I
Mal chegou a Londres, Catherine ligou o telefone. O avião ainda deslizava na pista quando, ao deparar a tela iluminada, ela comprovou que acontecera o pior. Efetivamente, e por fatalidade, era bem possível que tivesse destruído uma parte boa da vida. E tudo isso por causa de um equívoco simples. Logo ela, tão ciosa de sua esperteza, acumulada ao longo de anos tateando as sombras e inventariando as manobras solertes de casais de ocasião. Melhor, portanto, contar os fatos do começo. Minutos antes de decolar de Bruxelas, portanto há menos de uma hora, Catherine digitara a tecla errada do “in-box”, o comando de mensagens pessoais do Facebook. Estava, pois, devastada pois agora era tarde para corrigir o mau passo. Já não havia manobra heroica a executar, salvo tentar convencer Bernardo Khaled de que a situação relatada era muito trivial. E de que ela não lhe mandara a mensagem incriminatória por descuido, e sim de caso pensado. Precisava assumir ares de quem apenas compartilhara um boletim meteorológico. Será que funcionaria? A verdade é que, jurando que passava a mensagem para Paulette Keller, amiga e confidente, ela terminara por admitir ao amado que se dirigia à capital inglesa com um propósito bem específico e, convenhamos, pouco publicável. A Baronesa Catherine de Ravenstein já não era tão boa em urdir diabruras.
II
No longínquo Peru, se é que ainda existem grandes distâncias nesse mundo interconectado, Bernardo Khaled ria com gosto do depoimento do educador Marco Contreras que, famoso pelas análises sociológicas algo estapafúrdias, soltava o verbo num animado debate televisivo. Seu alvo dessa feita era a juventude contemporânea. Como discreto contendor, tinha ninguém menos que o cozinheiro e empresário Gastón Acurio, o homem que popularizou a culinária do país mundo afora. De bom humor, Bernardo bebia as palavras do cientista que, sem cerimônias, provocava o ícone da gastronomia. E lhe dizia que os jovens aprendizes de chefe de cozinha que regrediam nos programas de culinária de TV a ponto de chorar diante das invectivas dos jurados, eram apenas crianças que, criadas sem limites por pais despreparados, só deparavam a vida como ela era diante dos fogões, na falta de ter tido mães de verdade. Pois estas, tomadas pela culpa de ter deixado o lar para trabalhar, os tinham estragado. Nesse instante da prédica do professor, o telefone de Bernardo acusou o recebimento de uma mensagem. Era possível que fosse algum amigo a recomendar que sintonizasse o canal a que assistia, mas resolveu lê-la. Ora, Catherine, no afogadilho da adrenalina, teclara Khaled, e não Keller. O recado desaguara portanto em Bernardo Khaled, e não em Paulette Keller: “Gosto da ideia de passar uns dias em Londres, mas não tinha planos precisos. A ocasião se apresentou. Eu decidi ontem e peguei a passagem hoje cedo. Para você eu posso confiar a verdade. Vou ao encontro de meu ex lover de Dublin. Beijinhos”. O peruano a leu e, se mantendo atento à televisão, digitou duas linhas à guisa de resposta.
III
Catherine então visualizou o comentário sucinto que saltava da pequena tela, este inequivocamente endereçado a ela . “Minha cara, sua atitude é simplesmente enfermiça. Inspira compaixão. Quem te fala é o amigo, não mais seu amour. De qualquer forma, divirta-se com Pavel e, ao voltar para casa, procure tratamento psiquiátrico. Faça-o nem que seja por seu filho. Adeus”. Portadora de um cartel de relações extraconjugais de que se orgulhava, a verdade é que Catherine de Ravenstein ainda tentou fazer uma manobra extrema. Ao lado da esteira de bagagens, digitou em francês: “Bernardo, meu amor. Jamais quis te esconder nada e sequer tenho porque fazê-lo. Não há absolutamente nenhuma razão para quaisquer reações enciumadas. Meu encontro com Pavel se prende a um ataque nostálgico. Na verdade, se deve à promessa que fizemos um ao outro de tomar um chá na Harrod’s quando de nossos 60 anos. Você esqueceu que te amo e que vamos viver numa casinha em Arequipa? Diga que está de acordo”. Bernardo riu com tristeza, balançou a cabeça, mas voltou os olhos para a televisão enquanto se servia de um drinque para celebrar o fim de uma etapa. O professor continuava a pregar seu bizarro evangelho. “Ora, esses jovens, com os radares bem ligados, flagraram a culpa das mães no olhar. E, assim, usando a habilidade juvenil, encontraram meios de chantageá-las e de criar uma tabela de compensação para lhes atenuar a culpa. O que resultou daí, Don Gastón? Pois bem, já explico”.
