Fernando Dourado

No jargão interno da Air France, quando o avião se aproxima do terminal para o encaixe da porta no finger, uma voz encorpada emana da cabine de comando e anuncia um enigmático: dernier virage. Isso significa que a tripulação pode desafivelar os cintos, destravar as saídas e se posicionar para o desembarque dos passageiros. Essa derradeira manobra de pista, na falta de uma imagem mais oportuna, se aplica bem à forma como vivi meu aniversário. Ao completar 59 anos, fiz a última curva de 90° da década. Por essa mesma ocasião em 2018, se tudo correr bem, eu adentro a casa dos 60. À guisa de consolo, pensarei que é melhor ser principiante num decênio virgem do que veterano no antecedente. Mas sabe-se lá. Certo mesmo é que cada um se consola como pode. Importante é negociar as prioridades à luz das restrições e dádivas, não raro resultantes da sutil combinação da fatalidade com a ventura. É talvez por isso que eu sempre tenha dissociado a data das comemorações efusivas – tenho o resto do ano para elas -, preferindo assumir certo recuo e fazer um balanço dos fatos que permearam a vida maior. É um exercício enriquecedor. O que não me impediu de tomar um drinque quando a noite caiu no último dia 29 na fronteira franco-alemã, a poucos quilômetros de uma casamata da Linha Maginot, resquício obsoleto da História, ilhado pela exuberância dos aromas primaveris.

Colocando o tema em perspectiva, embora incorrendo no risco de soar pretensioso, sinto que sou filho dileto da globalização. Ou da mundialização, segundo a preferência francesa. Se já trilhara um caminho internacional bem diversificado quando jovem, chegando aos 20 anos com um cartel de rodagem múltiplo em diferentes palcos geográficos, é forçoso admitir que entre 1978 e 1988 o mundo passou a padecer das náuseas de uma parturiente. O que evidenciava que algo estava a caminho. Dito de outra forma, era como se as cobras começassem a sair das tocas e, perdidas, ganhassem o asfalto. Ora, para um camponês chinês, o fenômeno é sinal perturbador de que um terremoto iminente se urde nas entranhas da Terra. Tamanhas evidências, contudo, não me autorizavam a pensar que a ordem mundial fosse sofrer tamanha reviravolta. Foi assim que, mal tendo entrado na casa dos 30 anos, tive a sorte de estar próximo de alguns dos grandes acontecimentos da História. Tanto de corpo presente quanto com a emoção aflorada. À frente da área internacional de um conglomerado industrial de envergadura, sentia que era meu dever antecipar no que pudesse o que a crônica da humanidade nos reservava. Entre missões solitárias à África subsaariana e festivas comitivas presidenciais em que lobistas melífluos ombreavam com ministros, fiz o beabá de um trader, abrindo espaço nos santuários de receita perene. Mas então a História se impôs à minha insignificância e me marcaria para sempre.

Assim, a outrora inexpugnável União das Repúblicas Socialista Soviéticas desmoronaria no bojo de uma conjunção de fatores inusitada. A saber, pela concomitância de um líder clarividente – egresso do próprio coração da nomenklatura -, da força silenciosa de um Papa polonês de alma aguerrida e da determinação de uma dupla que tocava de ouvido, formada por uma senhora de atitude férrea e quase paroquial chamada Margareth Thatcher e um ator de segunda linha de nome Ronald Reagan, cuja voz de veludo obliterava uma visão de mundo estreita e simplista, embora granítica. Daí ao esfarelamento do Muro de Berlim, estávamos a curto passo. Nesse contexto, reatando com caminhos que já trilhara em priscas eras, voltei ao Leste da Europa em estado de transe. Não era mais o rapaz curioso do final dos anos 1970. Investido das prerrogativas da função e embalado pelo entusiasmo de quem vira de perto o obscurantismo de antanho, achei que integrava minha missão ativar fluxos de comércio, comprar fábricas e reforçar o vetor de inclusão daquele espaço no mundo livre. Levando meu estadismo canhestro ao que parecia ser franco exercício de diplomacia corporativa, vivi à base de fé e encantamento. Mas o terremoto fora demasiado forte e só os anos acomodariam as camadas tectônicas em desalinho daquelas plagas regidas pelo dirigismo estatal. Daí concluí que nem tudo podia se traduzir em oportunidade imediata. Salvo pelas tchecas que se ofereciam à beira da estrada por dez marcos e uma cerveja.

