Homero Fonseca

Recorte de Mudança de Sertanejo - J. Borges.

Recorte de Mudança de Sertanejo – J. Borges.

Passado quase um mês dos festejos juninos, algo continua ecoando na minha cabeça e não é o estrondo dos rojões. É uma palavra, uma mísera palavra, que, todo ano, por essa época, martela meus ouvidos sem dó nem piedade. Insidiosa, ela está no título de uma das festas mais noticiada e propagandeada do Recife, o São João da Capitá.  Obviamente, estou me referindo à corruptela da palavra capital. Basta ligar a tevê e, na propaganda e no noticiário, personagens, apresentadores e apresentadoras não cessam de convocar, risonhos,  para o tal São João da Capitá.
Lamento informar, mas esse arremedo de um pseudofalar matuto é uma manifestação explícita de preconceito linguístico.  É o uso do que os linguistas chamam dialect eyes (dialeto dos olhos), uma imitação da fala por sinais gráficos, como define a professora Nelly Carvalho.
Todos sabemos que falamos de um modo e escrevemos de outro. As duas formas têm características diferentes e usos diversos. A comunicação oral se dá em contextos mais informais e agrega elementos outros, como o tom de voz, as inflexões, os gestos, o contexto etc.
Já comunicação escrita é reservada para ocasiões mais formais: lembretes, ofícios, inquéritos, cartas de amor…
Numa, a prosódia é naturalmente um pouco desleixada. Na outra, o texto se obriga a seguir as convenções gramaticais.
Então, é complicado transcrever a fala no texto escrito, isto é, codificar sons em sinais alfabéticos. Normalmente só se faz isso quando se tenta registrar a fala popular. E sempre lançando mão de corruptelas: capitá, dotô, frô, poliça.
Isso não ocorre quando se trata da transcrição da fala de pessoas letradas, apesar de, normalmente, todos pronunciarmos de forma diferente o que está escrito, quando num contexto informal, isto é, a maior parte do tempo. A pronúncia correta fica guardada para ocasiões solenes: discursos, depoimentos, relações de trabalho.
É só prestar atenção. Na fala nossa do dia a dia, dizemos mais ou menos assim: ele é baxinho”,  “ela amô o presente”, “tô indo”. Difícil alguém, conversando com amigos e conhecidos, encher a boca com o i de baixinho,  o r de amor ou ou de estou. Também é comum usarmos na fala corrente o pronome pessoal ao invés do oblíquo em frases como “eu vi ele chegar” (só os pernósticos vivem tascando a três por quatro “Eu o vi chegar” ou, pior ainda, “vi-o chegar”).
No entanto, quando esses diálogos de pessoas letradas são transcritos nos jornais, na literatura, em cartas, em propaganda, nunca são grafados como falamos e sim como escrevemos… Nada de “ele é baxinho” e sim “ele é baixinho”.
Já quando reproduzimos diálogos de matutos, operários, empregadas domésticas, camelôs, eles são recheados de “erros de ortografia”.
Por que agimos assim? Por que não grafamos capitau (que é como as pessoas cultas pronunciam no Brasil a palavra capital, quando o correto seria empregar o ele palatal)?
Por uma questão de hierarquia social. As pessoas que dominam a chamada norma culta da língua são vistas, e se vêm, como culturalmente superiores aos analfabetos e semialfabetizados. Por isso, usam o dialect eyes na reprodução escrita da fala do povo, assim como arremedam – ou seja, imitam de forma caricatural, distorcida, zombeteira – o “idioma matuto”.
Esse sentimento de superioridade é disfarçado em “simples gozação”, “brincadeira”, “zoeira”. Mas como não se faz o mesmo com os “citadinos cultos”,  está caracterizado o preconceito.
O poeta Manuel Bandeira já levantava a lebre dessa questão em seu célebre poema “Evocação do Recife”, de 1925, nos versos:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo…

Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, dois dos gigantes da literatura brasileira, escreveram suas obras a partir do universo sertanejo, mas ao transcreverem as falas de João Grilo ou Riobaldo Tatarana em nenhum momento apelam para o dialect eyes, por total respeito aos seus personagens. O sotaque sertanejo está implícito no vocabulário peculiar das respectivas regiões (grafado corretamente), na construção sintática das frases e em outros recursos. Leiam ou releiam O Auto da Compadecida ou Grande sertão: veredas. Eu cegue se encontrarem nessas obras-primas algo parecido com São João da Capitá.

E A POESIA MATUTA?