IV
Durante o longo intervalo comercial da emissão, enquanto urinava no banheiro contíguo à sala, Bernardo imaginou o que tinham sido os últimos dias da desventurada Catherine. No fundo, talvez até buscasse atenuantes para lhe perdoar o atordoamento. Isso porque os estertores do casamento com o nobre Yves se davam à vista de todos na paisagem agora adormecida de Knokke-Le-Zoute, na Bélgica. Ainda na semana anterior, o filho Jan, que estudava economia em Barcelona, a chamara deliberadamente de puta, segundo ela mesma lhe confessara ao telefone. O insulto se deveu ao fato de que descobrira que ela estivera com o próprio Bernardo em Split, na Croácia, onde lhe jurara amor eterno e incondicional. Já o marido, fino jogador, a deixava apodrecer na rama, e a brindava com o castigo mais supremo que se pode infringir a alguém cuja vida vagava no vazio: um bom cartão de crédito e a mais cortês e completa das indiferenças: “Vai a Lille, querida? Divirta-se. É Roma, dessa vez? Ótimo, dê lembranças ao Papa. Então vai a Nice? Excelente ideia. Tome um drinque por mim no Negresco”. Soçobrando no vácuo de uma vida sem propósito, Catherine já não sabia o que fazer. Salvo, talvez, pela Catherine institucional que resplandecia nas soirées beneficentes. Em seu desfavor, apenas o tórax esférico que já não sabia como domar, pois, vinha descarregando as amarguras à mesa. Este mal só se agravou com o fim da relação com um tecelão desempregado de Roubaix, na fronteira francesa, por quem se afeiçoara. Alertada por Paulette Keller sobre os atos de sabotagem que perpetrava contra si, uma luz aparecera com o peruano Bernardo, amigo de bancos de faculdade em Louvain, tantos anos atrás. Mas, hélas. Agora já era tarde, a alternativa estava queimada.
V
Bernardo Khaled era homem de boa paz e pequenos hábitos. Metabolizado o fato da despropositada ida a Londres com o fito nítido e gratuito de fornicar – um ato só explicável à luz de uma patologia grave para quem vinha lhe fazendo juras de amor até a véspera -, e agora tomando a segunda dose de puro malte, o conhecido pintor não desgrudava os olhos da televisão onde o professor Marco Contreras continuava a cruzada furibunda. Levantando-se da cadeira, para delírio da pequena plateia, este esqueceu que estava num estúdio e falou como se pregasse para multidões: “Some-se a isso outro fator que não é dito, mas que é subjacente à culpa que as mães traziam dentro de si: a descoberta do adultério. Pode sorrir, mas é um ponto nevrálgico. Saiba que muitas dessas mães, não raro fracas e manipuláveis, ao começar a trabalhar, descobriram as delícias da lascívia e do proibido. Por que não tinham pensado nisso antes? Ora, se entregando à luxúria, eis que isso só acarretava mais culpa. O que não inibe o prazer das novas sensações, longe disso. A traição virou afrodisíaco, e se tornou algo tão ou mais saboroso do que nosso aji, Gastón“. Dessa vez, Bernardo não pôde dissimular alguma tristeza. Não, o professor Contreras era histônico, mas tinha lampejos de sábio. De quem sabia do que falava.
