Fernando Dourado

ELENA ARZAK – Basque country chef.

Se há uma pequena catástrofe que pode se abater sobre a vida de uma mulher assumidamente perfeccionista, é a de constatar que, depois de ter condensado em dez horas de trabalho o essencial de sua vida de crítica de gastronomia e esposa, eis que tudo está perdido simplesmente porque ela, seduzida pela paz interior que lhe trazia uma linda paisagem outonal, esqueceu de salvar o precioso arquivo. É doloroso pensar que se tratava de uma pensata elaborada porém sincera, como talvez jamais redigira. E que se destinava a uma das mais prestigiosas revistas do mundo no ramo da boa mesa. Ora, tendo a rede informática caído, os escritos simplesmente tinham se evaporado na bruma quando a conexão ressuscitou, e, infelizmente, para todo sempre estarão perdidas as linhas que escrevera num lampejo que pareceu conjuminar o melhor da inspiração e da disciplina. Pois bem, foi exatamente o que aconteceu comigo na manhã de hoje. Essa desfortunada mulher sou eu, Martina Lawrence.

Sabia, de antemão, que, diante de meu desespero, Denis poderia sempre resmungar da poltrona que, quem sabe, assim não tinha sido melhor. De novo, foi o que aconteceu. Isso porque, dada a fé acrítica que ele tem em minha pena – pena esta que dá prestígio a essa casa há quarenta anos -, ele se mostrou convicto de que a nova versão sairá mais suculenta do que a primeira. O que ele não entende é que o jornalismo também vive de prazos. Daí ter agora diante de mim a missão excruciante de passar uma noite em claro por conta do cumprimento do dever. Tampouco ele assimila que eu me afeiçoara à forma do texto original que esvaneceu. É como um músico que perde o rastro de uma harmonia bem executada numa noite de bebedeira. Ou um cozinheiro que faz marcha à ré para desconstruir o prato que mereceu tantos elogios, resultado de um momento de descuido em que, sem se aperceber, se apartou da receita original. Pois bem, é com essa sensação que retomo o trabalho. Vendo-me suspirar e colocar a cabeça entre as mãos espalmadas, Denis levantou os olhos cinzentos do jornal que folheava e disse bovinamente: “Martina, querida, a história já está dentro de você. É só reproduzi-la. Come on“. Oh, Denis, como o mundo é simples para você, meu marido.

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Não é todo dia que surge na zona central de Toronto um bistrô fadado a durar. Refiro-me a esses pequenos restaurantes que já nascem com vigor criativo e que escapam à receita fácil de fazer uma sopinha de cebola insossa, um “coq au vin” para lá de previsível e uma torta mil folhas borrachuda, guarnecida por uma bola de sorvete de baunilha anódino. Arapucas assim, até Denis fareja de longe e, graças ao bom Deus, já nem tenho idade para me prestar a esses experimentos de incautos. Daí a agradável surpresa que foi o “Le boudin d´or”. Um serviço discreto e simpático acomoda os comensais numa sala de quatorze mesas. Nas paredes, se veem paisagens da Auvergne e do Jura, cujo intuito óbvio é o de dar à casa um sotaque culinário identitário. O cardápio podia ser um pouco mais curto, mas importante é que cobria um espectro honesto de opções, sem as sobreposições ou as redundâncias de praxe. Bom começo, pensei. Até me animei a tomar um kir royal que veio com duas gotas a mais de cassis do que manda a boa norma. Comi o bacalhau fresco da Terra Nova com legumes cozidos. Denis aderiu ao hadoque pochê com batatas. Segundo ele, isso nos irmanaria em meia garrafa de Chablis, no que não estava errado. A título de entrada, que na nossa idade convém dispensar à noite, dividimos o bom patê de fígado de ganso “en croûte” que surpreendeu pela untuosidade da iguaria e pelo frescor da massa em volta. Foi então que, ao final de meu “sorbet” de pera com pérolas de chocolate, e da penosa quarentena de Denis devido à labilidade glicêmica, apareceu à mesa o jovem chefe Martin Voos, todo ele sorrisos. Sem dar nenhuma demonstração de que me reconhecia – e talvez não conheça mesmo -, perguntou como andara tudo e se mereceria uma nova visita quando da estreia do cardápio de inverno. Como sempre, fui reticente, mas cortês. Denis se empolgou com digressões sobre a pesca em alto mar e eu me ocupei da conta, depois do descafeinado italiano aromático. Paguei o que teríamos gastado numa cantina ruidosa da vizinhança e acho que voltaremos lá qualquer hora dessas com as árvores nuas da estação. Recomendo. 

