Maduro no Brasil

Maduro no Brasil

“De quantas verdades se faz uma mentira?”. Esta é uma curiosa pergunta de um personagem de José Eduardo Aqualusa, no livro As Mulheres do Meu Pai. “De muitas”, ele mesmo responde. Parece alertar para a construção de narrativas convincentes com uma manipulação adequada de alguns eventos e dados reais com invenções e falácias maliciosas. Bem difundida, a narrativa torna-se uma verdade, pelo menos para os incautos e desinformados. Quando não, serve para a mobilização dos seguidores. O presidente Lula da Silva é um brilhante criador de narrativas, distorcendo ou exagerando informações para alcançar seus objetivos políticos. Uma ocasião, zombando da plateia que o tinha aplaudido em Paris, “Eu disse em Paris que aqui tinha 25 milhões de crianças na rua. Todos aplaudiam”. Algo parecido teria dito ao Papa e, depois de questionado por um assessor, respondeu com deboche que o importante era sensibilizar o líder máximo da igreja católica. Os dados sociais reais, que já são bastante dramáticos, interessam menos que os aplausos e as adesões. 

Recentemente, o presidente recomendou que Nícolás Maduro elaborasse a sua narrativa para contestar os fatos sobre o autoritarismo, a agressão aos direitos humanos e o desastre econômico e social da Venezuela. Numa entrevista, ele ainda foi mais claro, ressaltando que cada um tinha a sua verdade, “eu tenho a minha, você tem a sua”, disse para o entrevistador. As narrativas são as verdades que cada um deve inventar, de acordo com a sua conveniência, e propagar para acobertar a realidade incômoda, ou para mobilizar os seus fiéis seguidores. Foi o que Lula fez agora, quando, nos seus improvisos, comparando o massacre do exército israelense em Gaza, com a perseguição aos judeus pelo governo nazista da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. 

O que o governo de Israel está fazendo na Faixa de Gaza é um crime de guerra. No entanto, não tem qualquer semelhança com a estratégia racista de Hitler que levou ao Holocausto. Sim, trata-se de uma guerra. Por causa da virulência desumana dos ataques israelenses, não se pode esquecer que, desde a Faixa de Gaza, o Hamas empreendeu um ataque ao território de Israel, com mísseis jogados sobre as cidades, durante semanas. Isso é guerra, ações militares convencionais com armas ultramodernas para destruir cidades e, claro, matar cidadãos. Se não conseguiu mais destruição, foi graças ao sistema de defesa israelense. Mas a intenção era provocar destruição e morte (de civis e não de soldados), até porque o objetivo do Hamas é a eliminação do Estado de Israel. Além das atrocidades cometidas com civis, assassinatos brutais de cidadãos, estupros e sequestros, o Hamas abriu uma frente de guerra contra Israel quando lançou um bombardeio em massa sobre as cidades israelenses. 

A reação do Benjamin Netanyiahu ao ataque do Hamas está sendo muito desproporcional e é criminosa porque ataca, indiscriminadamente, o território de Gaza, destruindo as estruturas e matando milhares de civis, incluindo muitas crianças, e deixando o território arrasado. O que deve ser condenado como um massacre criminoso, está, contudo, muito longe de constituir uma estratégia de extermínio de um povo, como foi o Holocausto. A comparação do presidente Lula da Silva é absurda e descabida porque os nazistas implementaram uma estratégia para exterminar um povo. Se quisesse eliminar o povo palestino, Netanyahu poderia ter começado pelo milhão e meio de palestinos (17% da população total de Israel) que vivem, trabalham, votam e até têm representação no parlamento de Israel.

Para uma comparação histórica adequada, vamos para a Alemanha nazista. No inverno de 1942, por ordem de Heinrich Himmler, dirigente da SS, o segundo escalão do governo e do partido nazista da Alemanha se reuniu num casarão às margens do lago Wannsee, em Berlim, para definir a estratégia nazista denominada de Endlösung (solução final da questão judaica). Estimavam que os judeus eram cerca de onze milhões de pessoas na Europa e que a estratégia deveria eliminar completamente a presença desta “raça” no continente europeu. Não conseguiram, não tiveram tempo, mas mataram seis milhões de cidadãos judeus que não estavam em guerra. Caçaram judeus nas casas, nas ruas e sinagogas, jovens, crianças e idosos, intelectuais, cientistas, profissionais liberais, comerciantes e operários, executando ou levando para o extermínio em campos de concentração. Não era uma guerra, era uma perseguição racista para exterminar um povo inteiro que vivia na Europa. Nada parecido com o crime de guerra de Israel, que, se merece uma comparação, melhor seria identificar as semelhanças com a invasão da Rússia à Ucrânia, bombardeando sistematicamente as cidades, destruindo hospitais e escolas e matando civis e provocando a saída em massa de ucranianos das suas cidades.

Quando compara a virulência do ataque de Israel na faixa de Gaza à perseguição racista de Hitler, Lula distorce os fatos, manipula os eventos históricos, constrói a sua narrativa para impressionar os seus seguidores e despertar simpatias pelo mundo afora. Enfiando o dedo na dolorosa e sensível ferida dos judeus, Lula provocou um desnecessário conflito diplomático e ainda ajudou Netanyahu e se apresentar ao mundo como vítima de antissemitismo. Além disso, quando compara o crime de guerra israelense com o Holocausto, ele termina amenizando a dimensão do terror dos nazistas na brutal e desumana estratégia de extermínio de um povo. 

Com a violência desta guerra, a solução política da crise palestina, que deve passar, necessariamente, pela constituição de dois Estados, fica cada vez mais distante e difícil. O governo direitista e agressivo de Israel não aceita a formação de dois Estados, tendência que se fortaleceu depois da agressão do Hamas. E o Hamas nunca considerou a hipótese de dois Estados, tendo sempre defendido a destruição do Estado de Israel. A constituição dos dois Estados, como solução consistente do conflito, será possível apenas quando Israel afastar Netanyahu do poder e quando surgirem novas lideranças políticas dos palestinos. Por isso, quem defende com convicção a solução dos dois Estados deve criticar duramente o governo criminoso de Israel, mas não pode defender o grupo do Hamas. Defender o povo palestino atacado violentamente pelo governo israelense não significa apoiar o Hamas e sua estratégia e ações voltadas para a destruição do Estado de Israel. 

Mais uma vez, a incontinência verbal de Lula confunde mais que esclarece, neste caso, dificulta a construção da paz que ele diz desejar. Ou alguém acha que o virulento primeiro-ministro de Israel vai recuar da sua agressão a Gaza porque Lula foi tão contundente na sua crítica, tão duro que comparou a sua guerra com o plano racista de Hitler? A comunidade internacional deve condenar com veemência o crime de guerra que está sendo praticado pelo governo de Israel e deve levar Netanyahu ao tribunal de Haia. Mas confundir este crime de guerra com a estratégia nazista de extermínio dos judeus fragiliza os próprios argumentos políticos e morais em favor de um acordo para a formação dos dois Estados.