Simi, ilha no mar Egeu.

 

Em Paris, chegou o outono. As árvores ainda estão frondosas, mas as copas começam a ganhar tons de ferrugem. Já não dá para sair sem agasalho e há uma espécie de ensaio geral para a entrada do frio. Estou aqui desde o último inverno. Colhido pela pandemia, atravessei a primavera e, para meu espanto, suportei o verão que, para sorte geral, só teve uns poucos dias saarianos. O mais são incertezas que estão hipotecadas aos humores do vírus e ao engenho humano. Nos longos dias de reflexão que me consumiram nesse período, consegui identificar o único fato isolado de que me arrependo. Na época da Copa do Mundo da África do Sul, quando recém completara 50 anos, tinha decidido morar na ilha de Simi, no Mediterrâneo Oriental, local que me encantara uns anos antes, numa longa navegação de cabotagem pelo Egeu, a bordo de uma goulette. Esbanjando saúde, estava convencido de que a vida em São Paulo chegara ao limite e de que o mundo do consumo me dava engulhos.

Novos projetos de vida me seguraram no Brasil. Fossem só os profissionais, teria sido mais fácil me desvencilhar. Desde os 30 anos, percebera nitidamente a falácia da abundância. Quanto mais dinheiro se tem, mais infernal é a vida. Um terço do tempo é dedicado a ganhá-lo, outro terço a protegê-lo da cobiça alheia – venha ela de onde vier – e o terço restante para investi-lo e multiplicá-lo. No final, isso vira uma jogatina e, curiosamente, mais adiante o dinheiro vai forrar os bolsos de quem nada contribuiu para construí-lo, através dos fios condutores do casamento, pela dinâmica da sociedade e do mundo dos negócios. De que valeu desperdiçar a vida nessa luta? Por que não dedicar seus dias a respirar ar puro, escrever, conversar e fazer o estritamente necessário para tirar o sustento, uma vez guardados os recursos mínimos para a chegada do inverno da vida, quando já não se puder viver sem a ajuda de terceiros? No mais, Simi daria a meus pulmões o que décadas de São Paulo tinham tirado: oxigênio.

Simi era minha Pasárgada. Lá sonhava em ter uma casinha branca, fazer incursões diárias ao mercado de peixe, participar da conversa fiada da rodinha de veteranos que se reunia no átrio da capela ortodoxa, ouvir palpites sobre a intensidade do siroco, ler grandes romances que me chegariam do continente, e escutar o ronco de Poseidon e Netuno, que sacolejava o assoalho do mar vez por outra para lembrar quem reinava nas zonas abissais. Adiei o projeto. Engavetei-o para examiná-lo mais tarde. Envelheci, o seguro-saúde ficou mais caro, os brônquios já não são os mesmos, os braços começam a não suportar tanto peso, nadar e caminhar longas distâncias castiga a região lombar. Os quilos de uma vida cujo epítome é a pandemia me fazem olhar aqueles tempos com a mais pungente das saudades. Se você tiver uma Simi na sua vida, não a adie. Largue as amarras e vá embora.  Não há projeto que se compare àquele que, só de pensar, o faz sorrir. É ele que o fará um dia chorar. A vida é curta, não espere.