A maioria dos movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores está se mobilizando em bloco contra a Reforma da Previdência. Mesmo assim, alguns dos segmentos sociais e categorias profissionais se movem à parte, parecendo mais preocupados com a manutenção de um tratamento diferenciado, no conjunto das regras propostas para o novo sistema previdenciário. É o caso do movimento feminista, que pretende manter idade mínima de aposentadoria inferior à dos homens, e dos sindicatos dos professores (homens e mulheres), que defendem a aposentadoria mais cedo que todas as outras categorias profissionais. Por que esta diferença? Por que este privilégio? O que justifica que as mulheres e os professores se aposentem mais cedo?
O argumento das mulheres para a idade mínima diferenciada (60 anos para mulher e 65 anos para o homem) é a chamada jornada dupla do trabalho doméstico. A socióloga e cientista política Angela Fatorelli cita o IBGE para demonstrar que as mulheres trabalham, em média, cinco horas semanais a mais que os homens. O dado é incontestável. Mas esta desigual divisão de trabalho doméstico, que é um produto da cultura machista, não tem porque ser compensada pelo sistema de previdência social. O movimento feminista vem enfrentando e combatendo esta cultura com indiscutível sucesso, no terreno político, contra a desigualdade de gênero. Em grande medida, a compensação de uma distorção social pela previdência contribui, na verdade, para legitimar, conservar e reproduzir os padrões de desigualdade de gênero na sociedade. Vale lembrar, por outro lado, que esta “dupla jornada” de trabalho vem diminuindo bastante, pelo menos na classe média e alta brasileira, pela combinação de vários fatores, a começar pelo significativo declínio do índice de fecundidade e, portanto, da responsabilidade com a maternidade (de 2,81 filhos por mulher fértil, em 1990, esta taxa caiu para apenas 1,71, em 2015).
A diferença de tratamento da mulher na previdência não resiste a uma simples análise da estrutura demográfica do Brasil. Se, por um lado, a mulher trabalha mais que o homem nas tarefas domésticas, na média, as mulheres vivem sete anos a mais que os homens (dados do IBGE): expectativa de vida de 79 anos da mulher contra apenas 72 anos do sexo masculino. Estimativas para 2016 mostram que o Brasil já tinha 2,48 milhões mais de mulheres que homens com 65 anos e mais (cerca de 9,74 milhões do sexo feminino e 7,26 milhões do sexo masculino). De modo que, aposentando-se cinco anos antes (como pretendem) e vivendo sete anos mais, a mulher levaria uma vantagem de doze anos de benefícios previdenciários em relação ao homem. E mesmo adotando a idade mínima de aposentadoria igual (65 anos), os trabalhadores do sexo masculino teriam que contribuir durante sete anos mais que as mulheres para viabilizar os benefícios dos seus anos adicionais de vida. É justo?
Considerando a mudança demográfica do Brasil nas últimas décadas, o tratamento diferenciado para as mulheres na previdência social constitui, no fundo, uma forma de paternalismo que, embora responda às justas exigências do movimento feminista, reflete o sentimento de culpa machista na sociedade. A luta pela igualdade nas relações de gênero na sociedade não é consistente com uma desigualdade no sistema de previdência social.
Com outros argumentos, os professores (independente de gênero) se mobilizam também pela manutenção de uma aposentadoria mais cedo que o restante dos trabalhadores do Brasil, como já está contemplado na Constituição, argumentando que a profissão é mais cansativa e trabalhosa que as outras categorias profissionais. Será? Parece muito estranho que um professor tenha um desgaste profissional maior que um pedreiro da construção civil, um motorista de ônibus, ou mesmo um médico ou enfermeiro num hospital. O “estresse em sala de aula”, como destaca um sindicato de professores, é diferente, mas está longe de ser maior que o estresse e o desgaste físico e psicológico de outras categorias profissionais, como os já citados motoristas de ônibus. Sem considerar que, por regras específicas de trabalho, a hora de aula é de 50 minutos e os professores têm férias de 45 dias e tempo para estudar e preparar aula, numa atividade intelectual que costuma ser gratificante.
O senador Cristovam Buarque tem defendido a aposentadoria antecipada dos professores a partir de uma legítima preocupação com a qualidade do ensino. Segundo ele, o desgaste físico e psicológico dos professores após vários anos de sala de aula poderia comprometer sua capacidade de ensino. Será? E esta relação vale apenas para os professores? No fundo, este raciocínio pode ser aplicado a todas as outras categorias profissionais que prestam serviço à sociedade, como o motorista de ônibus ou o médico. De modo que, se a idade mínima de 65 anos é válida para estas categorias, não existem motivos para conceder aos professores uma antecipação da sua aposentadoria. Tudo indica, ao contrário, que o magistério é uma atividade na qual a qualidade tende a melhorar com o tempo do exercício profissional. O professor lida com um produto, o conhecimento, que não se deteriora e, na verdade, se amplia e aprimora com tempo e com a prática, elevando a sua capacidade intelectual e profissional.
