A ópera é vista como puro exagero até por fãs apaixonados da música clássica. Afinal, há melhor termo para uma arte que une enredos intrincados, textos incompreensíveis, orquestração enfática, interpretação hiperbólica, encenação exótica e cantores temperamentais? Operístico virou sinônimo de extravagante. E, no entanto, novos adeptos se somam constantemente às legiões de fiéis adoradores da ópera.
Uma alma distraída pode ser sensibilizada inicialmente pelo carisma de uma diva na televisão, um coro inesquecível no rádio ou a emoção de uma récita ao vivo. Qualquer que tenha sido o incentivo, as pessoas sempre se lembram do momento em que a ópera entrou em suas vidas. A ópera é uma experiência emocional, e mesmo íntima. Não podemos, porém, ignorar sua essência teatral: a história, o texto e a música convergem na expressão de sentimentos fortes. As palavras podem ser cantadas em muitas línguas: italiano, francês, inglês, russo, mas a música em si não requer tradução.
Para muitos pode parecer tentador ver na ópera uma forma artística artificial e mesmo forçada. Ela nasceu há pouco mais de quatro séculos na terra europeia que lhe deu o nome e muitos de seus maiores compositores: a Itália. Mas o ato de cantar – o amor, a traição, o sofrimento ou a alegria – é mais antigo que a história documentada, inseparável das próprias paixões humanas. Assim, o que os primeiros criadores da ópera fizeram foi dar uma nova forma lírica e dramática a sentimentos imemoriais.
Sucessivas gerações de compositores e libretistas – os autores dos textos musicados – capturaram a sensibilidade operística de suas épocas. E à medida que a popularidade da ópera crescia, multiplicando-se os teatros concebidos em função de suas necessidades, ela também se tornou uma arte internacional. Cantores, compositores, poetas, cenógrafos e figurinistas cruzavam a Europa e logo levavam a ópera também ao Novo Mundo e a outras partes.
E, afinal, o que é ópera?
A inigualável força emotiva da música não é nenhum segredo, mas o particular poder de atração da ópera está essencialmente na voz humana, talvez o mais tocante dos instrumentos. Ela transmite emoção mesmo se as palavras não são compreendidas, e cantores de talento podem dar vida às partituras e enredos mais batidos. O prazer de voltar às óperas queridas explica como uma arte pode se embasar em nomes como Mozart, Verdi e Wagner e num repertório de cerca de 150 títulos.
Mas é um mistério que poucas óperas tenham sobrevivido e milhares sido esquecidas. Algumas já lotaram casas e hoje nunca são montadas. Outras, vaiadas na estreia, tornaram-se favoritas. E há também as modas: um dia o máximo da arte, a grand opéra francesa, desapareceu; em compensação, a ópera renascentista e barroca foi redescoberta com entusiasmo. Hoje, a ópera contemporânea interessa apenas a uma minoria, mas novas obras são compostas e algumas poucas entraram para o repertório.
Os enredos também têm importância. A partitura pode ser gravada em estúdios ou apresentada em versão de concerto, mas a ópera nasceu como teatro musicado, ou seja, música para um texto (libreto) destinado ao palco. É verdade que a maioria das pessoas se lembra apenas do nome do compositor, mas mesmo os maiores deles sempre valorizaram um bom libreto. A trama pode vir da mitologia grega ou da história romana, de Shakespeare ou Schiller, de épicos históricos, dramas românticos ou das farsas da vida cotidiana; o mais importante é que se valha da poesia do idioma para expressar todo um leque de emoções. O compositor explora todos esses ingredientes do drama humano. Assim, as maiores óperas podem tratar de violência, avareza, ambição, intriga, traição, reconciliação e morte, mas também podem exalar humor, alegria, paixão e amor.
Um público possessivo
Partitura e libreto transformam-se numa ópera através das vozes dos solistas e do coro, apoiadas pela orquestra e a encenação. Quando todo esse conjunto funciona, os criadores da ópera podem ficar satisfeitos. Só que, como se sabe, eles raramente estão vivos. O papel de juiz cabe ao público, onde há novatos no mundo da ópera e veteranos de uma infinidade de produções, todos com opiniões nutridas por fortes paixões. Na verdade, o público proclama seu veredicto com vaias ou aclamações, por um profundo sentimento de possessividade em relação à ópera.
Mas é raro o amante que gosta de todas as óperas. Alguns chegam à beira do radicalismo, endeusando um compositor para desdenhar de outro. Os admiradores de Wagner, por exemplo, parecem uma seita. E há os que preferem as obras dramáticas de Verdi, enquanto outros adoram o bel canto de, digamos, Bellini. Os públicos russo e tcheco mostram-se sempre fiéis às óperas nacionais, enquanto os franceses tomaram a frente do renascimento da ópera barroca.