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Meus pais eram pessoas rústicas, acostumadas à vida da mineração que pautara a história algo sombria de meus avós escoceses. Permanecer naquela província fria e remota, era tudo o que não constava de meus planos, então voltados para o sonho de ser aeromoça e desfilar minha silhueta delicada pelos corredores de grandes aeroportos em charmoso uniforme azul, cor de meus olhos. Mas quis o destino, e talvez minha baixa estatura, que terminasse me apresentado a um escritório de advocacia de Toronto que parecia ser um ancoradouro de estabilidade numa cidade que para mim encerrava muitas incógnitas. Pragmatismo somado a rudimentos de francês e habilidades de datilógrafa, logo me valeram uma posição de comando no gabinete de dois sócios, a quem atendia indistintamente. Na primeira festa de confraternização natalina que tivemos, quando muitos ainda falavam da morte de John Lennon, ocorrida dias antes, conheci Denis Lawrence, um dos mais obscuros advogados do plantel. Mas ele era jovem e tinha um charme desengonçado. E eu, quem era? Uma simples secretária, ora. Achei que Denis era um bom começo. Mal sabia que com ele iria até o fim.

Casamo-nos numa cerimônia alegre em que quase todos os convidados eram gente do trabalho. Era muito institucional o mundo de Toronto daquela época. Meus pais não se animaram a vir de tão longe e Denis praticamente não tinha família no Canadá, salvo por uma irmã com quem se desentendera logo depois da morte brutal dos pais, num acidente de carro. Meu marido morava num apartamento simpático, localizado a poucas quadras de onde trabalhávamos e não vi inconveniente algum em me mudar para lá, se fizéssemos nós mesmos uma pequena reforma. Esta funcionou tão bem a ponto de mantermos a rotina sem sobressaltos, mesmo depois do nascimento de Justin. Ele já deveria ter uns três anos quando Barry Dorsey, um advogado de prestígio na firma a quem também atendia, me pediu que escrevesse uma carta de elogios a um amigo que recém abrira uma cantina que, aliás, não durou muito. Foi então que decidi fazer as coisas com a correção que me é própria. Às minhas expensas, estive no restaurante e, embora o tenha achado sofrível, fiz elogios pontuais, já que era uma questão de camaradagem. Barry gostou tanto do comentário que afixou-o no quadro de avisos. Virei referência interna de dicas e, logo depois, os horizontes se expandiriam. No íntimo, disse a mim mesma que jamais seria condescendente como fora na aventura iniciática.

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O Recife é uma cidade de imensa praia na ponta do Nordeste brasileiro, esse país quase tão grande quanto o nosso. Última escala de um périplo de duas semanas ligadas aos Jogos Olímpicos, ficamos lá por um par de dias e não podíamos deixar de visitar o restaurante tido como o mais antigo do Brasil. Chegamos ao “Leite” sem reserva prévia, num agradável começo de tarde em que uma pequena praça logo à frente era banhada por um sol que tudo devassava. Moças depauperadas sentavam em muretas na rua lateral como se estivessem à espera de fregueses e reinava um ar de cidade pobre da América Central, logo dissipado quando entramos no restaurante, ainda ofuscados pela luminosidade intensa, e demos de cara com uma armadura. Acomodados a uma mesa vizinha ao piano, mais parecia que a cidade vivia dia festivo, tão efusivos eram os cumprimentos entre os frequentadores, muitos deles “habitués” que saudavam a brigada gentil e elegante. O que me pareceu ser petiscos de cortesia, na verdade, seriam cobrados mais adiante, mas isso pouco importa e o jornal ainda aguenta essas despesas, apesar da circulação declinante. Comemos, pois, fatias finas de presunto cru e nos animamos a tomar caipirinha, sendo a de Denis com adoçante, bem entendido. A lagosta de meu marido veio nitidamente sem alma e o acompanhamento de arroz branco se revelou indigente porque frio e hospitalar. Já eu segui a sugestão do jovem que tartamudeava algum inglês e fiquei bastante satisfeita com o cabritinho à moda da casa, que me remeteu à cozinha bracarense mais despojada. Elvira, nossa guia e tradutora, que se resignou a uma salada nada convidativa, sugeriu que arrematássemos com uma certa cartola, um petardo calórico que consiste em bananas fritas salpicadas de uma chuva de açúcar com canela, sob espessa camada de um queijo local, o que submete o paladar a agradável briga entre o doce e o levemente salgado. Se não trouxe a comida na memória afetiva até Toronto, não esquecerei o calor humano de uma gente que se cumprimenta como se os convivas tivessem voltado de uma guerra, ou, pior, como se estivessem indo para uma. A caminho do toalete, um homem grisalho nos acenou com um meneio de cabeça e Elvira disse ser um senador nacionalmente conhecido. Prepare-se para uma conta surpreendentemente salgada. Mas é quase sempre assim. É mito achar que lugar pobre tem necessariamente preços em conta. Pela tradição, recomendo. 