VI
Foi Catherine quem sugeriu que eles se vissem por ocasião de uma das exposições de Bernardo na Europa, depois de reatarem contato pelo mesmo Facebook que agora a aniquilara. O reencontro acontecera em Lisboa. É claro que os anos tinham feito estragos no físico de ambos. Ele agora tinha uma enorme barba grisalha que dava ainda mais luz aos olhos de lince, mas estava pesado e asmático. Ela não crescera muito; tinha os cabelos demasiado curtos e brancos, óculos de míope de armação cor de laranja, e ganhara indesejável peso localizado. Mas certo é que logo renasceu o fulgor de uma amizade temperada por carinho e, afinal, por algum sexo, depois daquela tarde no Restelo, na companhia de amigos dele, em que muito vinho verde rolou, escoltando sardinhas na brasa e boa prosa. Como se por magia, se recordaram quase em uníssono que tinham trocado uns beijos em noites de verão de suas vidas idas, lá na universidade. Depois de Portugal, veio a temporada em Split, no Adriático, onde ela chegou com renovada independência de espírito. Levantando um pouco da máscara da nobreza que afetava, admitiu que o casamento com Yves sempre fora um fracasso, uma espécie de pacto de conveniência onde jamais houvera amor de verdade. Ademais, agora estava legalmente aposentada e o filho Jan já não precisava dela. Até a cadela Kili falecera e era óbvio que ela não podia ficar o resto da vida comendo mexilhão com batata frita, em Ghent. Então, fulminou: se ele, Bernardo, era solteiro, por que não viver a vida em Arequipa, onde ele sonhava em pintar o véu branco da neve? Ou mesmo nos Pirineus, se isso facilitasse a agenda de compromissos na Europa. Poderiam pensar a respeito, não?
VII
Em Miraflores, o agradável bairro limenho onde vivia, Bernardo fazia suas conjecturas sobre a fala do professor. No fundo, chegava a sorrir com o ridículo do desespero da amiga que, no afã de ressuscitar um cadáver, tentava dar ares humanos ao mau passo. Para conseguir o efeito almejado, postava fotos bucólicas do Green Park. Sim, o peruano sabia que Pavel era só mais um caso em seu prontuário vasto, como tal logo também fadado ao descarte. Mas também sabia que cair em descrédito perante ele, Bernardo, era por certo devastador para Catherine de Ravenstein. Ludibriar a boa-fé alheia, afinal, não tem preço. Na grande tela, o professor continuava. “O que decorreu daí? Ao fazer incursões ao terreno pantanoso do adultério, emulando o traço mais marcante dos homens de então, elas descobriram perfis masculinos que, para seu fascínio, não se assemelhavam nem ao pai nem ao marido. Este, geralmente, era uma caricatura daquele. O resultado dessas atrações fulminantes por homens perversos e egoístas, é o conhecido. Os casamentos começaram a desmoronar. Vejam bem: perigosas não são as relações que se romperam, senão as que perduraram. Ademais, ao disputar o espaço do afeto do filho com o pai, tendo força corruptível maior, estragaram ainda mais a prole. O que não as isenta de ser chamadas de putas pelos filhos quando estes estão bêbados”.
VIII
Paulette Keller, a destinatária original da mensagem desastrada, até que era uma boa amiga. Além do que, também era dada às ciências ocultas. O alerta que lhe fizera quanto ao ventre proeminente que, mês após mês, mais e mais a engolfava, tinha sua razão de ser. No entender dela, a anomalia derivava de uma primeira infância atípica. E aqui vinha o ponto nevrálgico. O pai de Catherine, née Bool, era um modesto comerciante de Liège, e já tinha quase quarenta anos quando engravidou uma veranista adolescente em Knokke-Le-Zoute, numa noite de bebedeira dos anos 1950. Esta, uma canadense que passava temporada na casa de parentes, morreu no parto. Foi uma tragédia que causou comoção no balneário. Quem lhe escolheu o nome de inspiração russa foi uma ama de leite a quem Geert Bool pagou uns tantos francos. A morte da mãe abalou a comunidade conservadora da Bélgica daqueles anos. Em segundas núpcias, Geert desposou uma cortesã cubana, sobrevivente dos irmãos Castro que, para todos os efeitos, foi o referencial materno da pequena e irascível menininha. Paulette insistia que suas muitas disfunções emocionais vinham daí. Pois até da mãe cubana, agora uma anciã alquebrada que vivia em Antuérpia, Catherine recebia apupos furibundos, uma espécie de troco à rejeição que ela própria lhe devotara, ainda quando criança. Será que isso não fizera dela uma jovem autodestrutiva, presa fácil de homens vulgares e incapaz de cultivar o amor de verdade? Tem coisas na vida que não se podem consertar facilmente, dizia Paulette que, com discrição, previra bons momentos com Bernardo, homem intenso e sensível, não importa quão vastos fossem os oceanos que os separavam. Mais tarde, se arrependeria de não ter dito tudo o que vira.
