Seul, a capital da Coreia do Sul, toma um ar festivo na primavera. Dessa vez esses meses de clima ameno estão mais agitados e tensos no país inteiro, especialmente para os 10 milhões de habitantes do município da capital (20 milhões na área metropolitana, a de maior densidade demográfica do mundo). E não é apenas porque o país está em plena campanha eleitoral.
No próximo 9 de maio, a Coréia do Sul elegerá um novo presidente para substituir a presidente Park Geun-hye, cujo impeachment foi aprovado há dois meses por unanimidade da Corte Constitucional. A instabilidade já dura ao menos um ano, desde que foi revelado o escândalo de corrupção envolvendo Park, mais ainda desde que o Parlamento, em dezembro de 2016, aprovou o afastamento da Presidente.
O inédito contexto político em Seul complica mais ainda a busca de uma solução negociada para conter as ambições nucleares do jovem ditador Kim Jong-un: campanhas eleitorais não são exatamente propícias a manifestações pacifistas, e assim o novo escudo antimíssil THAAD que começou a ser instalado no centro do país foi atacado na campanha, e ao mesmo tempo os Estados Unidos foram acusados de estarem marginalizando a Coreia do Sul. Tudo isso apesar de os sul-coreanos terem aprendido a viver sob a ameaça de 20 mil peças de artilharia norte-coreana voltadas para o sul e de um aumento de capacidade nuclear ao norte que ninguém sabe exatamente até onde chegou.
Segundo os entendidos nesses assuntos militares, mesmo que apenas armas convencionais (não nucleares?) fossem usadas, Seul teria 130.000 mortos nas primeiras duas horas de combate. Até o Papa Francisco, voltando do Cairo em 1º de maio, lembrou que o programa de mísseis da Coreia do Norte “não é novo”, mas disse que “a coisa tinha ficado quente demais”, acrescentando que “a ONU tem o dever de reassumir, um pouco, sua liderança, pois tem sido diluída”. Rex Tillerson, Secretário de Estado norte-americano (ie, ministro das relações exteriores), dias antes, havia sido mais concreto: pediu à ONU que reforçasse as sanções econômicas contra a Coréia do Norte.
Abril tem sido todo ano um mês de comemorações patrióticas e pronunciamentos belicosos na parte norte da península e de exercícios militares e porta-aviões norte-americanos na área. Este ano as ações do ditador norte-coreano Kim Jong-un escalaram mais um degrau. Em 25 de abril a Coreia do Norte (oficialmente a República Democrática Popular da Coreia) comemorou o 85º aniversário da criação de seu exército, de 1 milhão de homens. Dias antes o jovem ditador havia comemorado o aniversário de seu avô, Kim Il Sung, fundador do país e seu “eterno presidente”, com uma imensa parada militar, inclusive show de aviação e mísseis em lançadores, além de um coro de vozes masculinas cantando “Paz é garantida por nossas armas”. Houve o lançamento de mais um míssil balístico, e mesmo que este aparentemente tenha explodido perto da base, isso não acalmou o temor de futuros testes nucleares, que têm sido subterrâneos.
A Coreia do Norte é tida como o país mais subterrâneo do mundo, suas fábricas de armamentos trabalham em boa medida enterradas, seu exército treina em túneis, e em mais de uma ocasião foram descobertos túneis sob a zona desmilitarizada entre o norte e o sul. Foram subterrâneos os testes nucleares realizados em 2006, 2009, 2013 e 2016. Segundo o comunicado de Pyongyang, em setembro de 2016 foi detonada uma ogiva nuclear que poderia ser montada em mísseis balísticos. A Coreia do Norte tem avançado na tecnologia de mísseis balísticos e de ogivas nucleares, e a ameaça maior é que possa juntar as duas coisas e alcançar distâncias cada vez maiores, chegar à costa oeste dos Estados Unidos.