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Tudo então se encadeou de forma irreversível. De cronista de jornal de bairro, bancando nossas incursões aos restaurantes com dinheiro do próprio bolso, e recusando cortesias que pudessem constranger a isenção de julgamento, fui chamada a assinar uma coluna semanal naquele que era o segundo jornal em importância de Toronto. O que se revelou determinante para mim foi constatar que Denis, normalmente um homem casmurro e previsível, se tornava mais interessante diante de um bom assado de vitela, no quadro de um ambiente que pedisse mais do conviva do que nossa copa acanhada onde, com a partida prematura de Justin, passamos a fazer as refeições. Ainda longe das tecnologias digitais, o pessoal do escritório resolveu me oferecer uma festa por ocasião de meus quinze anos de firma. Àquela altura, com minha coluna no “Star” lida de Vancouver a Montreal, decidimos que eu poderia trabalhar meio expediente e mergulhar no mundo da enologia e do convívio mais assíduo com os confrades que passaram a se reunir para trocar impressões e promover jantares em casa uns dos outros. No começo, achei que a receptividade dos novos amigos era uma forma de apaziguar a dor que eu sentia pela enfermidade rara que acometera Justin desde cedo e que, afinal, também o levou prematuramente.

Embora seja insano questionar a dor de Denis durante aqueles anos de agonia, sempre terei a impressão de que ele se regozijou, lá no fundo, por me ter de novo só para ele, ao abrigo de concorrentes domésticos. Mesmo em se tratando de uma pessoa doce como foi Justin em sua breve vida. Sinto-me pesarosa ao dizer algo de tamanha gravidade porque Denis, afinal, sempre foi um bom pai e marido e, na faina doméstica, é homem solidário e prestativo, coisa incomum na sua geração. Quanto à natural abulia desse companheiro calvo e de bigodes parafinados, ela só se agravou com a aposentadoria, mas não sei, sinceramente, se isso me desagrada de todo. Gosto dele assim. Certo é que minha coluna passou a ser veiculada também em jornais americanos e, com a entrada do milênio, o mundo digital me abriu tantas portas que passei a contar com orçamento elástico para me dedicar exclusivamente ao ofício que abraçara de forma acidental. Com um flamejante cartão de crédito corporativo, atravessamos a fronteira e minhas crônicas sobre o melhor de Manhattan ou o pior de Fisherman´s Wharf passaram a ser comentadas. Como sempre fora nosso propósito rodar um pouco o mundo, me impus a missão, logo afiançada pelo jornal, de escrever resenhas onde quer que estivesse. E assim temos passado a vida.

