Clemente Rosas

É claro que não foram apenas animais silvestres que alegraram minha infância.  Além da criação de coelhos e porquinhos da Índia, e da convivência temporária com criaturas mais exóticas, tivemos estreito contato com caninos, equinos e bovinos, que merecem algum espaço nesta evocação.

Rigoleto, Manon, Peri…

Com nomes tirados de ópera italiana, e das literaturas francesa e brasileira, todos da raça “fox terrier”, foram esses os primeiros cães da família.  De um dos tios, da tia solteirona, de minha avó, eram criados soltos, num quintal comum às três casas de praia.  Depois veio o nosso Guri, o grande companheiro de toda a infância e adolescência dos três irmãos, produto da segunda gestação de Manon, a matriarca.

Rigoleto, por comodismo do meu tio, foi, a certa altura, deixado na praia, após a temporada de verão, aos cuidados do caseiro.  E assim ficou permanentemente.  Manon e Peri acompanhavam sempre as suas donas, cada uma enaltecendo e defendendo a sua cria.  Quando jogavam gamão, com os dois animais por perto, qualquer comportamento inconveniente – os cinófilos saberão bem do que falo – era atribuído por uma à mascote da outra.  E tínhamos nova disputa, além da que rolava com os dados, no tabuleiro.

Nunca testemunhei um gesto de carinho da minha avó para com o seu Peri.  Mas ele a assumia, incondicionalmente, como sua senhora.  Nos pequenos passeios que dava à tarde, pela orla da praia, acompanhada por ele, levava um chicotinho de palma de coqueiro para castigá-lo, toda vez que o pobrezinho levantava a perna diante de um tronco, no costumeiro gesto instintivo de demarcação de território.  Quando ia visitar minha mãe, na casa ao lado, e esquecida dele, fechava a porta, o fiel acompanhante contornava a casa, entrava pelos fundos, e ia postar-se aos pés da sua dona.

Já minha tia, com aquele sentimento de “ampla maternidade das solteironas” de que falou Lima Barreto, dedicava-se a criar os muitos filhotes de Manon, a quem dava mamadeiras, quando necessário, como a bebezinhos.

Mas não havia veterinários para bichos pequenos naquele tempo, em João Pessoa.  Com as doenças conseguia-se lidar, de alguma forma, mas naquela fase terminal, em que os animais já não se prestam a nada, sofrem, e mesmo os manuais de cinofilia recomendam um sacrifício humanitário, com injeções indolores, a coisa se complicava.  Não havia possibilidade de eutanásia.

Manon, já cega, sem andar, cancerosa, foi envenenada por meio de sanduíches com estricnina, e teve morte sofrida, com ganidos de dor.  Rigoleto, com uma infecção supostamente gonorreica, que poderia, em tese, contagiar pessoas humanas, foi abatido a tiros, por um amigo nosso, filho de militar, com nosso acompanhamento.  Só por essa coautoria, e pelo fato de ter presenciado a cena, compatível em tudo à da execução da cadela Baleia pelo vaqueiro Fabiano, na versão filmada de “Vidas Secas”, sinto remorso até hoje, e a lembrança me dói.

E finalmente Guri, de quem falei pouco, por ser impossível registrar tantos anos de estreita e carinhosa convivência conosco – só interrompida quando, atraído por alguma cadela no cio, desaparecia de casa, voltando dias depois, magro, sujo e faminto – não teve destino melhor.  Inválido, quase sem movimentos, foi levado por meu pai para morrer na fazenda.  Lá, tratado por gente estranha, parece ter compreendido que nada mais tinha a esperar, e tornou-se agressivo, mordendo quem se aproximasse.  Acabaram com ele.

Alazão, Calçado e Moreno

O primeiro tinha o nome da sua cor: um amarelo avermelhado, ou marrom amarelado, ruivo talvez, como define a palavra de origem árabe.  Era o mais velho dos cavalos, indicado para ginetes da mais tenra idade.  Não ia além de um chouto desconfortável e um galope cansado, e deixava-se apanhar docilmente.  Era por ele que todos começávamos.

Já Calçado – com manchas brancas nas patas que lhe valeram o nome – era o cavalo mais árdego, mais fogoso que jamais conheci.  Quando meu pai foi montá-lo pela primeira vez, perguntou ao administrador da fazenda pelas esporas, ou pela “macaca”.

– Precisa não, doutor.  Quando o senhor botar o pé no estribo, ele já sai andando.  E pra correr, basta levantar o braço.

Não havia nenhum exagero nisso.  Por tal razão, meu pai não gostava de que o montássemos.  E hoje vejo como ele estava certo.  Na pré-adolescência , não tínhamos força nem traquejo para dominá-lo, ainda mais com uma só das mãos, pois a outra ficava agarrada no “santo antônio”, para não pular fora da sela.  Quando o púnhamos para correr, só parava diante de uma porteira.  Imagino, agora, como deveria frustrar-se e irritar-se, por se perceber sem comando.