Já os porta-aviões americanos, tão tradicionais naqueles mares que são até personagem do grande romance de Adam Johnson inteiramente ambientado na Coreia do Norte (“The orphan master’s son”, Prêmio Pulitzer 2013 para ficção, publicado em português como “Jun Do, uma saga….”), este ano andaram agravando incertezas. Poucos dias depois que Trump anunciou, no início de abril, que uma “armada” liderada pelo porta-aviões USS Carl Vinson rumava em direção à Coreia do Norte, foi revelado que, de fato, a armada de Trump ia em direção oposta, rumo à Austrália. Foi apenas uma confusão de comunicações, porém deixou coreanos mais inseguros que o porta-aviões ficcional de Adam Johnson, que prendeu e soltou o pescador Jun Do. Sem precedentes naqueles mares foi a presença de um navio de guerra japonês, o porta helicópteros Izumo, escoltando um cargueiro americano, pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial. Ainda que essa operação tivesse ínfimas consequências militares, abriu no Japão uma controvérsia intensa no parlamento e entre grupos pacifistas sobre a reinterpretação da Constituição pacifista do Japão e sobre a possibilidade de ações navais japonesas em águas próximas da Coreia do Norte.
Seul em campanha eleitoral ou o Japão abandonando o pacifismo são fatores menores de incerteza quando se pensa na necessidade conter a ameaça nuclear de Kim Jong Un. Incerteza bem maior, na Coreia e no mundo, foi gerada pela retórica desconcertante e vacilante do Presidente que controla o primeiro ou segundo maior arsenal nuclear do planeta. Ainda não se sabe bem qual dos pronunciamentos de Donald Trump vai prevalecer. O último, em 1º de maio, foi o de que estaria “honrado” em encontrar Kim Jong Un em circunstâncias apropriadas. Ainda que possibilidade concreta de tal encontro não exista, pois Kim, desde que assumiu em 2011, jamais deixou o país ou recebeu um líder estrangeiro em Pyongyang, a declaração foi mais tranquilizadora que anteriores, como a ameaça de retirar as tropas americanas estacionadas na Coréia do Sul ou exigir de Seul pagamento de US$ 1 bilhão por tal proteção, ou a sinalização de que um ataque preventivo unilateral era possível em caso de iminência de um teste nuclear norte-coreano.
A Casa Branca mais tarde negou tal intenção de ataque unilateral. Mas a confusão já estava instalada em Seul, Beijing e Tóquio. Assim como até hoje os intérpretes ainda não sabem dizer se Trump estava só fazendo piada quando disse durante a campanha eleitoral que gostaria de comer um hambúrguer na Casa Branca com o líder supremo da Coreia do Norte, ou se fazia seriamente uma tentativa de desativar tensões perigosas. Deveria saber já então que as ambições nucleares de Pyongyang eram o tema mais ameaçador para a política externa norte-americana.
Em Seoul, Moon Jae-in, do Partido Democrático, que está à frente nas pesquisas de opinião, atacou Washington por deixar Seul fora das conversações com líderes da China e do Japão e causou surpresa ao dizer que a Coreia do Sul deveria “aprender a dizer não aos Estados Unidos”. Atacou a instalação do escudo antimíssil THAAD, negociado entre Obama e a antecessora Park, do qual sempre fora crítico. O fato é que Trump, em sua vacilação, não havia incluído Hwang Kyo-ahn, o presidente em exercício da Coreia do Sul, nas conversas com Xi Jiping.
Trump sabe que uma política de pressão sobre a Coreia do Norte no sentido de desacelerar seu programa nuclear não tem perspectiva de sucesso sem a cooperação da China. A China é o maior parceiro comercial da Coreia do Norte, e a principal fonte de alimentos, armas e energia. Estima-se que 80% dos bens de consumo vendidos na Coreia do Norte vêm da China, e que 85% do total do comércio exterior do país é com a China. Curiosamente, com alguma melhoria econômica em anos recentes e a dificuldade do estado de produzir energia suficiente, painéis solares importados da China se tornaram novo símbolo de status.