Além disso, o exercício continuado do magistério aprimora a competência didática e aumenta a habilidade e a experiência para lidar com os jovens. Excetuando eventuais problemas de senilidade, que devem antecipar aposentadoria por invalidez em qualquer idade, o conhecimento dos conteúdos e a capacidade didática dos professores crescem com o tempo e a experiência no ensino. Ao contrário do que argumentam os sindicatos de professores e o senador, a aposentadoria de um professor com 60 anos, com a experiência e a qualificação intelectual e didática, é um enorme desperdício para a sociedade e, particularmente, para a educação do Brasil.
As pressões das corporações e de determinados movimentos sociais para a introdução de um tratamento diferenciado no sistema de previdência remete, por outro lado, a uma inevitável questão financeira: cada grupo ou segmento social que se aposenta mais cedo exige que outros grupos sociais aumentem seu tempo de contribuição para cobrir os custos dos benefícios. Isso é justo?
Concordo inteiramente com as suas teses, amigo Sérgio. E imagino que argumentos tortuosos lhe possam ser contrapostos. Meus cumprimentos.
Pensando alto!
Sergio, a sintonia no caso das mulheres é total. Quarta a tarde discutia exatamente isso, porque o Estado tem que legitimar o machismo na sociedade antecipando a aposentadoria das mulheres? Não é o reconhecimento e, portanto, uma espécie de legitimação da tripa jornada? Claro, as alunas, todas ou quase todas, de esquerda ficaram contra. No caso dos professores tenho minhas dúvidas. Nenhuma certeza. Seu raciocínio é perfeito, mas as condições de trabalho em sala de aula na periferia é, talvez, mas estressante do que qualquer trabalho de motorista ou de construção civil. Mas, como disse, tenho dúvidas. Há muitas diferenças nas profissões que devem ser tomados em consideração. Um trabalhador rural não se pode igualar a um trabalhador de escritório. Um policial militar não se pode igualar a um advogado ou médico. Como indicar a idade mínima diferenciada? Por exemplo um professor universitário só poderia ter direito a aposentadoria plena aos 75 anos. Um servidor público, salvo exceção apenas aos 70. Um trabalhador da construção civil aos 65. É possível pensar, e legislar, sobre tantas diferenças? Quais os bons critérios? O que falei é simples impressão, pois não tenho nenhum estudo que me prove o que acabo de dizer. Será possível faze-lo? De toda forma antes dos 65 teria que ser pessoas submetidas a situações especiais. A geração atual é centenária. Vamos trabalhar quarenta anos e ficar aposentado quarenta? Ademais, e neste campo há pesquisas, as pessoas que se aposentam sofrem discriminações e aumentam a probabilidade de terem câncer e outras doenças relativamente letais. Por que não pensar o diferente? Redução gradativa de horas de trabalho? Mudança de função? Reciclagem profissional? Sempre respeitando as vontades de cada um.
Os argumentos apresentados por Sergio C. Buarque são irrespondíveis. Não há justiça nem lógica em privilégios de aposentadoria para mulheres e professores. É verdade que há condições difíceis em algumas salas de aula de áreas muito atrasadas, mesmo dentro de S.Paulo, onde alunos pior qualificados fazem bullying contra os alunos aplicados e melhores, e ameaçam os professores ou professoras que, segundo esses alunos mais violentos, estariam privilegiando seus “alunos queridinhos”. É a resistência surda contra a meritocracia, fantasiada de igualitarismo tacanho. Acontece que uma solução interessante já proposta para tais situações é ter dois professores em sala de aula. Essa seria uma medida muito mais benéfica para o ensino do que a injustiça da aposentadoria mais cedo.
Concordo com a análise de Sérgio e costumo provocar algumas amigas acusando-as de “preconceituosas às avessas” e verifico que Elimar levanta uma questão pertinente, em que o meu caso particular é exemplar : Aposentei-me com 56 anos e 37 anos de contribuição. À essa altura, estou recebendo uma merreca de aposentadoria (isso é outra questão!)há exatos 33 anos e logo vou empatar. Qual é o cálculo atuarial e qual é a matemática que vai conciliar esse despautério, antecipando, logo, que – igual a Ulisses Guimarães – quando avistarem o meu enterro, tenham a convicção de que ali vou contrariado e de má-vontade. ? E se entrar no problema do estresse, aviso logo que o trabalho para mim é bálsamo confortante e me sustenta nesta fase da vida.
