Clemente Rosas

A notícia da próxima aprovação de uma Emenda Constitucional dando contorno jurídico à vaquejada como atividade legal, não infratora das disposições condenatórias dos maus tratos aos animais, motivou-me a abordar o tema, objeto de tantas opiniões antagônicas, eivadas de emocionalismo.

Minha primeira impressão é de que os que combatem esse espetáculo tão tradicional e valorizado em nosso interior são criaturas urbanas, que não conhecem a dureza da lida com o gado nas caatingas nordestinas.  Pois o que se vê nas vaquejadas é praticado, até com mais aspereza, no dia-a-dia dos nossos peões, em seu trabalho de deslocamento de rebanhos ou de resgate de reses extraviadas.  E não poderia ser de outra forma.

Nos pampas gaúchos, usa-se o laço ou a boleadeira para deter animais em fuga.  (Em ambos os casos, ressalte-se logo, os meios utilizados podem ser ainda mais agressivos do que a derrubada do bicho pela cauda.  O laço, se cair até abaixo da linha dos chifres – o que pode sempre acontecer com bois de chifres curtos – vai apertar o pescoço da “vítima”.  A boleadeira, jogada contra as pernas da rês fugitiva, pode quebrá-las com o choque das suas três pedras).  Mas nas caatingas do Agreste e do Sertão nordestinos esses instrumentos são inaplicáveis.  Não há espaço físico para operar com eles.

Foi tendo de avançar pela garranchada hostil, cheia de cactos espinhosos, em perseguição a novilhos desgarrados, que o vaqueiro nordestino desenvolveu a técnica da derrubada pelo rabo.  Até mesmo a “guiada” – espécie de vara de ferrão curta – referida por Euclides da Cunha em seu livro clássico, foi abandonada nos dias de hoje, como instrumento para esse trabalho.

O domínio do vaqueiro sobre o boi, que lhe permite trazê-lo de volta ao rebanho ou ao curral, cumpre-se com a simples derrubada.  Depois dela, o garrote não se atreve mais a correr, pois sabe que, se o fizer, será derrubado novamente, e então se deixa conduzir.  Como dizia Berto, o vaqueiro do meu pai:

– Gado só toma juízo depois que leva uma queda.

Quando a derrubada se dá no mato, o vaqueiro solitário tem mais um recurso.  O cavalo, bem treinado, “risca” logo após a queda do garrote, para que o cavaleiro pule sobre ele, ainda no chão, vire-lhe o pescoço, impedindo que se levante, e aplique-lhe na cara uma máscara de couro, que lhe deixa apenas uma precária visão lateral.  Aí é que o bicho não pode correr mesmo.

Nas fazendas em que ainda existem matas, acontecem também as “pegas de boi”, em que essa operação é convertida em esporte.  Os vaqueiros se inscrevem previamente, aguardam o momento em que os garrotes são soltos e se embrenham no mato, e saem em sua perseguição, isoladamente.  Ganham prêmios os que primeiro retornarem, tangendo cada um a sua presa, devidamente mascarada.

Se o boi derrubado não quer se levantar, o cachorro, que o havia farejado, e vinha guiando o vaqueiro pelo matagal com seus uivos, ataca-o ferozmente, mordendo-lhe o focinho.  O homem também pode ajudar nessa eventualidade, vergando-lhe a cauda para cima e assim machucando as suas vértebras.  O animal, em sofrimento, acaba por erguer-se.  E se resolver empacar em pé, a técnica é jogar-se o cavalo, de peito, contra ele, empurrando-o.  Como se vê, não há lugar para a delicadeza nessa faina.  E isso não é mais que o dia-a-dia da lida com o gado, nos sertões do Nordeste.  Impossível de coibir.

Na vaquejada, solto o boi em um curral alongado, com solo mais ou menos fofo, ele é perseguido por dois cavaleiros, um de cada lado, para que não se encoste em uma das cercas laterais, dificultando a manobra da queda e arriscando-se a algum ferimento, ao cair.  Até o fim da pista, deve ser derrubado.

Já vi várias vezes o espetáculo, que sempre transcorreu normalmente, sem maiores traumas, mesmo nas quedas mais espetaculares, quando as quatro patas do animal giram em semicírculo por sobre o corpo.  É quando se diz que “o mocotó passou”.  E só uma vez vi um caso de acidente com perna quebrada, em tombo de mau jeito.  Ao lamentar a ocorrência, ouvi de outro espectador:

– Isso não é nada.  Esse gado já vai para o matadouro em alguns dias.

Convenhamos: as mortes são uma violência maior que uma pata quebrada.  Poderíamos evitá-las?  Seremos todos vegetarianos?

Somos levados a pensar que a má disposição contra as vaquejadas só se explica por tratar-se de um esporte nordestino.  Os rodeios, que atraem multidões nos Estados do Sul, são mais cruéis, inclusive para os cavaleiros.  Apertam os testículos dos touros, para que saltem mais furiosamente, e, da forma como pulam, torcendo os quadris, podem, na descida, pousar as patas traseiras sobre o corpo do peão, que só se mantém no seu dorso por alguns segundos.  O peso do animal é o bastante para fender a cabeça ou esmagar a caixa torácica do cavaleiro.  Por sua vez, as simples corridas de cavalo causam estresses aos animais, e podem provocar fraturas em suas patas, como já observou o consagrado cronista Artur Carvalho.  Chamava-se “Boticão de Ouro” o cavalo que a TV mostrou, há alguns anos, equilibrando-se em três patas, ao abandonar a corrida.  Esses não servem mais, são simplesmente sacrificados.  E ninguém fala em acabar com o rodeio ou com o turfe.

Deixemos, pois, de sentimentalismo inconsequente, e preservemos essa bela tradição nordestina, tão importante como a cantoria e os sanfoneiros.  E agora também convertida em atração turística, geradora de empregos e fomentadora da economia regional.  Um vaqueiro encourado tem a imponência de um guerreiro medieval.  E o espetáculo, embora épico, não é sangrento, como o das touradas da Espanha e do México, louvadas por tantos, até hoje.