A China tradicionalmente se opôs a sanções internacionais severas à Coreia do Norte, mas isso não deve ser tomado como posição irrevogável de aliado incondicional, e recentemente têm sido detectadas surpreendentes mudanças de sentimento entre chineses no que se refere à situação na península e a quem entender como amigo ou inimigo. A estabilidade na península coreana, evitar uma guerra, ainda é a preocupação maior e, nesse sentido, nem a China, com uma fronteira comum de 1400 quilômetros, e nem a Coreia do Sul, desejam um colapso do regime que poderia deixá-los com milhões de refugiados e um pesado fardo econômico. Desde o teste nuclear de 2006, no entanto, a China passou a apoiar sanções, aprovando-as no Conselho de Segurança da ONU apesar de defender atenuantes e concentrar-se em “bens de luxo”. Depois do teste de 2016, a China aplicou as sanções da ONU restringindo as importações de carvão proveniente da Coreia do Norte.
Trump, apesar de dizer que a era da “paciência estratégica” passou, parece haver aderido à tese de que uma estratégia de cooperação com a China é melhor que a alternativa de sanções secundárias, que incluiria produtos e investimentos chineses no boicote americano. Declarou no twitter que desistira de nomear a China um manipulador de câmbio, em troca de ajuda chinesa para lidar com Pyongyang. Mas agora a instalação do escudo antimíssil THAAD (Terminal High Altitude Area Defense), o chamado Sistema de Defesa Terminal de Área a Grande Altitude, introduziu um novo fator de conflito. Tal Sistema de Defesa, além de desencadear protestos de moradores nos vilarejos em que começou a ser instalado, que deságuam na campanha eleitoral em Seul, deixou apreensivos os governos em Beijing e Moscou, que consideram que o sistema também poderia ser efetivo em uma operação de ataque.
Parece que o provável ganhador das eleições na Coreia do Sul desistiu de revogar THAAD. Mas as autoridades chinesas ameaçaram apoiar represálias comerciais à Coreia do Sul. Para a China, os radares usados em THAAD podem espionar território chinês e minar a força do arsenal nuclear chinês. Além disso, afirma que o sistema, que operaria em altitudes de 40 a 150 km, de fato seria ineficaz para proteger Seul, que está perto demais dos mísseis que seriam lançados da Coreia do Norte. A validade desses argumentos terá que ser discutida pelos entendidos em assuntos militares. Enquanto isso vale lembrar que a China é também o maior mercado para as exportações da Coreia do Sul, quase o dobro do seu segundo maior mercado, os Estados Unidos. E há a multidão dos turistas chineses que visitam a Coreia do Sul, que seriam desencorajados caso persista o conflito. Por ora, não há opções que garantam tranquilidade. Pode ser que THAAD seja o pretexto da China para obter um novo balanço das influências na península. Por enquanto, esperemos que a “paciência estratégica” de todos os lados nos leve até a eleição de 9 de maio.
Muito completa sua análise, Helga. Nunca é demais recordar que o esteio de sustentação político-militar do rubicundo ditador é o programa nuclear. Daí ser este inegociável. Sem ele, Kim Jong un já teria sido varrido como foram Sadam Hussein ou Khadafi. Isso serve tanto para ganhar prestígio externo quanto para inspirar algum respeito junto ao estamento militar.
Cerebral ao extremo, ele é muito mais do que um “smart cookie”, como o definiu Trump. Ciente das repercussões de cada lance, nada é fortuito naquela aparente impulsividade. Conseguiu o feito de encarnar aqueles ditadores malucos grotescos que não medem esforços para lograr sobrevida política. Dificilmente morrerá dormindo ou de velhice.
Obrigada, Fernando Dourado, mas ainda falta incluir Putin na história. Quando Kim Jon Un assumiu o poder em 2011 declarou que seus objetivos eram dois: o programa nuclear e desenvolvimento do país. Aliás, suspeita-se de alguma tentativa recente de matá-lo, pois, segundo o FT, o ministro do exterior da Coreia do Norte publicou há pouco uma longa declaração acusando a CIA e os serviços de inteligência de Seul de uma “conspiração bioquímica” contra Kim Jong Un.
Ganhou na Coreia do Sul quem se esperava, Moon Jae-in, que estava à frente nas pesquisas. O candidato do Partido Democrático, que chega ao poder depois de 10 anos de controle do governo pelo Partido Conservador, é mais favorável a negociações com o norte e falou em respeito à lei e ao bom senso. Segundo os analistas, a economia teve mais influência sobre o eleitorado do que a ameaça nuclear ao norte.