Não se podia negar contudo que a Europa estava cada vez mais coesa. Exangue, a Rússia se apoiava nas cordas para não cair. Em igual medida, o líder que sucedera Mikhail Sergeyevich Gorbachev agora atendia pelo nome de Boris Nicolayevich Ieltsin. Este tinha uma inapetência pela gestão inversamente proporcional à sede pantagruélica que o rendia ao destilado nacional. O urso estava, portanto, trôpego e de garrafa na mão. De par com esse fenômeno transcendente, recrudescia a força intervencionista dos Estados Unidos em vários palcos geopolíticos. Era como se o Atlântico Norte encarnasse um eixo virtuoso e, afinal, tivesse perdido o medo de desmascarar as ditaduras e romper com as alianças típicas da Guerra Fria. Tudo em nome de seu evangelho igualitário e inclusivo, alicerçado pela força bélica, pela bulimia por combustível, pelo poder corruptor do dinheiro e pela crença de que o bem vencera o mal. Parecia sim que o mundo mudara e quem não se habilitasse ao credo do vencedor estaria fadado ao papel de mero espectador. Mesmo porque para alguns observadores, a História já acabara. O que viria pela frente seria uma transumância orientada pela obtenção de melhor nível de vida e pelo acesso a bens de consumo. Daí os russos que tomavam conta de Brighton Beach e Holon. Mas será que os contornos civilizacionais estavam mesmo mortos? Ora, como se o fim da bipolarização já não nos tivesse conduzido para muito além dessa Weltanschuung – ou mundividência -, as distâncias se encurtaram e a informação passou a viajar a velocidade impensável apenas uma década antes.

Mas isso não era tudo. Para coroar uma era de surpresas, tivemos o advento repentino de uma China pragmática e agressiva, que se apresentou muito à vontade no cenário global, como se jamais tivesse sabido o que fora um longo sono, quando não o ostracismo. Como atos simbólicos do momento, Hong Kong e Macau já tinham data certa para hastear novos pavilhões. No que concernia a minha pequena vida, as pulsações do planeta se tornaram a tal ponto aceleradas que vi chegada a hora de ejetar a cadeira dos aviões de carreira. Ou, pelo menos, de mudar de classe. Sairia da primeira para a econômica de bom grado, mas faria doravante as coisas à minha maneira. Com o urso russo capenga, o panda chinês serelepe e a águia americana a sobrevoar os minaretes do Oriente Médio, se robusteceu a visão de que no front interno brasileiro, nossa elite era lenta em captar o quadro que se configurava. Salvo talvez no agronegócio, não raro caudatário da escola das multinacionais. As contradições da economia brasileira – um imenso arquipélago de cartórios empresariais – eram pois fator de desestímulo para propugnar de fora para dentro o receituário que me parecia adequado a uma verdadeira estratégia de internacionalização. Tendo dado minha cota de contribuição às corporações mamutes, senti chegada a hora de singrar os continentes a meu feitio. Dispondo de mais tempo para mim, passei a viajar com vagar. Conquanto o mundo estivesse acelerado, nada mais me obrigava a sair dos aeroportos direto para os escritórios. Precisava sim voltar às paragens que conhecera para senti-las sob a perspectiva do homem da rua. E não de engravatados que se me assemelhavam.

