Fernando Dourado

Regret – by Robert Feduccia.

Todo homem de meia idade tem um cartel de feitos e derrotas de que pode se orgulhar ou se penitenciar. Isso vai da severidade com que o examine. Dito rigor não é imune a flutuações que podem variar de acordo com a mecânica de fluídos do dia ou até mesmo das fases lua. Assim sendo, um fato fortuito pode entreabrir uma porta para que o indivíduo recite fórmulas autocongratulatórias, mal escondendo um sorriso de satisfação pelos pequenos feitos perpetrados. Em igual medida, outras tantas lembranças podem lhe arrancar um esgar de repulsa, como se a vergonha só tivesse se adensado com o passar dos anos. Como explicar isso? Ora, talvez não venha bem ao caso.

O que importa à história é que Yves Farias, 66 anos, jamais esteve imune à gangorra de uma autoestima cambiante. Mas foi numa tarde nebulosa de abril, assistindo pela televisão ao enterro de um ídolo da Jovem Guarda, que se escancarou dentro dele uma porta que ficara entreaberta e pela qual se insinuou a friagem do desconforto, zunindo como uma corrente de mau agouro. Em todo caso, os fatos pertinentes ao evento central da narrativa em torno desse charmoso artista plástico precisam de uma contextualização mais elaborada, para que apreendamos plenamente a extensão da vergonha que pode acometer até os homens de bem. Ou especialmente estes, dirão alguns.

Assim sendo, no grupo das bem-aventuranças, Yves Farias se orgulhava de ter acompanhado o crescimento de mais de vinte enteados sem jamais ter tido sequer uma rusga com qualquer um deles. Pelo contrário, conseguira ajudá-los a construir uma vida adulta feliz, graças ao carinho discreto e às viagens animadas que promoveu – ótimas oportunidades de se criarem laços. Para tanto, contudo, jamais cedeu aos apelos fáceis da demagogia e da cooptação para ser aceitado. Já com as mães desse plantel de crianças, ontem adolescentes e hoje adultos, também erigiu um legado de afetos que sobreviveu à erosão do tempo e, em muitos casos, manteve o viço.

Outro feito que lhe trazia alguma alegria estava ligado a ter permanecido quase sempre fiel aos ideais da juventude, sem ceder a modismos ocos que não combinavam com o sonho maior. É claro que vez ou outra teve de se curvar ao main stream, empunhando bandeiras inócuas, mas sempre por pouco tempo. Carro do ano, casa própria, previdência privada, família e estabilidade empregatícia foram algumas dessas patranhas aburguesadas que, felizmente, não duraram nem em separado nem combinadas. Uma vida independente e desgarrada sempre fora uma meta para Yves Farias, sendo o desapego um ingrediente imprescindível ao exercício do ofício em alto nível.

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Já no segundo grupo, o dos eventos desabonadores, Yves gostava de pensar como Cioran, quando o pensador romeno disse que o patrimônio de um escritor são suas vergonhas. Embora a pintura fosse sua paixão, era quando escrevia nas horas tardias da madrugada que se via no espelho. Daí poder puxar para si a revelação do filósofo. E, diante da imagem projetada no texto, enxergava muito além dos próprios cabelos louros, quase palha; da sombra permanente de uma barba grisalha e fechada, e do par de olhos azuis que lhe tinha valido certa mística junto às muitas mulheres que amara ao longo de décadas, únicos marcos para que atinava em sua sua cronologia íntima.

Por essas ocasiões de solilóquios consigo próprio, admitia que relegara a segundo plano alguns dos projetos que nutrira para a meia-idade. Sendo deles o principal o de se mudar para Espelète, ao pé dos Pirineus franceses, cidadezinha onde prometera a si mesmo que viveria depois dos 50 anos. Ora, a data já ficara para trás e nada acontecera. Para agravar o quadro, negligenciara a saúde, desenvolvera diabetes e fora não raro arrogante – tanto com a crítica quanto com os “marchands”-, reincidindo numa conduta intolerante, típica dos que agem como se fossem os únicos condôminos do planeta. Não, ele não era pessoa adequada para tratar de sua arte.   