IX
Bernardo, na verdade, levou apenas alguns minutos para encarar o episódio com um mínimo de alivio. Boa gente que era, no fundo lamentava que a temporada londrina de Catherine estivesse irremediavelmente comprometida, já que o dedo gordo a traíra no pequeno teclado do telefone. Na verdade, algo lhe dizia que ela estava sofrendo dias terríveis. O regozijo de enganá-lo fora frustrado na primeira hora. Logo, o prazer. Por outro lado, agradecia aos céus que essa derrapada flagrante tivesse acontecido. E se ele viesse de fato a se afeiçoar a ela? Imagine-se os dois vivendo em Arequipa, que Deus o livrasse. O professor Contreras seguia sem dar trégua. “Em tais circunstâncias, o homem descobre que é corno. Embora não informado a respeito, uma voz interna sussurra ao marido que ele o é, e o peso da desconfiança lhe verga moral e cabeça, não se iludam. Tudo isso somado ao advento de tecnologias que dão uma sensação de proximidade ilusória, eis o caldo em que se dissolvem os laços afetivos. E a geração que daí resulta – quer se dê a ela a letra “Y” ou qualquer outra do alfabeto, Don Gastón – constitui hoje uma das mais indolentes da história moderna. Que o digam seus calouros de chefes de televisão. Os mesmos que choram quando você lhes afaga por um mero chupe de camarones. Acaso minto? Pode falar, sou tão convidado aqui quanto você”.
X
O que Catherine poderia fazer doravante em Londres com Pavel, aquela pálida caricatura de quem conhecera em Dublin? Aquele eslovaco mirrado que então entornava litros de Guinness apesar do tamanho diminuto e que agora lhe acenava à porta do pequeno hotel de Knightsbridge com ares de uma felicidade algo torpe que ela não podia reciprocar? Por que, de repente, só conseguia lembrar aquele dia em que arremessou suas roupas imundas pela janela do apartamento, diante da estátua de James Joyce, juntando gente sob a sacada do quarto-e-sala de Dublin? Ora, agora que tudo estava irremediavelmente perdido, pois o silêncio de Bernardo deixava claro que ela não lhe vergara a inteligência, Catherine se fartou de postar fotos de inverossímeis aves canoras no Hyde Park. Em vão. Nada lhe restava, portanto, senão ser pragmática. Assim, faria perguntas gentis e anódinas. Minimizaria, enfim, perante Pavel, todas as mazelas que se abatiam sobre o lar de Knokke-Le-Zoute. A ordem era esquecer que acabara de perder a companhia de Bernardo com quem, na verdade, se sentira tão bem, tão mulher, tão amada. Silenciaria sobre o sonho da casinha em Arequipa, mais um idílio enfumaçado. A bem da verdade, a dor, de tão grande, era palpável. Daí a barriga inchar. Isso tudo porque não tivera com a mãe uma vida pós-uterina, segundo Paulette Keller, a sensível cartomante. Logo, quando ele assim quisesse, se deixaria conduzir pelo homem que tinha à mão. Na verdade, sequer morrer era má ideia. Na Londres pulsante que perdia o sentido, ela se perguntava: será que armara o pesadelo que vivia em algum lugar do inconsciente? Talvez.
