúpula do que restava do PC do B foi massacrada na famosa “chacina da Lapa”), venham, com honestidade, contar sua versão da história. Mas versão é uma coisa; inverdade, outra. E o coronel Ustra, como já havia feito no livro Rompendo o Silêncio, de 1987, escrito depois que foi reconhecido pela então deputada federal Bete Mendes numa cerimônia pública como um dos seus torturadores – “em respeito a mim mesmo, no momento em que sou caluniado, achincalhado, vilipendiado, chamado de monstro” como ele mesmo reivindicou –, volta a escrever um relato daqueles anos no qual, acredite ou não o leitor, as torturas, execuções, desaparecimento de cadáveres e “suicídios” promovidos pelo regime militar não passam de “mitos, farsas e mentiras divulgadas para manipular a opinião pública”.

No livro de 1987, dizia ele: “É necessário explicar que não se consegue combater o terrorismo amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristas não eram cidadãos comuns”. Ok. Mas como eram então tratados esses cidadãos incomuns? O relato de Ustra sobre o que acontecia durante o “interrogatório” chega às raias do humor involuntário: “Os presos, ao serem interrogados, iam ‘entregando’, isto é, iam contando tudo a respeito de suas organizações”. E fim de papo. No livro de 2006, agora reeditado, Ustra repete o mesmo lero-lero. É verdade que ele estabelece uma diferença: “Guerra é guerra. Terrorismo é terrorismo”. Ok. E afirma: “Em nenhum lugar do mundo, terrorismo se combate com flores”. O leitor é então levado a pensar que, finalmente, ele vai dizer como eles foram combatidos. Nada. Ao relatar o que acontecia com os capturados, Ustra aferra-se a repetidas elipses que chegam a ser irritantes. Dou alguns exemplos: fulano e sicrano, “interrogados, entregaram o esquema” (p. 173); outro, “interrogado, […] ‘abriu o jogo’” (230); sicrano, “interrogado, indicou o lugar” (p. 299); beltrano, “quando interrogado, forneceu o endereço” (p. 351) – e por aí vai. A crer no coronel, as “2.541 pessoas” que estiveram presas no DOI-CODI paulista entre 1970 e 1977 (Marcelo Godoy, A Casa da Vovó, p. 482) passaram pelo que alguns de seus agentes chamavam de “açougue” (idem, p.19) sem terem levado sequer um cascudo… Assim, não dá!

O coronel Brilhante Ustra propõe ao leitor contar “a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça” – como informa o subtítulo do livro. Mas essa história já é conhecida. Ela foi contada, em primeiro lugar, pela própria esquerda, bastando lembrar a extensa literatura dos que pegaram em armas contra o regime e que, anistiados, deitaram no papel suas memórias. O livro paradigmático de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, é o melhor exemplo disso, pela enorme repercussão que obteve. Mas também Alfredo Sirkis, Álvaro Caldas, Betinho, Alex Polari, Daniel Aarão… – a lista é grande – não apenas escreveram sobre o “rabo de foguete” em que embarcaram, mas também fizeram um inequívoco mea culpa da opção pela luta armada e as ações que lhe eram inerentes: assaltos a bancos, sequestros, atentados a bomba, matança de vigilantes e simples policiais sem envolvimento com os torturadores etc. É o que faz Jacob Gorender no exemplar Combate nas Trevas, onde está dito com todas as letras que “a esquerda deve assumir a violência que praticou”. Isso, evidentemente, não justifica o horror inominável das câmaras de tortura do DOI-CODI do coronel Ustra, que comete a façanha de relatar uma história em que os “interrogatórios” parecem não ter passado de amenos bate-papos com direito a tapinha nas costas.

O mais incrível de tudo isso é que, mesmo que muito comedidamente, alguns oficiais superiores das forças armadas brasileiras vieram, se não fazer também seu mea culpa, pelo menos reconhecer, no âmbito de um projeto do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, nos anos 1990, que as torturas denunciadas em tantos relatos não são simples “mentiras”, como pretende Ustra. É o caso do general Adyr Fiúza de Castro, que não apenas admite como até defende a prática com certo entusiasmo: “não sou um homem mau, não me considero um homem mau. Mas não sou contra a tortura. Acho que ela é válida em certas circunstâncias. E todo mundo acha. Desde os esquimós até a China, todo mundo usa, quando necessário”. E o general Leônidas Pires Gonçalves, que foi ministro do Exército no governo José Sarney, também admite que ocorreram episódios de tortura, mas os atribui à iniciativa pessoal de um ou outro brutamonte: “Houve tortura? Houve. Mas quem pode controlar uma pessoa na ponta de linha que não teve uma educação moral perfeita?”. E é peremptório quanto à inocência dos altos escalões: “Agora, uma coisa eu tenho assegurado e asseguro historicamente: nunca foi política, nem ordem, nem norma torturar ninguém”.

A conversa do general Leônidas não se sustenta. Em 1995, aparentemente por um deslize da burocracia, um documento datado de 1971 e carimbado como “confidencial” do Gabinete do Ministro do Exército que estava no Departamento de Ordem Política e Social do Paraná foi parar no Arquivo Público daquele estado. O documento, intitulado Interrogatório, assume de saída que “o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a Justiça Criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações”. E continua: “para conseguir isso, será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. Mais claro do que isso, impossível. Até porque o ex-presidente Geisel, ouvido no mesmo projeto da Fundação Getúlio Vargas, reconheceu, com sua circunspecção habitual, a existência de tortura durante o regime que presidiu: “Eu acho que houve”. E chegou até a defender o seu uso: “Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!”. Certificado com uma chancela mais alta do que esta, impossível.

Entretanto, o coronel Brilhante Ustra, nem às vésperas de entregar a alma ao Criador, consegue, no que seria um gesto de contrição, reconhecer a verdade histórica num calhamaço de mais de 550 páginas que, aos trancos e barrancos, atravessei por dever de ofício. Como livro de história, A Verdade Sufocada é uma nulidade. Como documento histórico, tem uma serventia: é mais uma confirmação de que, dentro do que costumo chamar de sensibilidade moderna, a tortura é uma ação que, independentemente dos seus resultados, cobre de opróbrio aquele que a emprega. Nesse sentido, acho que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que Marcelo Godoy vê como um homem dotado de “complexidade” (p. 194), não foi simplesmente um sem-vergonha; talvez tenha sido, no fundo, um homem com vergonha

Mas se seu livro é uma nulidade, por que escrever sobre ele? Volto à preocupação, que destaquei no início, de que personagens como Brilhante Ustra – ou, melhor, o que ele representa – estejam adquirindo legitimidade na pólis um tanto desoladora que estamos vivendo. Um bom exemplo disso foi a homenagem que lhe prestou o deputado Jair Bolsonaro, em março último, no momento de votar pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ustra foi saudado como o “pavor de Dilma”. Anticomunista raivoso, Bolsonaro não é simplesmente um militar da reserva nostálgico do tempo de ditadura. Mais do que isso, ele vocaliza os excessos típicos da extrema direita. Suas pérolas incluem ataques às mulheres (a deputada Maria do Rosário não “merecia” ser estuprada), aos negros (um filho seu não cometeria a “promiscuidade” de se apaixonar por Preta Gil), aos direitos humanos (a parte da Constituição que os protege é uma “porcaria”), e por aí vai. O que preocupa é que não é apesar dessas e outras, mas por causa dessas e outras, que o deputado Bolsonaro tenha se tornado o pop-star de uma camada (quase escrevi cambada) de gente que hoje compõe um neofascismo larvar no Brasil. São eles, e não os comunistas, que hoje ameaçam nossa democracia.