Estou em total sintonia com o que foi exposto,mesmo correndo o risco de ser crucificada pelo meu modo de pensar,que vai de encontro com a realidade atual. Não me considero feminista sou sim feminina com muito orgulho,ou melhor poderia até ser feminista se a bandeira a ser erguida fosse de não igualdade com os homens mas sim o respeito e valorização às mulheres, o respeito pelas mesmas e pela sua importância na formação de uma sociedade mais bem formada pela responsabilidade que tem a mulher como mãe,como esposa etc.
Somo por demais inteligentes para verificarmos as diferencas anatômicas entre o homem e a mulher e isso,nunca mudará,assim deve a mulher na sua importante condição lutar bravamente pelo reconhecimento do seu valor.Sera que um dia no afã do seu desejo de igualdade poderá dizer ao marido :amamente nosso bebê pois hoje é o meu dia de brincar o carnaval?
Não consigo ver resultado positivo nesta forma de igualdade de direitos.Senti apenas que na sua ânsia por essa igualdade passou-se para o extremo de um exagerado desrespeito onde a mulher passou a ser um mero instrumento de uso descartável quando acha que o corpo é seu e pode ser exposto quando for conveniente para ela.Porque ir às praças queimar soutien renegando algo que faz parte de meu vestuário,para cobrir uma parte do meu corpo de que tanto me orgulho?Desculpem-me as feministas mas,desta forma estou fora.
Sérgio, em primeiro lugar, esses sete anos a mais não se traduzem em vida saudável; estudos indicam que a saúde das mulheres é mais comprometida que a dos homens com o avanço da idade (Previdência, 2015). Com relação à persistente desigualdade na divisão sexual do trabalho é importante destacar que o Brasil não é composto apenas por mulheres de classe média, seja baixa ou alta!?!?!?! Encontra-se na casa dos milhões, o número de brasileiras pobres, miseráveis, minimamente assalariadas, que tem uma vida desgraçada, e que somam aos trabalhos aviltantes que realizam as duplas, triplas… jornadas de trabalho. Sérgio, você sabe que são as mulheres nordestinas e as rurais as mais vitimadas, pois é no Nordeste onde a concentração de miseráveis é maior; os preconceitos são mais fortes e o machismo bota pra quebrar. Que as mulheres se aposentam mais por idade do que por tempo de contribuição; pois elas param mais de trabalhar para ter filho, cuidar dos seus homens doentes e dos idosos da família, e estão inseridas em setores que têm maior rotatividade. E isso se aplica, destacadamente às mulheres pobres do nosso desgraçado Brasil!!!!!! Até Artur, o relator da Reforma, considerou que as mulheres, nesse país de machistas inveterados, devem, AINDA, se aposentar mais cedo!!!!!!!!! Ele entendeu que é uma questão de JUSTIÇA SOCIAL!
Beth
Tudo que você mostra com pertinência são problemas sociais e culturais (machismo) que pedem políticas públicas forte e corajosas. Entendo, contudo, que estes problemas não devem (nem serão) compensados pela Previdência. A previdência é um sistema de solidariedade contributiva entre os que trabalham e os que pararam de trabalhar (por idade ou por doença) e a mulher tem um tempo de vida muito maior que o homem apesar da desigualdade no trabalho. No meu entendimento, a pobreza, as diferenças de salário e a injusta divisão do trabalho por gênero devem ser enfrentados na sua origem e não compensados pela Previdência. Como disse no artigo, compensando podemos estar legitimando e conservando as desigualdades sociais.
Eu concordo que todas as categorias deveriam ter a mesma idade mínima de aposentadoria com raras exceções. Não vejo razão para mulheres se aposentarem com limite de idade inferior. Entretanto, acho razoável que, para as mães que deixarem de trabalhar enquanto seus filhos sejam pequenos, lhes sejam acrescentados alguns anos de tempo de serviço. Dessa forma, não teriam privilégio de aposentadoria mais cedo, mas não seriam prejudicadas em seu tempo de serviço e valor de aposentadoria. Estou ciente de que esse pode ser um assunto controverso por suscitar pedidos de isonomia para homens que assumam a criação de filhos e casos de adoção, mas vale a pena examinar a idéia. Essa diferenciação, de qualquer forma, é bem menos abrangente do que simplesmente conferir privilégio por sexo.