Ao mesmo tempo, essa arte de que o escritor e pensador inglês Samuel Johnson zombava como “uma forma de entretenimento exótica e irracional” continua atraindo adeptos. E o glamour das estrelas faz diferença nisso. Não há mais megadivas como Maria Callas, mas sempre surgem estrelas: Anna Netrebko, Cecilia Bartoli, Juan-Diego Flórez ou Sir Bryn Terfel num elenco garante casa cheia. Para atender a essa demanda, os teatros de ópera são reformados e outros são construídos. Proliferam os festivais do gênero, multidões assistem a récitas transmitidas ao vivo em telas instaladas em praças e parques. Séculos depois de nascer, a ópera vai bem, obrigado.
Como tudo começou?
A ópera foi mais um fruto do Renascimento italiano. Assim, não é por acaso que tem raízes na exuberância criativa de Florença. Na última década do séc. XVI, um grupo de artistas plásticos, músicos e poetas empenhou-se em promover na cidade um renascimento do teatro grego. Mas se saiu na verdade com a ideia de que essas histórias podiam ser contadas em forma de opera in musica – “uma obra musical”.
Claudio Monteverdi é considerado o pai da ópera porque levou um passo adiante a experiência florentina: com L’Orfeo, estreada em Mântua em 1607, ele envolveu o seu público num drama lírico. A nova arte rapidamente se espraiou por outras cortes e chegou a Veneza – onde, com a inauguração em 1637 do primeiro teatro de ópera da cidade, atingiu um novo público. No fim do século, Veneza tinha nada menos que 17 casas de ópera, e estava sacramentado o amor dos italianos pelo gênero. À cidade nunca faltaram compositores, e Antonio Vivaldi foi a grande estrela no início do séc. XVIII. As cortes europeias também queriam o novo divertimento, e eram os italianos que muitas vezes o forneciam. Na França, a ópera foi introduzida pelo italiano Giovanni Battista Lulli, mais conhecido como Jean-Baptiste Lully, que foi compositor oficial de Luís XIV. O alemão Georg Friedrich Händel, que teve parte de sua formação na Itália, popularizou a ópera na Londres do séc. XVIII.
Reformando a ópera
O modelo que prevaleceu em boa parte dos séculos XVII e XVIII foi a opera seria, com a narrativa em diálogos cantados – os recitativos – e os momentos de maior emoção nas árias, em que os solistas, muitas vezes castrati (homens castrados antes da puberdade para preservar o registro agudo da voz), exibiam seu virtuosismo. A ópera napolitana rompeu com esse estilo solene, introduzindo a humorística opera buffa, que também exigia grande técnica dos cantores.
No fim do séc. XVIII, dois músicos inovaram. Em Viena, Christoph Willibald Gluck foi figura de proa de uma reforma que mudou o eixo operístico do exibicionismo vocal para a expressividade dramática. Seu Orfeu e Eurídice, em particular, abriu caminho para o primeiro gênio indiscutível da ópera: Mozart.
Com um legado de opera seria e opera buffa e também do Singspiel alemão, um tipo de ópera com diálogos falados no lugar de recitativos cantados, Mozart, além de explorar esses gêneros, transformou-os, envolvendo a ousadia de seus libretistas em música da rara inspiração. Hoje a sua fama se deve principalmente a quatro obras-primas da maturidade: As bodas de Fígaro, Don Giovanni, Così fan tutte e A flauta mágica. Na prática, a história da ópera pode ser dividida em antes e depois de Mozart.
Influenciada por Gluck e Mozart, e com seu natural instinto melódico, a música italiana gerou no séc. XIX cinco gigantes. Gioacchino Rossini compôs 39 óperas entre os 17 e os 37 anos, abandonando em seguida a composição. Em óperas cômicas como O barbeiro de Sevilha e La Cenerentola, ele aprimorou o bel canto, canto floreado e virtuosístico adotado por seus sucessores Vincenzo Bellini e Gaetano Donizetti.
Seguiu-se um compositor de grande impacto: Giuseppe Verdi criou uma série de obras memoráveis e personificou o Risorgimento, a revolta dos italianos contra a ocupação austríaca. Várias de suas óperas, em especial Nabucco, eram metáforas dessa luta, embora as mais populares – Rigoletto, Il Trovatore e La Traviata – sejam profundamente românticas. Seu sucessor, Giacomo Puccini, também foi muito atraído por histórias de amor trágicas. Cheias de melodias memoráveis, suas maiores óperas – La Bohème, Tosca e Madama Butterfly – centram-se em heroínas infelizes.