XI
Diante do Pacífico, já alta madrugada, Bernardo deu uma olhada pelo computador nos jornais que sairiam no dia seguinte. Na televisão, o professor fazia suas últimas considerações. O pintor não podia deixar de reconhecer o perigo que representa um homem ilustrado, dono de repertório vasto, vivido ou assimilado. Ele pode transformar facilmente suas birras pessoais em truísmos de longo alcance. Em misseis balísticos, desses com que sonha a Coreia do Norte. “Ademais, as mães de hoje ficam com medo que os rebentos problemáticos se suicidem, pois eles sabem fazer ameaças veladas, e elas embarcam na manipulação. Na dúvida, compram tempo. No fundo, essa geração de jovens só tem mesmo medo de ter os benefícios cortados. Quer saber? São perigosos os rapazes e moças que se derretem diante de pessoas de sucesso e, automaticamente, passam a chamá-los de “tios” e “tias”. O parasita sabe buscar com manha e arte o novo ninho hospedeiro. Quando é que me chamarão, um pobretão, de tio ou tia? Nunca. Mas quantos o chamam de tio, Don Gastón? Uma legião, aposto. Todos de olho em seus suados dólares. Portanto, lhes dificulte a vida ao máximo. Os árabes dizem: você pode não saber porque os está castigando; mas eles sabem porque estão apanhando. Vamos, pode rir, homem. Obrigado pelo convite”.
XII
Já na noite da sexta-feira, quando a novidade do reencontro sequer rendera as alegrias que Catherine antegozara, posto que agora já não havia quem enganar, e quando ainda se descortinava um triste horizonte de dois dias antes da dispersão, Pavel fez seu melhor olhar concupiscente e tirou da mala um par de algemas. Sem razão para se opor ao joguinho, ela deixou que ele lhe prendesse as mãos à cabeceira vitoriana e só estranhou quando ele lhe socou a toalhinha de mão na boca, sob alegação de que era para abafar uivos. Abrindo mais uma lata de Guinness, pois se mantivera fiel às velhas preferências, salpicou o líquido gelado sobre ela que, raivosa, corou. Então, agora tomada de pânico e balançando as pernas no ar, mal enxergando o que acontecia à sua frente, viu quando Pavel a fotografou várias vezes pelo visor do celular dela própria, e lhe tirou a carteira forrada de libras esterlinas e cartões de crédito da bolsa, contando com volúpia as cédulas e as colocando no bolso. Afogueada, Catherine fechou os olhos para tentar controlar a respiração. No Pacifico, àquela hora, Bernardo Khaled saiu para almoçar no “La Mar”. Já estava escurecendo quando uma estranha mensagem entrou pelo fatídico “in-box”. Vinha do telefone de Catherine. Na pequena tela, uma foto dela de pernas para o ar, a barriga inconfundível e os seios nus lambuzados de um liquido escuro. Em castelhano, uma mensagem: “Eres Bernardo? Me deves un favor, tio. Hasta la vista“. Catherine de Ravenstein chorou e urinou nos lençóis até a chegada da camareira na manhã seguinte. Jan também recebeu uma foto da mãe e não sabia com quem dividir o desespero. Tomaria uma bebedeira. Já Yves, o marido, o enfatuado barão, apenas sorriu e arqueou as sobrancelhas como fazem os cornos de escol. Jean-Claude, o namorado, teria muito do que rir brevemente. “Pauvre salope”, balbuciou. E ligou para o rapaz, excitado: “Você não vai acreditar, querido. Nos vemos às oito horas no Alexandra? Você vai amar a pequena surpresa que tenho para seus olhos. Mas nada de publicar, hein?”.
