Paulo Gustavo (*)

Marcel Proust (1871-1922).

Muita gente supõe que a obra Em busca do tempo perdido é um conjunto de sete romances. Nada mais equivocado. A Busca é um único e grande romance, dividido em sete volumes. A princípio, Proust queria escrever um livro único, total e até sem qualquer parágrafo, ou seja, uma espécie de imenso maciço verbal. Mas a obra impôs suas próprias divisões e, além disso, teve que ser publicada aos poucos. Esse paulatino surgir da Busca muito contribuiu para sua incompreensão inicial. Mas isso é uma outra história.

Em 1913, como se sabe, Proust, após ser recusado por várias editoras (inclusive a Gallimard, que posteriormente viria a ser sua casa editorial) publica pela Grasset o primeiro e impactante volume de seu romance: No caminho de Swann. A Primeira Guerra Mundial se encarregaria de avolumar a obra proustiana, fornecendo-lhe uma pausa pública e uma oportunidade criativa para o autor, o que inflaria o romance, então apenas previsto para três volumes, dos quais até o último já estava pronto! Ou semipronto, pois é fato que nele Proust incorpora a sombria Paris da Guerra, o que não seria possível evidentemente antes da própria guerra.

O segundo volume — À sombra das raparigas em flor — seria encarado como um romance autônomo. Presumivelmente para que ganhasse, como de fato ganhou, o Prêmio Goncourt (diga-se de passagem, que ambicionado e cavado pelo próprio autor!). Finalmente, estava também pronto (ou semipronto, porque Proust vivia eternamente acrescentando novos trechos à sua obra) o então planejado último volume: O tempo redescoberto (ou reencontrado), livro inclusive decisivo para o conhecimento das concepções poéticas do autor. Foram então acrescentados: O caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A prisioneira e A fugitiva.

Para muitos críticos, Proust não teria terminado sua obra. Pessoalmente, acredito que terminou, e para tanto me louvo na declaração de sua governanta, Celeste Albaret, em Senhor Proust, quando diz que ele comentou com ela que havia colocado a palavra “fim” no seu grande romance. É evidente, no entanto, que Proust, por sua própria natureza, não estava disposto a concluir coisa alguma, pois trabalhava obsessivamente por acumulação, ou seja, uma vez que tivesse vivido mais, é provável que a Busca fosse ainda mais extensa, uma obra sem fim e para a qual o fim, convenhamos, pouco importa.

Proust, não obstante, ter morrido jovem para nossos padrões atuais, aos 51 anos, não foi um autor que desde jovem tenha acertado a mão. Só depois de tentar e de muito exercitar-se é que seu gênio literário aflorou por completo. Tinha então cerca de 40 anos. Já escrevera muito, mas não encontrara o seu caminho nem a grande energia criadora que vai gerar sua obra genial. Treinara muito, mas ainda não encontrara seu grande jogo.

Se olharmos para a biografia de Proust — tão pobre de aventuras e de vida prática, sempre ameaçada pela asma e por outras enfermidades —, logo veremos que a sua vida social nos diversos salões da Belle Époque parisiense foi um fator decisivo para o futuro autor da Busca, da mesma forma que sua vida familiar, toda ela transfigurada pela criação ficcional e por uma reflexão que não hesito em chamar de obsessiva. Uma reflexão que não se camufla na Busca, mas que se integra à sua trama como uma vitalidade do espírito. Numa síntese muito redutora, pode-se dizer que a Busca é de fato uma busca pelo que há de espiritual no ser humano. Não espiritual no sentido religioso, longe disso, mas num sentido amplamente metafísico, de profundidade da consciência e de orientação existencial. Nessa procura pelo “espírito”, Proust ambiciona apontar pluralidades insuspeitadas, mostrar que o ser humano está em constante mutação e que as contradições são uma fonte de beleza e sabedoria.

Como autor e analista do humano, o jovem Proust viu e ouviu muito. Depois, na maturidade e na sua vasta obra, decidiu como que transpor sua arte de causeur e começou a falar, não a falar só por si, mas por todos, exibindo a polifonia da vida social.  A propósito, Walter Benjamin, em seu ensaio A imagem de Proust, chamou a Busca de um “Nilo da linguagem”, observando que o escritor “reconstrói toda a estrutura da alta sociedade sob a forma de uma fisiologia da tagarelice”. E é verdade. O próprio narrador enquanto herói nos aparece lacônico e discreto, mas sua voz nos traz todas as vozes e quase sempre com a impiedade do distanciamento crítico. Sua ironia e seu tom se superam a cada vez que os encontramos nos lábios de personagens como o Barão de Charlus e da Duquesa de Guermantes. O que o autor calou, mas viu e ouviu como ninguém, aflora na Busca como a fala e o discurso que só encontramos nas grandes confissões.

Até o próximo encontro.

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 (*) Paulo Gustavo, Mestre em Teoria da Literatura e membro da Academia Pernambucana de Letras