Paris no centro das atenções
Embora a ópera italiana preservasse seu espaço, a partir da década de 1820 Paris se tornou a capital operística da Europa, atraindo compositores de todo o continente que exerceram grande influência. Rossini, Donizetti e Verdi trabalharam lá. Um exilado alemão, Giacomo Meyerbeer, criou o espetáculo conhecido como grand opéra: óperas de cinco atos com libretos históricos, cenografia monumental e longos interlúdios dançados. Outro alemão, Jaccques Offenbach, inventou a opereta, que lhe granjeou grande popularidade em Paris e muitos outros admiradores em toda a Europa.
A ópera francesa teve de abrir caminho próprio. Hector Berlioz deu as costas à grand opéra em duas poucas obras líricas. Charles Gounod e Jules Massenet, que estudaram em Roma, fizeram nome com melodiosas óperas italianizadas. Georges Bizet foi menos prolífico, mas sua Carmen, com a ambientação exótica, a ardente história de amor e as melodias irresistíveis, fez seu nome conhecido em todo o mundo. Mas seria de outro inconformista, Claude Debussy, a ópera francesa considerada a mais revolucionária de sua época: Pelléas et Mélisande.
O romantismo alemão
Curiosamente, dos grandes compositores alemães de música instrumental no séc. XIX, só Beethoven foi atraído pela ópera, e compôs apenas uma, Fidelio. Já Richard Wagner interessou-se apenas pela ópera, e revolucionou a arte com partituras sem repetições, orquestração expressionista, harmonias incomuns e grandes “arcos” melódicos. Com libretos inspirados no romantismo alemão, abraçou com fervor elementos da história teutônica. Em suas primeiras óperas de peso, Tannhäuser e Lohengrin, forjou um estilo romântico cujo auge seria Tristan und Isolde. Mas é admirado, sobretudo, pelo monumental ciclo de quatro óperas de O anel dos Nibelungos.
Duas gerações de compositores tentaram sair da sombra de Wagner. Um dos primeiros a consegui-lo foi Richard Strauss. Em suas obras iniciais, elevou a um novo patamar o radicalismo de Wagner. Depois desenvolveria o romantismo do antecessor e até se inspirou em Mozart nas populares O cavaleiro da rosa, Ariadne em Naxos, Arabella e Capriccio.
No séc. XIX também surgiram os “sons” nacionais. Na Rússia, Mikhail Glinka baseava-se na música folclórica eslava e Modest Mussorgsky levou a história do país ao palco com Boris Godunov. Mas foi o romântico Piotr Ilitch Tchaikovsky que entrou para o repertório ocidental com Yevgeny Onegin e A rainha de espadas. No panorama tcheco, embora seja Bedrich Smetana o pai da ópera nacionalista, Leoš Janá?ek compôs obras mais sofisticadas, como Jen?fa e Kátya Kabanová, hoje montadas ao lado de obras de Mozart.
A ópera moderna e suas muitas faces
A simultaneidade de diferentes movimentos operísticos nunca foi tão clara quanto no séc. XX. Salomé e Elektra, de Strauss, causaram choque. Logo depois, Arnold Schönberg rompeu com as ideias tradicionais sobre a música, rejeitando a harmonia em favor da atonalidade (a organização da música sem referência a uma tonalidade). Na década de 1920, ele e Alban Berg introduziram na ópera a dissonância (notas ou acordes sem resolução tonal), ele em Erwartung e Moses und Aron, Berg em Wozzeck e Lulu. Enquanto eles redefiniam a música moderna, óperas mais convencionais continuavam sendo compostas.
Mas desde o fim da II Guerra a ópera mais parece um laboratório, com compositores como Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio e Philip Glass restando diferentes linguagens, do serialismo (o sequenciamento de tonalidades, andamentos e outras variáveis) ao minimalismo (caracterizado pela repetição dos elementos musicais), passando pela música eletrônica e explorações do silêncio e do ruído. Benjamin Britten é o único compositor do pós-guerra tocado em todo o mundo. Em Peter Grimes e Billy Budd, alcançou o ideal: libretos de grande força dramática e música tocante.
Manter a ópera viva, com inspiração e originalidade, é um desafio para os compositores. É estimulante que certas casas garantam o futuro do gênero com novas encomendas, mesmo com o risco de perder a parte do público que prefere os velhos favoritos. Afinal, a história da ópera prova que as obras-primas de amanhã podem sair dos sons e imagens mais estranhos de hoje.
Não seria possível abarcar numa série de artigos todas as óperas existentes: elas são milhares. Optamos, então, por algumas de grande popularidade perene e que desempenharam um papel importante na evolução do gênero. Assim, esta série que iniciamos na Revista Será? destaca dez obras do repertório.
A ópera é um universo extremamente gratificante no qual se pode entrar por uma infinidade de portas. Esperamos que a série que se inicia no próximo artigo seja um guia útil para quem deseja explorar esse mundo sem igual.
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