Terminando nossa viagem sobre a história da música erudita, conversaremos neste artigo sobre a produção musical mais recente, também chamada de “música moderna” ou “música contemporânea”.
A primeira metade do século passado foi dominada por dois compositores bem diferentes que viveram na Europa antes da Primeira Guerra e terminaram suas vidas na Califórnia (EUA), o austríaco Arnold Schoenberg e o russo Igor Stravinsky. Schoenberg e seus discípulos julgavam-se pertencer à tradição germânica. Ao mesmo tempo, o interesse de Schoenberg pela pintura indica um estreito relacionamento entre o expressionismo de artistas como Oskar Kokoschka e Wassily Kandinsky e o de sua própria música e a de seus seguidores, como Alban Berg.
Stravinsky ficou conhecido por seus balés russos, como O pássaro de fogo (1909) e A sagração da primavera (1913), bem como por renovar a música com a força de sua linguagem rítmica, inspirado nas linhas angulares das telas de Pablo Picasso do mesmo período. Mais tarde, Stravinsky iria voltar-se para o passado ao fazer uma releitura dos estilos e temas do século XVII e XVIII, e seu estilo ou espírito “neoclássico” foi abraçado por vários compositores contemporâneos. A obra Pulcinella (1918) de Stravinsky foi o fruto seminal do neoclassicismo, e mesmo em sua The Rake’s Progress (1948-51) há uma tendência a visitar tradições (e enredos) do passado.
Na França, a música de Maurice Ravel era suficientemente objetiva em seu equilíbrio e clareza para se adaptar ao ethos neoclássico, como mostra Le tombeau de Couperin (1917-19), e mesmo Claude Debussy em sua Suite bergamasque sucumbe aos encantos do passado. Na Grã-Bretanha, William Walton e Constant Lambert assimilaram o estilo neoclássico, enquanto na Alemanha Paul Hindemith explorava formas antigas, especialmente em sua série de sonatas para instrumentos orquestrais e piano.
Assim como muitos compositores referiram-se ao passado para reagir contra o Romantismo, outros encontraram no jazz a forma perfeita para a música do século XX. Virtualmente nenhum compositor em Paris esteve imune à influência do jazz: Stravinsky compôs um ragtime (1918); Darius Milhaud criou a primeira fuga jazzística no seu balé La création du monde (1923); e a Sonata para violino de Ravel (1923-27) contém um movimento de blues. Ao mesmo tempo, nos EUA, George Gershwin criava obras de concerto, como Rhapsody in Blue, que faziam a ponte entre a música popular e a música erudita. Em outros países explorou-se a herança folclórica. No Leste europeu, Bela Bartók e Zoltán Kodály dedicaram-se a canções e danças populares. Na América do Norte, Aaron Copland começou a usar canções de faroeste, cânticos quacres e material latino-americano em sua obra, criando um estilo americano imediatamente identificável.
Mais tarde, compositores europeus tão diversos como Benjamin Britten e Luciano Berio adaptariam canções folclóricas de seus países natais, enquanto outros, como György Ligeti, Steve Reich e Kevin Volans, eram influenciados (sob inúmeros aspectos) pela música africana. Na Rússia, diferentes vozes surgiram ao longo do século XX. Sergei Prokofiev passou uma temporada em Paris, onde foi influenciado pelo neoclassicismo, enquanto Dmitri Shostakovich permaneceu na URSS, escravo do Realismo socialista das autoridades soviéticas.
A interferência política também caracterizou o nazismo, quando compositores judeus foram banidos durante os anos 30, e mesmo a música de compositores não-judeus, como Anton Webern e Alban Berg, era estigmatizada como “arte degenerada”. Entre os potenciais grandes compositores que morreram ou assassinados nos campos de concentração estavam o morávio Gideon Klein e o tcheco Viktor Ulmann.
Alguns compositores optaram pela independência total. Olivier Messiaen adotou a religião como fator unificador importante para sua música e, ao mesmo tempo, usou escalas exóticas e trinados de pássaros. Pierre Boulez foi a princípio influenciado por Messiaen, mas depois rejeitou seu professor para se tornar o sumo sacerdote do formalismo, expandindo os princípios do serialismo – método de composição musical no qual utiliza uma ou várias séries (grupos de notas) como forma de organizar o material musical.
