Aécio Gomes de Matos

Repressão contra manifestação de estudantes em 1964.

Repressão contra manifestação de estudantes em 1964.

Tempos estranhos estes, onde a família de um jovem morto tragicamente pelos militares no meio de uma manifestação pacifica de 1º de abril de 1964, usa dos meios de comunicação para denegrir o nome do nosso companheiro de sempre, ora Senador da república, Cristovam Buarque, um dos que estavam na frente dos manifestantes, correndo os mesmos riscos de ser morto.

Foi chocante para mim, ler um manifesto assinado pela “Família Aguiar” acusando Cristovam de ter “desonrado a memória dos mártires da democracia ao citar os dois estudantes mortos”, Jonas Barros e Ivan Aguiar em discursos no Senado, ao defender sua posição política. Tudo isso porque Cristovam, ao citar os dois como símbolo da luta contra o Golpe de 64, teria traído suas origens de esquerda. Ao se posicionar pelo impeachment de Dilma Rousseff, ato considerado por eles como um golpe de estado contra a democracia, seria cúmplice de um golpe de estado contra uma presidente eleita e seu partido, o PT. Citou Cristovam como um parlamentar “que traíram suas raízes, vão merecer no máximo uma nota de rodapé no panteão onde figuram Calabar, Silvério dos Reis e Cabo Anselmo”

Vou dividir minha resposta a esta “família” e a outros figurantes da ribalta que se julga de esquerda, em dois momentos complementares. Primeiro, sobre o maniqueísmo “esquerda e direita” que sobrepuja essa atitude; depois colocando o foco sobre as diferenças entre abril de 1964 e os dias de hoje.

Antes de mais nada tenho que falar da minha dificuldade para entender este quadro maniqueísta que domina as relações políticas no Brasil, desde que a corrupção pôs a carapuça nas figuras mais simbólicas da política populista do marketing partidário que dominou o Pais nos últimos dez anos. Posturas antagônicas colocaram em lados opostos pessoas com as quais convivemos durante os anos de combate à ditadura militar, construindo uma concepção ética e democrática da sociedade, com as quais estabelecemos políticas e amizade sinceras e duradouras. Tão fortes eram essas relações que, em situações diversas, as divergências eram vistas como construtivas, na perspectiva da dialética marxista que todos tínhamos. Base filosófica da minha racionalidade até os dias de hoje e que orientam minha reação aqui exposta.

Tenho dado tratos à bola para entender o que está havendo. De repente, o que era contradição construtiva vira antagonismo positivista; maniqueísmo de posições sem respaldo ideológico minimamente consistente; religiosidades corporativas sem base espiritual. Esquerda e direita, à falta de referências minimamente consistentes, se transformam em mortadelas e coxinhas. Um ultraje à dignidade que se poderia esperar da política com o mínimo de ética e democracia.

Colocar Jonas e Ivan contra Cristovam no contraponto de um mísero argumento, contaminado por este antagonismo barato, aumenta minha indignação e me traz de volta ao texto que publiquei há algum tempo sob o título “Adolescência Interrompida”, onde  me referi ao fato de Jonas ter morrido nos meus braços, num jipe a cominho do Pronto Socorro. Estávamos todos lá, na Dantas Barreto, com a dignidade da juventude, inclusive o próprio Cristovam, que poderia ter morrido também. Colocar aqueles dois companheiros adolescentes de um lado, ou do outro, para reforçar uma posição antagônica neste maniqueísmo pervertido, é que me parece desrespeitoso.

E o que dizer do argumento do golpe contra Dilma e contra os petistas que envergonham até mesmo seus próprios companheiros, muitos dos quais já deixaram o partido. Como comparar um processo de impeachment desenvolvido dentro dos princípios legais sob o controle da nossa Corte Suprema (o STF), a um golpe contra a democracia. Para uma lógica minimamente racional diante desta postura maniqueísta, estou aqui a lembrar-me do que se considerou golpe naquele 1º de abril de 1964, um movimento violento urdido pelas forças oligárquicas, com um decisivo apoio militar e orientação da CIA, esta última, preocupada com a repetição da experiência cubana a partir das reformas democráticas que se esperava do governo Goulart, o vice-presidente que assume depois da renúncia de Jânio Quadros.

Além da violência, o golpe representou a quebra de um projeto político com as reformas de base que estavam sendo programadas, reestabelecendo o presidencialismo, limitando os subsídios das multinacionais, nacionalizando o petróleo, iniciando uma reforma agrária, estendendo aos trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos. O comício da Central do Brasil, realizado em 13 de março de 1964, reunindo mais de 150 mil pessoas, foi o marco do apoio popular às reformas e, ao mesmo tempo, estopim da resistência conservadora que se refletiu simbolicamente na “marcha da família com Deus pela liberdade”.

Nos dias de hoje, o povo está indo para as ruas pedindo a saída de um governo que assumiu com base em estelionato arquitetado por marqueteiros que já se declararam culpados; luta-se contra um governo que aparelhou o Estado visando um projeto de poder perverso, engendrado e operado por figuras corruptas, muitos dos quais já estão na cadeia.

Como se pode chamar de golpe um processo que vem sendo conduzido dentro da lei e sob os auspícios do Supremo Tribunal Federal. Como se pode difamar um político mais coerente e horado da nossa república com motivações tão torpes como a defesa de um governo que vem afundando o País num mar de corrupção.

Temos que refletir muito para analisar e compreender esses rompantes de gente séria que terminam destrambelhando suas percepções do mundo da vida em nome de uma lógica pervertida pelos grandes vilões da nossa história. Que nos guarde o judiciário e a própria mobilização social que se intensifica no País em torno de movimentos como <ética-edemocracia.org>.