Sérgio C. Buarque

Vamos imaginar que um deputado da bancada evangélica submetesse ao Congresso Nacional um projeto de lei de criminalização do consumo de álcool no Brasil. Absurdo? Não, para isso teria justificativas relevantes: (1) o consumo de álcool faz mal à saúde do usuário, gerando também um custo social; (2) o estado de embriaguez provocado pelo consumo, inibindo o estado de vigilância e a percepção de risco, pode provocar graves problemas sociais, agressividade, violência, morte e assassinato. Tanto que, em estudo do cientista britânico David Nutt, comparando com outras drogas (incluindo drogas pesadas como cocaina e heroina), o álcool assume a primeira posição em danos causados, tanto para o usuário quanto para a sociedade (publicado em 2007 no jornal científico The Lancet).

Digamos que, pelo projeto, qualquer cidadão que carregue ou tenha em casa mais de uma garrafa de uísque ou de cachaça, ou algum estoque semelhante de vinho (para ficar nas bebidas quentes) pode ser preso por consumo ou mesmo pela comercialização ilegal. Quais seriam as consequências desta legislação restrita? De imediato, a ilegalidade do consumo daria origem a um pujante mercado negro, com a produção e a oferta ilegal das bebidas, o que, seguramente, seria acompanhado do crescimento do crime organizado, faturando alto e aumentando o seu exército de criminosos bem armados. As fábricas de bebidas e as distribuidoras fechariam as portas, jogando milhões de trabalhadores no desemprego, grande parte dos quais seria empurrada para as atividades ilegais. Por outro lado, o Estado brasileiro, perderia bilhões de reais em arrecadação de impostos incidentes nestas mercadorias e no pessoal ocupado, incluindo contribuição previdenciária. Com bem menos dinheiro, os governos ainda teriam que ampliar o sistema de repressão, multiplicando os presídios e aumentando a força militar e a violência na guerra contra o crime organizado. Equação explosiva num Estado já quase falido.

Os defensores do projeto poderiam argumentar que o mercado negro levaria a um aumento do preço final das bebidas, o que tenderia a moderar o seu consumo (e, portanto, as suas consequências negativas), potencializando o medo do uso de um produto proibido por lei. Será? Tudo indica que a demanda de bebidas alcoólicas é quase inelástica; de modo que um aumento de preços pode levar apenas à substituição nos tipos de bebidas. Além disso, nada indica que a ilegalidade provoque uma elevação do preço final destas bebidas por conta dos custos de transação do mercado negro, porque os preços atuais já são muito altos, devido à elevada incidência dos impostos. Sendo ilegais a produção e a comercialização, desaparece o ato tributário, diminuindo o peso dos impostos no preço final do produto. O resultado seria, portanto, uma bilionária transferência de receita do Estado para o crime organizado, ampliando significativamente a desvantagem daquele no seu combate a este. A experiência desastrosa da Lei Seca, que vigorou por 13 anos nos Estados Unidos (de 1920 a 1033), confirma esta análise: não reduziu o consumo de álcool e, ao mesmo tempo, aumentou a criminalidade, corrompeu as instituições e promoveu o fortalecimento da máfia no país, tudo acompanhado da queda de receita pública e da elevação dos gastos no combate ao crime.

Vale considerar ainda que o mercado negro de bebidas alcoólicas, por ser ilegal, estaria livre de qualquer fiscalização e controle de qualidade por parte da ANVISA ou outro órgão público, expondo o consumidor a produtos de alta toxidade, com consequências graves para a sua saúde. Tudo indica, portanto, que a criminalização das bebidas alcoólicas seria um desastre geral para o consumidor e para a sociedade, sem desconhecer, contudo, os efeitos e os riscos inerentes ao consumo de álcool. Em vez de simplesmente proibir, o Estado pode promover campanhas de educação e informação para moderação do consumo e, principalmente, punir severamente as atividades públicas praticadas sob o efeito do álcool (como já ocorre na direção de veículos), e as eventuais consequências sociais negativas da embriaguês. Em vez de criminalizar o uso, castigar o crime que possa decorrer do excesso e do mau uso das bebidas alcoólicas.

A análise pode parecer desnecessária (o leitor perdeu seu tempo?) na medida em que parte de uma hipótese muito pouco provável, a aprovação de uma lei que criminaliza a produção e o consumo de bebidas alcoólicas. Mas ela levanta uma pergunta extremamente incômoda: até que ponto a reflexão em torno do álcool contribuiria para uma compreensão aprofundada da dramática realidade que vive o Brasil por conta da criminalização das drogas ilícitas?

 

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