Nos EUA, John Cage, que estudara com Schoenberg, voltou-se para o serialismo, buscando inspiração na música e na filosofia orientais, enquanto preocupações conceituais bizarras inspiraram a produção de Karlheinz Stockhausen – em uma de cujas obras um quarteto de cordas interage com quatro helicópteros em pleno voo. A tecnologia teve grande impacto em todos os tipos de música por meio das gravações e do uso do som sintetizado. Edgar Varèse, por exemplo, criou uma peça para fita magnética, Poème électronique, para o Pavilhão da Philips, na Exposição de Bruxelas de 1958, projetado por Le Corbusier.
Terry Riley, Philip Glass, Steve Reich e os compositores minimalistas – grupo surgido no final dos anos 60 – criaram obras baseadas na repetição de motivos simples, que muitos achavam hipnotizantes. Recentemente esse estilo foi assimilado por compositores que buscaram reintroduzir elementos da tradição, como John Adams, que compôs música orquestral e ópera de proporções românticas. Assim como os minimalistas se rebelaram contra a complexidade do serialismo, um grupo de compositores europeus, entre os quais John Tavener, Henryk Górecki e Arvo Pärt, criou uma música simples em sua construção e de uma calma espiritual.
Formas musicais populares, como o jazz, o rock e a música folclórica, inspiraram diversos compositores modernos, mas as fertilizações no século XX não foram de forma alguma um caminho de mão única. Bandleaders do jazz, como Duke Ellington, usaram um formato orquestral adaptado, com um amplo leque de instrumentos. Nos anos 50 e 60, produtores como o parceiro de Frank Sinatra, Nelson Riddle, e George Martin, dos Beatles, usaram efeitos orquestrais totalmente clássicos. No rock, várias bandas, como Deep Purple e Pink Floyd, arriscaram-se em composições orquestrais. O impressionante catálogo do músico Frank Zappa vai da guitarra pesada ao balé (Lumpy Grazy, 1968), uma ópera (200 Motels, 1971) e uma suíte, Yellow Shark (1992).
Principais compositores
Arnold Schoenberg (1874-1951) foi provavelmente o compositor do século XX que mais suscitou incompreensão e controvérsia. Continua sendo um paradoxo: sua música rompeu com o passado, embora ele se julgasse parte da tradição de música alemã e a despeito de seu abandono da tonalidade como passo inevitável do progresso musical. Também foi um grande professor autodidata. Sua música pode parecer inacessível, mas ele também fez arranjos para valsas de Strauss. O ciclo de canções Pierrot Lunaire e a cantata Gurrelieder se destacam na sua produção.
Mais importante compositor húngaro do século XX e grande expoente da música moderna, Béla Bartók (1881-1945) foi também um mestre do folclore musical e professor respeitado. Sua música ganhou vigor de temas, modos e padrões rítmicos das tradições da música folclórica húngara e outras, que ele sintetizou com influências de contemporâneos em seu estilo próprio e peculiar. Suas obras-chave são o Concerto para orquestra, a série para piano solo Mikrokosmos, a Música para cordas, percussão e celesta e a ópera O castelo de Barba Azul.
Considerado por muitos o maior compositor do século XX, a longa vida de Igor Stravinsky (1882-1971) atravessou continentes, culturas e eras. Ícone das artes modernas, talvez só tenha sido igualado por Picasso, cujas inovações precursoras criaram o mesmo choque e excitação. Também lembrava o mestre espanhol em seu talento para transformações artísticas radicais, embora, a despeito dessa qualidade, Stravinsky tenha permanecido inefavelmente ele mesmo. Os balés A sagração da primavera, Petruchka, Les Noces, Pulcinella e O pássaro de fogo e as óperas Oedipus Rex e The Rake’s Progress são suas principais composições.