Na virada do milênio, aos 41 anos, dúvidas pessoais quanto ao que queria da vida se dissiparam e assumi que, na verdade, as circunstâncias tinham me dado uma missão sob medida. Como costuma acontecer daí até os 50, não vi o tempo passar. Deve ser por isso que se diz ser essa a melhor das fases na existência de um homem. Com a autonomia operacional de um chefe de redação ou de um estadista sem Estado, vivi essa época com intensidade, refém da utopia de que nada era tão belo quanto a inclusão do ser humano em ambientes de diversidade cultural, de preferência neoliberais. Por outro lado, se o Brasil estava se enredando pelas vielas do populismo, isso sequer era de todo ruim. Pela primeira vez em décadas, ser brasileiro mundo afora era quase um atestado de oportunidade. Se passara a vida acostumado a ouvir que o risco-país era sério entrave a que déssemos maiores passos, as reticências conheceram uma trégua. A afluência geral, a aversão aos céticos e a cegueira oportunista dos agentes à realidade adversa que então se formava, fizeram com que eu chegasse a 2010 crente de que o Brasil não voltaria a sofrer grandes solavancos em meu tempo de vida. E que as aberrações nacionais já tinham sido metabolizadas, traduzindo um jeito apenas diferente de fazer as coisas. Ingenuamente, concluí que países são como pessoas. Tem gente que precisa da adrenalina do improviso e detesta a partitura do planejamento. De qualquer forma, a estrada era meu lugar.

Mesmo assim, em 2008, uma infiltração subterrânea que se instaurara sob a égide da exuberância irracional, sacudiria as finanças internacionais, manchando até a fachada do prédio do euro. Vi então que não estivera de todo equivocado quando dizia a amigos do Sul da Europa que algo de muito estranho se passava ali. Como é que sendo a fábrica, a tecnologia e os clientes os mesmos, e estando os concorrentes muito mais aguerridos do que eram antes, como se explicava, repetia, que todos eles estivessem trocando o carro a cada dois anos, comprando os apartamentos de que tinham sido inquilinos por décadas e viajando não mais para a Costa Brava, e sim para Nova York e Tóquio? Orgulhosos, eles tergiversavam e diziam que eram os dividendos da paz, depois de duas guerras mundiais e outras tantas locais. O Brasil, a seu turno, siderado pela fuga embalada do populismo, fingiu passar ao largo do tsunami e reiterou a aposta na demagogia anticíclica. À frente do País, não tínhamos mais sequer o líder enfático e carismático que chegou a empolgar o mundo. Mas sim uma presidente amorfa e nauseabunda, analfabeta crassa em estadismo e caolha em cosmovisão. Pois bem, dos 52 anos até agora, à medida que a distopia foi tomando forma, descobri os prazeres das pequenas coisas. Não mais atrelaria minha sorte à de um País. Mas, convenhamos, vários deles na aldeia global também responderam de forma regressiva ao que a mundialização lhes proporcionara. Ou, no entender de muitos, ao que ela lhes subtraíra. Assim, se alguns andam a rosnar para essa senhora balzaquiana, não pretendo renegá-la. Pois ela é nada menos do que o Zeitgeist em que cresci. O espírito de meu tempo e de minhas circunstâncias.

Hoje, um dia depois do discreto aniversário e efetuado o dernier virage, folheei os diários da data em que completei 59 anos. O que vi? O Presidente dos Estados Unidos acaba de fazer tabula rasa dos acordos globais para a preservação climática, reiterando que seu mundo começa no Bronx e termina na Flórida. Em Londres, a sinistra Theresa May, arquétipo de uma gerente de funerária, assina os papéis de divórcio que oficializaram o Brexit. Ato continuo, a Escócia voltou a reivindicar autonomia e dessa vez ninguém ousará lhe questionar a procedência do pleito. Quanto às Irlandas, entre a paisagem de verdor celta que vai de Belfast a Dublin, teremos em breve a construção de barreiras físicas para controlar o trânsito de pessoas e mercadorias. Pergunto: quem poderia imaginar tamanho retrocesso? O que não dizer das tensões emocionais que brotarão no epicentro daquela que já foi considerada a fronteira mais crítica da Europa Ocidental? No mais, Turquia e Rússia se enredam em crises identitárias por conta da delinquência de suas lideranças. Por outro lado, e aqui vem o bom, a Dinamarca inova paradigmas abrindo um posto com status diplomático no Vale do Silício. E a China trombeteia sua vocação imperial e pragmática ao rasgar a Rota da Seda com uma imensa composição ferroviária que reedita as pegadas de Marco Pólo. Esse é o inventário do primeiro dia do dernier virage da década. De utopia em distopia e vice-versa, vamos em frente. Bom é poder acompanhar tudo isso.

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