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Já adverti nesse espaço que, mesmo reconhecida ocasionalmente pela brigada da casa e seus chefes, o maior erro de um cozinheiro é alterar o equilíbrio de suas receitas com o intuito de agradar o crítico de restaurantes. É claro que minha coluna é eivada de subjetividades – a começar pelos meus humores para com Denis -, mas, até por ter trabalhado num escritório de advocacia por anos, tenho em mim enraizado senso de justiça. E, convenhamos, de alguma responsabilidade. Não ignoro que uma resenha favorável pode, no curto prazo, ajudar o empreendedor com uma leva de novos clientes. O contrário também pode ser verdadeiro. E isso se aplica a várias partes do mundo onde, ao que parece, minhas ponderações são lidas e apreciadas, graças a esses potentes motores digitais que, para ser sincera, jamais saberei a contento como funcionam. Mas isso já não vem ao caso. O que não se pode falsear é o caráter genuíno de especialidades que singularizam uma cozinha. A gastronomia é arte de longo fôlego e deploro as crianças que não tiveram pais atentos a esse quesito pois, aprender a apreciar a diversidade mais tarde, se revela tortuoso, quando não impossível. Isso dito, tivemos uma má experiência no Torre del Mangia, de Milão. Foi por certo devido à presença de um amigo comum no recinto que a casa, um celeiro de celebridades, houve por bem nos prodigalizar com pequenas frituras no azeite. Certo é que o risoto de cogumelos resultou previsível e, não sei como, muito mal executado. Meu marido me pareceu empolgado com o carpaccio, mas disse, a justo título, que o peixe espada ao limão estava seco, o que atestei discretamente com uma garfada. Quanto à minha milanesa de vitela, havia ar entre a cobertura crocante e a carne, o que eu julgava exclusividade das arapucas de Little Italy, em Manhattan, e não de um templo gastronômico numa terra de delícias a toda prova. Dispensamos sobremesas e aceitamos o “amaro” da casa já que não tínhamos bebido vinho. Este, segundo Denis, foi nosso grande erro, já que água com gás pode nos transformar em seres pontualmente intolerantes. A conta foi alta, a mais cara que pagamos no país e só perdeu, na Europa, para a do Botafumero, de Barcelona, lugar de extorsão. Desejo dias melhores ao restaurante e creio que o sucedido tipificou um dia infeliz, desses em que o cozinheiro descobre que perdeu a mulher para o padeiro. Se dinheiro não for sua preocupação, tente. Sem entusiasmo, recomendo.

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Semana passada recebi um e-mail da produção de um de nossos principais programas de televisão. Pediam que retornasse o contato tão logo pudesse já que tinham a tratar de tema de meu interesse. Como não gosto desse viés que os produtores dão às suas espertezas, me mantive quieta e nada respondi. Sem querer ser presunçosa, o certo é que já tenho nome bastante consolidado para que um simples convite para entrevista venha travestido do que não é. Ora, o interesse para que eu compareça é principalmente deles e bem menos meu. Até que após dois dias me ligaram diretamente e, apesar de ignorar o número no visor, atendi a chamada. Um jovem meio atabalhoado de nome Jeff me perguntou se eu conhecia o talk show e disse admirar meu trabalho. “Minha mãe não marca um almoço de família em restaurantes sem consultar seu blog. Sempre comenta: vamos ver o que Mrs. Lawrence diz desse lugar. É incrível”, disse. Agradeci o cumprimento e já ia pegar a agenda para verificar minhas disponibilidades quando fui surpreendida pelo rapaz. Na verdade, se tratava sim de um convite, mas a atração não era bem quem eu estava pensando que seria. “Na verdade, Mrs. Lawrence, queríamos trazer ao programa seu marido, o Denis. É claro que a senhora é bem-vinda para acompanhá-lo, mas estamos querendo diversificar o perfil dos convidados e ele nos pareceu a pessoa certa. Isso porque é homem público, sem sê-lo. Está sempre em seus escritos, mas não é o protagonista. Entende? O que me diz? Será que ele toparia? Dizendo melhor, será que a senhora permitiria?“. Não pude conter um sorriso.

Ver Denis ao lado de Efraim Kotkin foi uma sensação e tanto. Já nas primeiras palavras, entendi que a produção acertara em apostar numa atração menos presunçosa, numa pessoa que diz com bonomia o que acha da vida. Não que a conversa tenha sido imune a surpresas, longe disso. Apontando para mim, falou de nossos primórdios no escritório e da maneira acidental como eu entrara no ramo da crítica gastronômica. Confessou que chegou a sentir algum ciúme de meu sucesso prematuro, mas que logo nossas energias tinham sido canalizadas para a enfermidade que acometera Justin. Nesse momento, um nó me subiu à garganta e só não peguei meu lenço porque sabia que uma das câmaras estava me focando. Mas ele logo passou adiante e disse que fora um homem muito privilegiado. Não somente casara com a única mulher que amou como ainda era convidado de honra, várias vezes por semana, a dividir a mesa de bons restaurantes na companhia dela, com todas as despesas pagas. Fanfarrão, disse que mantinha a forma guiado por disciplina espartana, declaração que não estava de conformidade com a barriga proeminente e os suspensórios providenciais. Sim, ele lá tem seu charme, meu marido, e gostei de sentir o quanto era ligada a ele. É disso que se faz um casamento, na verdade. Quando deixamos o estúdio, a adrenalina de Denis estava alta. Sugeri que deixássemos o chinês “Hunan” para outro dia e disse que eu mesma lhe faria uma sopa naquela noite. Assim temos levado a vida, Denis Lawrence e eu, Martina.

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