Mas se tudo isso ficou na vala dos pecadilhos dos socialmente ariscos, vergonha mesmo era outra coisa. Ela estava um degrau acima e não se curava com um analgésico, um pedido de desculpas ou uma cerveja. Nem sequer se diluía no sono atordoado da ressaca moral. Vergonha é a materialização de um ato abjeto, ditado pela mesquinharia e vileza. O que menos Yves se perdoava era que, no seu caso, pecara pela adesão acrítica ao juízo comum. Ter abraçado a histeria da manada contrariava sua história e, anos depois, ainda lhe parecia tão grave quanto atentar contra a própria vida. Era nisso que pensava enquanto assistia à despedida televisada do cantor.

Pois bem, certo é que a sensação de ter sido um perfeito canalha era resistente. Fazendo as contas, ela perseguia-o já há quase um quarto de século e, o que era pior, não havia nada mais que pudesse fazer a respeito para remediá-la. Nada, nada. E tudo começara de uma forma tão simples. Ademais, ela era desconectada em forma e essência das chamadas que o noticiário consagra: roubos ao erário, opróbrio, assalto ou quaisquer crimes que tipificassem espírito de corpo e articulação com terceiros. Não, a vergonha que o abatia tivera uma única testemunha, não fora filmada e dependera só de sua vontade – ou da falta dela. E isso só a tornava mais insuportável.

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Era outubro. O calor não chegara de todo a São Paulo. Tendo terminado uma reunião no centro da cidade, região que ainda não afundara na decadência, Yves achou que ficara tarde para voltar ao ateliê e marcou com um pintor pernambucano de vê-lo para um dedo de prosa. Como costumava fazer nessas ocasiões que, infelizmente, se tornavam raras, adivinhou que o amigo acolheria de bom grado a sugestão de que se encontrassem no restaurante Brahma, na mítica esquina das avenidas Ipiranga e São João. Tendo chegado cedo, o salão estava vazio e decidiu que o aguardaria no bar, onde pontificava o garçom Ruy e um único cliente, sentado à esquerda da entrada.

Eis montado o cenário onde viveria seu dia de verme. Pois bem, ao ver o tal cliente, refastelado no banco de couro verde-musgo, uma torrente de sentimentos lhe perpassou o espírito. Mas o comando a que obedeceu, em segundos, poderia ser sintetizado numa fórmula abjeta: “Yves, ignore-o”. Foi nesse mesmo átimo que o homem, um mulato de meio sorriso, blazer claro e ares de leve embriaguez, fez o que se faz nesses ambientes e disse um inocente olá. Pois bem, fixando um ponto imaginário na parede atrás dele, Yves nada respondeu, sequer fez um meneio de cabeça, como se o indivíduo não existisse. Ato contínuo, pediu um chope e foi sentar-se no salão vazio.

Ao agir como fez, Yves repetira a conduta estereotipada de que aquele homem já deveria ter sido alvo milhares de vezes desde que caíra em desgraça. Mais exatamente, desde que deixara que um policial puxa-saco desse uma surra (provavelmente merecida) no contador que o roubara. Sendo o tira um brutamontes do DOPS, ganhou corpo a versão de que ele era dedo-duro e informante das forças de repressão. Foi assim que o maior show man que o Brasil conhecera virou um pária. E Yves, na sua arrogância branca, elitista, culta e enfatuada, simplesmente negou um cumprimento ou uma palavra a Wilson Simonal cuja vida, àquela altura, encaminhava-se para o fim.

Como pudera fazer isso? Logo Yves que tão bem sabia o prazer de uma prosa inesperada quando se está só diante de um copo no meio da tarde. Mas nesse dia, sentindo-se representante lidimo de um Brasil ressurrecto  e estando com a carteira tomada de encomendas de ricaços, Yves contribuíra para adensar o linchamento que reduzira o intérprete antológico a uma sombra sem matriz. Fora ovelha e não leão. E, ao cometer o gesto vil de ignorar quem lhe pedia tão pouco, sentira orgulho e altivez de ter feito o que fizera. Hoje, pelo contrário, aquilo causava-lhe asco. Ao relembrar o caso, Yves Farias deu um grito que espantou os vizinhos. E diante do espelho real da sala, fez uma careta de repugnância.