Moreno era o cavalo de Berto, o vaqueiro.  Feio de cor – um marrom sujo, como o dos burros – era, no entanto, de alto conceito, como cavalo de campo.  Dizia-se que, na perseguição aos garrotes pela caatinga, jamais caía ou tropeçava.  E não temia nem os espinhos de uma plantação de agave, normalmente refugada por outros animais.

Foi dele que levei a maior das minhas quedas, de um histórico de duas ou três.  Nesse dia montava no pelo, não tínhamos tempo para um passeio mais longo em sela.  Nada de extraordinário, fazíamos isso regularmente: para trazer os cavalos do pasto até o local de selar, e, depois do passeio “oficial”, para levá-los ao banho no rio. A única recomendação do meu pai, quase obsessiva, era, quando montando em sela, não aprofundarmos os pés nos estribos, para não sermos arrastados, na ocorrência de eventuais tombos.

Mas subestimei o poder de Moreno.  Cavalo de campo não tem meio termo: ou vai na marcha ou dispara.  Uma lamborada foi o bastante.  Em alta velocidade, bruscamente, deu uma “entrada” para fora da estradinha que levava à nossa casa, esbarrando no armazém de algodão, junto ao curral, trajeto mais costumeiro para ele. Fui jogado de encontro à parede áspera, e só o remontei uns bons minutos depois, todo escalavrado.

Alazão morreu de velho, Calçado foi trocado pelo administrador, num péssimo negócio, por um cavalão de galope saltado, que só tinha boniteza, e Moreno, já idoso, foi vendido por Berto, que proclamava nunca se desfazer dele.  Depois comentou:

– Tive pena de ver o cavalo velho na cangalha…

A constatação é dolorosa: só há lugar para a generosidade ou a delicadeza quando existe alguma folga.  Não é o caso dos vaqueiros, nem da gente do campo.

Pichitita, Febrinha e Salomé

Assim se chamavam as vacas holandesas que meu pai transferia, a cada verão, da granja, nos arredores de João Pessoa, para o sítio do tio Nelson, em Cabedelo.  Elas forneciam o leite para os adultos e as muitas crianças das três casas vizinhas da família.

Pichitita, como a palavra revela, era miudinha, e tinha uma das tetas atrofiada.  Mas era boa de leite, e amanhecia vazando pelas três tetas restantes.  Febrinha devia o nome a um longo episódio de febre aftosa, que a debilitou, e limitou sua produção.  As duas se completavam.  Um tratador cuidava delas, e meu pai e nós, irmãos mais velhos, ajudávamos na ordenha.  Eram mansas e cordatas.

Mas, em certa temporada, veio Salomé, vaca jovem, de primeira cria, que estranhava todo mundo, e deu trabalho.  Só a muito custo passou a aceitar a proximidade do tratador.  Quanto a nós, varias vezes tivemos de nos valer das pernas para escapar às suas arremetidas.  De breve percurso, felizmente, e sempre com pré-aviso, como é próprio dos animais. Enfim, não guardamos mágoas dela.

Ao final deste texto, cabe uma reflexão sobre o que podemos aprender com seres como os aqui retratados.  Pois me parece que a extraordinária evolução do cérebro humano fez com que suas funções mais complexas embotassem virtudes que encontramos, límpidas, nos animais.

Em todos, a lealdade.  Ressalvado o caso da predação dos carnívoros, que é de outra natureza, nenhum animal ataca sem prévio aviso.  O cão rosna e mostra os dentes, o cavalo murcha as orelhas, a vaca acende as narinas e bufa.  Só o bicho homem pode ser traiçoeiro no ataque.

Nos cavalos, a energia, a tenacidade e a perseverança.  Um cavalo, por exigência do seu cavaleiro, pode correr até cair exausto, às vezes morrer.

Nos cães, além da proverbial fidelidade aos seus donos, a coragem.  Como lembrava meu pai, o cachorro é o único animal que, a serviço do homem, enfrenta outro animal que sabe ser mais forte do que ele.

E quanto aos bovinos, em especial às vacas, a doçura com que fornecem o alimento dos nossos filhos.  Ninguém as retratou melhor do que Jorge de Lima, no soneto de belos versos alexandrinos que transcrevo, de memória, como arremate:

A garupa da vaca era palustre e bela 

Uma penugem havia em seu queixo formoso

E na fronte lunada, onde ardia uma estrela

Pousava um pensamento, em constante repouso 

Essa, a imagem da vaca, a mais pura e singela

Que do fundo do sonho eu às vezes esposo

E confunde-se, à noite, à outra imagem daquela

Que, ama, me amamentou, e jaz no último pouso

Escuto-lhe o mugido, era o seu acalanto

E o seu olhar tão doce ainda sinto no meu

O seio e o úbere natais irrigam-me em seus veios

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto

Semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu

O leite e a suavidade a manar de dois seios.