Resta o problema da chamada “poesia matuta”, majoritariamente recitada “na língua errada do povo”. Do grande Catulo da Paixão Cearense ao midiático Jessier Quirino, passando pelos geniais Patativa do Assaré e Zé da Luz e outros menos votados como Pompílio Diniz e Chico Pedrosa, todos lançam mão desse artifício que dá um sabor especial aos seus poemas. O problema está na transcrição, ou seja, nos livros que publica(ra)m, onde se repete a escrita no estropiado dialeto ocular.
Todos são tidos – com razão – lídimos representantes da poesia popular. Mas como, se todos redizem o linguajar dos preconceituosos?
Confesso ser um pouco complicada a questão, possivelmente a exibir estudos de maior fôlego por parte de autores mais preparados. Mas ouso algumas considerações: o preconceito, seja linguístico seja racial, sexual ou de qualquer outra natureza, é um fenômeno eminentemente social. Instala-se numa determinada cultura como algo “natural”.  Assim, boa parte das pessoas não percebe claramente estar imersa nessa situação. Tanto que poucos se declaram abertamente preconceituosos. É muito comum se ouvir a frase: “não sou preconceituoso, mas…”. Infalivelmente, após a adversativa “mas” vem um comentário carregado de preconceito até os gorgomilos.  Esses poetas maravilhosos com certeza não se considera(va)m preconceituosos, mas…
Outro dado a observar, de igual complexidade, é o público consumidor da poesia matuta. Não conheço pesquisas sobre isso, mas desconfio que é majoritariamente, pelo que vejo em recitais, concursos e outros eventos, formado por gente urbana, interiorana ou não. Esse gênero poético, como o repente, o coco, a embolada e o cordel, tem seus apologistas: são fazendeiros, advogados, funcionários públicos, comerciantes, poetas. Formam uma verdadeira comunidade, que prestigia, divulga, financia parcialmente e até acompanha seus ídolos em apresentações mundo afora. São importantíssimos para a preservação mais ou menos intacta das diversas formas de arte popular.  Todos são letrados, alguns intelectuais. Esses grêmios, conservadoras por natureza, são um contrapeso à enorme pressão da cultura de massa, da indústria cultural, por uma globalização pasteurizada. Desconfio que sua admiração pela cultura do povo tem um certo viés paternalista, comum e polêmico entre os folcloristas.
Um exemplo de como isso funciona: Vitalino inicialmente pintava seus bois e cenas matutas com as cores berrantes tão do gosto do povo. Famoso e objeto do desejo de colecionadores de todo o mundo, passou a ostentar em suas peças a cor natural do barro – alguns estudiosos consideram haver sido uma imposição dos meios cultos empenhados em “preservar a pureza da arte popular”. O barro sem pintura dá o toque exótico de rusticidade.
Dialeticamente, entretanto, essa exigência não poupou a temática, que, à sua revelia, passou a refletir uma interação inevitável com o mundo urbano, retratando  dentistas, advogados, fotógrafos, cirurgiões, locutores de rádio, repórteres de televisão, ao lado de retirantes, caçadores, casamento matuto etc. Não à toa, a primeira edição de Brasil caboclo tem o título escrito assim mesmo e é assinada por Andrade Silva e entre parênteses Zé da Luz. Ou seja, um simples pseudônimo do autor. Depois é que se firmaria o personagem Zé da Luz, com o sucesso retumbante no programa “Mensagem para o rancho” do irmão dele Bastos de Andrade, na Rádio Tabajara, resultando na alteração do título, em edições posteriores, para Brasí cabôco.)
Outro aspecto relevante é a origem e a formação desses poetas. Ao contrário do que reza a lenda, a maioria (a quase totalidade) é letrada. Muitos, é verdade, mal completaram o antigo curso primário, mas se tornaram autodidatas e leitores vorazes. O maranhense Catulo da Paixão Cearense foi professor, dono de colégio, tradutor de alta poesia francesa (Lamartine) e viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Zé da Luz era alfaiate e morou em Campina Grande e no Rio. Patativa do Assaré, o mais próximo da imagem idealizada do poeta-camponês, também mal fez as primeiras letras, mas lia Juvenal Galeno, Passos Guimarães, Olavo Bilac, Machado de Assis, Castro Alves,  Graciliano Ramos e…Camões. Chico Pedrosa foi vendedor-viajante de peças de automóveis e, embora nascido num sítio, circulou a vida inteira pelas cidades de todo o Nordeste, inclusive as capitais. Jessier Quirino é arquiteto. Todos fizeram/fazem sucesso em meios urbanos, inclusive na antiga capital federal, onde Catulo era um astro-pop e declamou e cantou no Palácio do Catete para o próprio presidente da República Hermes da Fonseca, a convite da primeira dama Nair de Tefé, caricaturista, mulher avançadíssima para a época.
Todos dominavam, em graus variáveis, a chamada norma culta da língua. Muitos, inclusive Zé da Luz e Patativa, escreveram poemas em linguagem vernácula. Estudiosos de visão paternalista sobre o folclore, como Câmara Cascudo e epígonos, criaram o mito do artista bronco, puro, analfabeto, vivendo nas brenhas, alheios ao progresso e infenso às mudanças. Isso pode ser verdade para um outro vaqueiro aboiador, um ou outro poeta. Está longe de corresponder à maioria que integrava, digamos assim, a elite intelectual do povo (este sim, inglório e inculto). E fizeram/fazem questão de publicar em livro.
Parece-me, portanto, ser um desserviço (certamente involuntário) classificar esses poetas como portadores de uma linguagem simples, de uma poesia singela e coisas que tais. Se prestarmos atenção, veremos que sua poesia nada tem de simples, nem direta, nem de qualquer outro adjetivo reducionista. Suas obras costumam ser altamente complexas, com ritmo impecável e a construção de imagens sofisticadas e surpreendentes. (Só um exemplo: Fabião das Queimadas, dado por analfabeto por uns – a maioria – e semialfabetizado, por outros, em seus poemas taurinos alcança a voltagem poética de um Garcia Lorca, apesar de o mestre Cascudo “atribuir-lhe uma “doce ingenuidade, de graça comunicante e viva”.) E é de Zé da Luz uns dos versos mais belos da língua portuguesa (como Bandeira disse de Orestes Barbosa a propósito de “Chão de Estrelas”), em As flô de Puxinanã:
Os ói dela paricia
duas istrêla tremendo,
se apagando e se acendendo
em noite de ventania.
Quanta musicalidade, que imagem vigorosa e bela! Agora, imaginem escrever corretamente apenas quatro palavrinhas dessas aí de cima: flores, olhos, pareciam, estrelas. Versos perfeitos que orgulhariam qualquer poeta “erudito”.
O detalhe é que esse tipo de poema é uma delícia de ouvir. Ou seja, toda a dita poesia matuta fica muito bem encaixada na sua oralidade. O problema é a transcrição alfabética.
Falei.