XIII
Dias depois, já repatriada para a Bélgica, lançando mão do primeiro celular à disposição, ela ainda escreveu: “Bernardo, o verdadeiro amor não é fácil, mas precisamos lutar por ele porque uma vez que o encontramos, ele não poderá jamais ser substituído. Onde quer que você esteja, o que quer que você esteja fazendo, o que quer que esteja pensando, espero que tenha um dia doce e que não esqueça que eu te amo”. Um nó quase lhe subiu à garganta, mas ele achou um despropósito soluçar. Pobre Catherine. No mundo dela, palavras doces substituíam os gestos mais torpes. Em francês, na verdade, gentillesse é como detergente multiuso. Um dia poderia reconsiderar a situação e tratá-la como uma velha amiga. Sem, contudo, jamais resvalar para o terreno amoroso de novo. Por via das dúvidas, inutilizou o quadro com que pretendia presenteá-la. Era baseada numa foto que ela recuperara, onde ambos apareciam à beira mar nos anos 1970. Ambos de calça boca-sino e ele de costeletas enormes. Certo entardecer, Bernardo tomou o voo para Arequipa e já escurecia quando o avião sobrevoou o cerro Colorado. Àquela altura, Catherine deveria estar quase recuperada e talvez já tivesse voltado à dieta de mexilhão com fritas. Na primeira oportunidade que se apresentasse, diria a Yves, o impávido, que iria visitar Barbara, em Lille, na esperança de rebocar alguém para o hotel Ibis, da estação de Roubaix. Será que o tecelão lhe daria nova chance?
XIV
Pavel, a seu turno, tampouco tardaria a lhe pedir desculpas, e, como já fizera no passado, diria que tivera uma conduta extremada por conta da droga. O professor Marco Contreras haveria de continuar sua pregação monocórdia. Desde que flagrara a esposa na cama de uma barraca trocando afagos com um tratador de vicunhas do altiplano, nunca mais conseguira mudar o disco. Quanto a Bernardo, já sorvendo o primeiro gole de puro malte da temporada na montanha, lhe ocorreu pensar que por pouco uma parte de sua juventude não se fora ralo abaixo. De tudo aquilo, preferia guardar a boa lembrança de quem fora, por todo um verão, a reencarnação de uma Catherine de Ravenstein que, decididamente, não chegara para ficar. Ou melhor, de Catherine Bool, como ele a conhecera em seus verdes anos. E cujo ventre, infelizmente, continuaria a crescer. Então preparou tela e pinceis. No dia seguinte, acordaria cedo para pintar o lago que se via à distância. E tendo diante de si tintas e cores, tudo ganharia a proporção certa. Pena que Bernardo nunca mais despertaria. Salvador, o melhor amigo, foi quem segredou à mãe do pintor que este sempre dissera o que queria escrito sobre sua lápide tumular. Era uma frase que ele lera na juventude belga: “Plaisir d´amour, ne dure qu´un moment. Chagrin d´amour dure toute la vie“. Parece que vinha de uma canção de séculos. Mas agora pouco importava.
*****
Apelou! Com uma ilustração dessas, pensei “que será que escreveu o Fernando Dourado para merecer tal ilustração?” Cruz Credo! Que imaginação fértil e que gente mais vazia e caricata essa que você descreve. Ainda não estou tão descrente da humanidade…
Helga,
Mil vezes suscitar sua descrença e perplexidade do que sua indiferença. De fato, a humanidade tal como a pinto, está mesmo sujeita ao julgamento cruel e, como tal, a um descrição implacável. Importante para mim é que reflita um universo verossímil e palpável. Se conseguiu, me dou por bastante satisfeito. Você é sempre bem-vinda.
Wow ! Fernando, desta vez superaste todas as expectativas da imaginação. Uma “comédie humaine” verdadeiramente chistosa e lúcida, em visão panorâmica que nos leva num ritmo frenético, dar uma voltinha a um mundo heteróclito e mui contrastado. Apostaria que a escolha da estação balnear de Knokke- Le- Zoute nãofoi fortuita mas foi outro “piscar de olho teu”, tanto pela derisão daquele nome ridículo como pelo snobismo legendário do sítio. Estás de parabens Fernando, pelo alento que soubeste dar a história, e por este humor implacável e lúcido que te caracteriza.
Muito obrigado, Pascale. Já disse aqui uma vez e repetirei o conselho lumioso que me deu certa feita o amigo e editor João Rego, o “Troféu Clarividência” de 2016: sob hipótese alguma, tente explicar sua ficção
Ainda não cheguei ao ponto de apreender o tamanho de sabedoria que a recomendação encerra. Talvez por ser um energúmeno nas lides literárias e, quiçá, um pouco vaidoso, ainda me deixo levar pela rampa escorregadia da explicação.
