Uma frase do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein sobre o poeta Georg Trakl, seu conterrâneo, tornou-se famosa. Disse ele: “Não entendo a poesia de Trakl, mas me deslumbra, e não há nada que me dê melhor a ideia de gênio”. Quando um gênio fala de outro, prestemos atenção cá da nossa planície humana. Talvez sobre a poesia da argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972) se possa dizer algo semelhante. Como Trakl, que se matou aos 27 anos, a poetisa suicidou-se muito jovem, com gigantescos 36 anos. Se viva fosse, completaria, neste 29 de abril, uma respeitável idade: 85 anos. Ocorre que um dia ela anotou e cumpriu uma irônica e sinistra agenda: “Não esquecer de suicidar-se”.

Num artigo sobre Pizarnik, publicado em seu livro “À mesa com o chapeleiro maluco”, o também argentino Alberto Manguel, bem conhecido dos brasileiros, nos fala que seu estilo é “ascético” e “exigente”. Com certeza, como a poesia de Trakl para o filósofo das “Investigações Filosóficas”, sua poesia deslumbra, mas nos deixa igualmente de cara com o incompreensível: algo “exigente” parece nos reclamar uma nova espécie de leitura, na qual as elipses traduzam, em negativo, um universo oculto e sombrio.

Enganar-se-á quem acreditar ou entender que a poetisa fica no domínio do confessionalismo, o que é sinal certo de mediocridade literária. Será talvez importante saber um pouco do seu processo de criação. Manguel, acima citado, nos dá uma luz para entendermos as sombras. Diz ele que Alejandra Pizarnik possuía um quadro-negro em que escrevia seus curtos poemas e, dia após dia, ia descartando e substituindo palavras para só então, depois de muito mexer, passá-los para um caderno. Aos poemas, com perfeccionismo e rara humildade, chamava de “aproximações”. Aproximações a esse incognoscível que está algures e que é o próprio e estranho sopro da poesia.

Quem lê seus poemas mal se dá conta daquele processo torturante, mas percebe ou simplesmente intui, por trás de uma malha de sentidos, uma visão unitária que os atravessa. A consciência de quem trabalha com a logopeia e a fanopeia poundianas. Elegíaca e contundente, sua poesia é uma tristeza que se dobra sobre si mesma. Temperada com algum surrealismo, ela lembra o próprio expressionismo de Trakl, além de um tônus que vem em linha direta do simbolismo e de Rimbaud. Sempre contida por elipses, ela insinua, por entre cortes ácidos, uma profundidade atenta como se as palavras fossem pontas de mistério ou lâminas de uma solidão tão pura quanto glacial. À parte isso, talvez valha a pena saber que, como Proust, também era maltratada por uma terrível asma. Mas, além da asma, sua depressão deve tê-la ajudado na criação artística, o que não é raro em certa família de escritores.

Não duvido de que, guardadas as devidas diferenças, a poesia de Pizarnik tenha a mesma “vibe” de muitos poetas jovens e contemporâneos que praticam e traduzem, com maior ou menor êxito, não só a concisão, como também as incisivas epifanias da sensibilidade. Falo, é claro, dos jovens que têm talento para ir além da epiderme de uma subjetividade exasperada.

Parodiando Wittgenstein, não entendemos a poetisa, mas ela, paradoxalmente, nos encanta e nos leva a secretas moradas da alma. Ela nos exige várias voltas aos seus textos e nos convida a um estranho convívio. Faz um feitiço de sombras e de angústias, mas sempre com a geometria de uma inteligência profunda. Não por acaso subiu aos altares prestigiosos da literatura argentina e da poesia em língua espanhola.

Termino com ela própria: com dois poemas seus tão amargos quanto lapidares, na tradução de Davis Diniz.

 

Encontro

Alguém entra no silêncio e me abandona.

Agora a solidão não está a sós.

Tu falas como a noite.

Te anuncias como a sede.”

 

Festa

Eu desdobrei minha orfandade

sobre a mesa, como um mapa.

Desenhei o itinerário

para meu lugar ao vento.

Os que chegam não me encontram.

Os que espero não  existem.

 

E bebi licores furiosos

para transmutar os rostos

em um anjo, em copos vazios.”