George Gershwin (1898-1937) foi um dos compositores mais talentosos e bem-sucedidos do século XX, tendo morrido tragicamente cedo. Conquistou seu primeiro sucesso na Broadway em 1919, e seu primeiro sucesso “clássico” em 1924, permanecendo um mestre em ambos os domínios e ganhando respeito de severos papas do erudito, como Rachmaninov e – surpreendentemente – Arnold Schoenberg. Na sua produção se destacam a ópera Porgy and Bess e a peça orquestral Rhapsody in Blue.
Aaron Copland (1900-1990) é provavelmente o mais conhecido, e decerto o mais profundamente inventivo, compositor que os EUA já produziram. Nos anos 30 e 40, sintetizou elementos jazzísticos, neoclássicos e folclóricos num estilo que para muitos condensa o espírito de seu país natal. Tudo isso, aliado a uma energia empreendedora e a um dom para a organização, fez dele a figura-chave da música norte-americana do século XX. Na sua Sinfonia nº 3 e o balé Appalachian Spring ele inseriu o melhor de sua arte.
Sergei Prokofiev (1891-1953) tinha imenso talento como compositor e pianista e um caráter decididamente otimista. Sua música pré-revolucionária é animada, sarcástica, às vezes agressiva; já a obra madura é mais equilibrada e lírica, e, após sua volta à União Soviética, mais convencional. Ao longo da vida, Prokofiev preservou seu senso pictórico e dramático, presente tanto em suas sinfonias “abstratas” e sonatas quanto em seus balés, como Romeu e Julieta. O Concerto para violino nº 1, Op. 19, e a Sinfonia nº 5, Op. 100, são pontos altos de sua obra.
Dmitri Shostakovich (1906-1975) foi o compositor mais popular de meados do século XX. Suas 15 sinfonias são reconhecidas como as maiores desde as de Gustav Mahler, e seus 15 quartetos de cordas os mais relevantes desde os de Bartók. Mas era uma figura polêmica: foi criticado pelos modernistas como reacionário ou lacaio do regime soviético, e recentes tentativas de encontrar mensagens anti-stalinistas em sua música provocaram fortes debates. A Sinfonia nº 5, o Quarteto de cordas nº 8 e a ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk estão entre as obras-primas de “Shosta”, como é carinhosamente conhecido.
Outros compositores de destaque na música erudita produzida a partir do século XX são Anton Webern (austríaco, 1883-1945), Alban Berg (austríaco, 1885-1935), Francis Poulenc (francês, 1899-1963), Charles Ives (norte-americano, 1874-1954), Samuel Barber (norte-americano, 1910-1981), Leonard Bernstein (norte-americano, 1918-1990), Philip Glass (norte-americano, 1937-), John Adams (norte-americano, 1947-), Aram Khachaturian (armênio, 1903-1978), Alfred Schnittke (russo, 1934-1998), Kurt Weill (alemão, 1900-1950), Olivier Messiaen (francês, 1908-1992), Michael Tippett (inglês, 1905-1998), Benjamin Britten (inglês, 1913-1976), Witold Lutoslawski (polonês, 1913-1994), György Ligeti (húngaro, 1923-2006), Pierre Boulez (francês, 1923-2016), Luciano Berio (italiano, 1925-2003), Arvo Pärt (estoniano, 1935-), Henryk Górecki (polonês, 1933-2010) e John Tavener (inglês, 1944-2013).
(*) Frederico Toscano trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia, tem mestrado em Administração e é autor do blog Euterpe (http://euterpe.blog.br), especializado em música clássica.
Ótimo apanhado, depois que se pega o gosto pela música clássica, a tendência é torná-la cada vez mais presente na vida, é um caminho sem volta, porém um caminho bem reconfortante por muitas razões.
Frederico
Seus artigos sobre a musica clássica enriqueceram muito a Revista Sera?, ampliando sua área de análise e reflexão com a temática cultura e a histórica cultural tratadas com grande competência. Como um dos editores da Revista, sou grato à sua contribuição. Pergunto se, depois deste panorama geral, não poderia aprofundar a análise, em novos artigos focando em alguns dos períodos históricos ou alguns dos compositores que marcaram a música história da erudita. A Revista e os nossos leitores são gratos. Sérgio