Espero viver o dia em que tudo o que pretendo dizer está lá no texto. Como discutimos recentemente em animada noite alsaciana em torno de um Riesling em tua saudosa casa de Estrasburgo. Mas agradeço. Você aptou tudo.
Registro, por oportuno, de público, as palavras igualmente gentis que você me mandou a respeito do livro, a cujo lançamento você foi em Paris: “Adorei “Nos passos d Fiszel Czeresnia”a sério. Pensava que houvesse mais sobre os Czeresnia, mas afinal fizeste um “pot pourri” (no bom sentido) das tuas andanças com o olhar esperto do jornalista de investigação e de um etnólogo-sociólogo dos tempos modernos. Mamma mia, que ginástica e que proeza! Parabéns, diverti-me muito e aprendi muito ao mesmo tempo!”
Divido os cumprimentos com todos os que fazem Será?, desaguadouro dessa tal imaginação a que tantos aludem e cujos fundamentos ignoro.
Abraço,
FD
Querido Fernando Dourado Filho, diante desta página – não é um texto, mas uma página, como se diz dos momentos mais altos da literatura -, constato mais uma vez que você é implacável com teus personagens paridos lá nos ermos de, bem, do autor sem estarem necessariamente nele. Coitados, para eles gozo é pouco mais do que agonia e amor, menos que fraqueza. Há leitores que, tendo magoadas susceptibilidades morais ou estilísticas, pedem dos autores incabíveis explicações. Ora, um autor não se explica; a necessidade de explicações já as faz inúteis. No máximo, um autor discute-se, especula-se, o que já é um tormento adicional ao ato de se escrever, pois, penso eu, quando escreve, o autor sai (ou deveria sair) da esfera de expectativa alheia para entrar na própria agonia. Ter de explicar isso? Ora, explique quem ler! Acusam esta página de chula e o eventual caráter patológico da tua imaginação, meu Fernando? O chulismo também tem seu lugar, saibam os puritanos (tem gente mais pervertida do que os puritanos?). E que outro caráter conforma a imaginação senão o patológico? Se nem na imaginação, nossas patologias não respirarem, para onde havemos de as levar para tomar sol e ar fresco? Para a realidade cheia de gente santa, sem homens nem mulheres sujos de humanidade? Você merece leitores mais… imaginativos, meu Fernando. Mas falemos dos mexilhões com batatas fritas: eles são grelhados e elas crocantes por fora e macias por dentro? Perfeito. Ótimo começo de semana. Um beijo
Obrigado por seus comentários, Vânia. Te confesso que muitas vezes, nesse espaço e em tantos outros, fico um pouco acuado com a exagerada “imaginação” que me é atribuída. Sempre achei que ela era atribuição inarredável de quem escreve.
Se, por um lado, é lisonjeiro tê-la em alguma profusão – Einstein a tinha em conta mais alta do que a inteligencia propriamente dita -, por outro lado me sinto estranhamente desconfortável.
E por que? Porque mais parece que padeço de uma inventividade a tal ponto hipertrofiada que, a persistir os sintomas, terminarei por sucumbir a uma mitomania crônica. Numa versão benevolente, contudo, digo que exercitá-la foi uma constante. E, graças a ela, sobrevivi.
Enfim, lá vou eu me explicando de novo.
Beijo
A situação criada por um deslize no facebook, torna contemporânea uma história que se repete no tempo, faz tempo. Cuidado, pois, a se ter com as redes sociais, nesta sua condição não prevista “ab initio”: a de abreviar relações com setores obscuros comprometedores. Parabéns, Fernando. Realmente, como você disse no facebook, não há como deter a leitura após os dois primeiros parágrafos. E, também, embora longo para o tão citado “face”, tem tudo a ver com ele.
Querido Marco Rossi,
Vejo que você é não somente um pintor singular quanto também um leitor arguto. Só agora ao lê-lo me dou conta de que a recorrência da temática não a exime de certa contemporaneidade. Tratar de coisas que se dão em torno e por conta do Facebook, as rejuvenesce. Não tinha pensando nisso ao escrever.
Obrigado e um abraço saudoso.