Roberto Smith
Naquela tarde sentira uma incompreensível vontade de tomar chá. Vinha andando pela calçada, voltando para sua casa preocupado em atravessar a rua com trânsito intenso, e de repente aquele desejo o assaltara, como uma reminiscência perdida no tempo.
De onde vinha aquela vontade de tomar chá? Sabia que passava por uma fase muito sensível, com os sentimentos à flor da pele, e uma indescritível força que o impelia a prestar atenção a tudo aquilo que costumara ter um lugar secundário em sua vida. Parecia quase que sucumbindo às ansiedades que afloravam com os seus afazeres profissionais e familiares.
Agora se encontrava aposentado, e teimava em afirmar que estava desempregado, como a tentar não se entregar às virtudes do ócio que procurava não reconhecer. As pequenas coisas que o cercavam passaram a ter uma importância que jamais suspeitara, beirando mesmo às raias da obsessão. Contudo, a contragosto, reconhecia que essas atitudes e desejos que haviam se instalado em si traziam um conforto e um significado que muitas vezes lhe escapavam.
O sentimento de responsabilidade e necessidade de trabalho em toda a sua vida fora a forma de combater o fantasma da preguiça que o perseguira, impregnado nele, desde os tempos de criança. Todos o achavam muito parecido com o seu tio, a quem nutria um sentimento de admiração. Mas a voz geral é que o tio-referência não se dava bem com o trabalho. Sua vida foi uma quase constante luta para tentar mostrar que não puxara ao tio. Nessa fase de sua vida, pela primeira vez se permitia curtir certos momentos de preguiça, como que se dando bem com ela.
Apressou os passos e foi para casa e aprontou o chá que se manifestara enquanto objeto de desejo. Ao sorver os primeiros goles da infusão, a memória ultimou a conexão dos neurônios numa velocidade lenta, talvez afetada pela ingestão da civastatina que provocava os bons e os maus esquecimentos.
Agora a memória o instalava numa outra realidade que se projetava como se ele fosse o espectador de um filme repetidas vezes assistido.
Estava na cozinha da casa de seus avós, que era vizinha à casa de seus pais e havia uma comunicação entre elas através dos quintais. A passagem se dava através de um portãozinho embaixo de um caramanchão coberto por um jasmineiro que florescia o ano todo.
A cozinha da avó era ampla e aberta para uma copa contígua, com um piso preto de ladrilho hidráulico permeado por desenhos tênues e delicados de pássaros em branco. Aquela cozinha povoava a sua lembrança de menino que se levantava cedo para ir à escola, e onde sempre tomava o seu café com leite preparado pelo seu avô, que como ele era madrugador.
O filme nesse momento dá um close sobre a leiteira, que a mão trêmula de seu avô retira do fogo e despeja o leite direto em sua caneca. Essa mesma leiteira que sobrevivera ao seu avô, e que conservara como um dos seus troféus em sua cozinha até que se perdeu em uma das muitas mudanças de que foi protagonista em sua vida.
Pois bem, na copa contígua, havia uma mesa redonda e nela, às cinco horas da tarde, os tios, irmãos de sua avó, costumavam se reunir para tomar um chá. Essas reuniões eram animadas, todos tinham um fino espírito de humor e tiradas encantadoras. Eram favorecidas pelo fato de que todos moravam relativamente perto como se o movimento de translação, na condição de emigrantes das proximidades do Mar Negro, qual um capricho, tivessem-nos feito aportar num mesmo cais do outro lado do mundo.
O chá era tomado nessas tardes alegres como que obedecendo a um ritual que viera daquelas plagas distantes, muito distantes de um passado de aventuras e dramas que se tornavam naqueles momentos motivos de risos e impregnação de cheiro de família. Acalentavam uma sensação quase que intrauterina no neto que assistia às tomadas daquele filme tantas vezes revisto. Tal como Ingmar Bergman dirigiu em “Fanny e Alexander”, a avó era como a matriarca Helena Hekdhal, que dava o clima de equilíbrio e segurança da casa e era o centro familiar que envolvia muitos mistérios na cabecinha do seu neto.
O ritual do chá obedecia a um pequeno roteiro que se iniciava com uma mordida num torrão de açúcar, que vinha embrulhado um a um, seguido de um gole sorvido com o açúcar na boca. O detalhe do ritual se completava no ato do gole de chá, que era feito com um ruidoso gorgolejo, condição indispensável que garantia o seu sabor, é bem verdade, em condições nada recomendáveis para os bons modos de como se comportar à mesa.
As câmeras agora se fixam no garotinho aproveitando uma cadeira vaga e sentando-se à mesa redonda e, em continuidade se dirigindo à avó:
– Vovó, eu gostaria tanto de também ser velho.
– Por que meu querido?
-Para poder tomar chá assim como vocês.
Música de suspense após um pequeno momento de silêncio até a avó afirmar:
– Querido, não precisa ser velhinho para tomar chá…
Imediatamente uma xícara é cheia com água quente e recebe a infusão gloriosa acompanhada de dois torrões de açúcar colocados à frente do neto, espantado com o rápido desenrolar da cena e a concretização de seu desejo.
O aprendizado havia sido completo: mordida no torrão de açúcar e o gole chupado, barulhento e mal-educado que garantia sentir todo o sabor do chá, que cá entre nós, os ingleses ainda não haviam percebido.
Naquela tarde, ao chegar em sua casa e tomar o chá, faltava apenas o torrão de açúcar. A Companhia Matarazzo que os produzia não existia mais. Além disso, estava diabético. Sabia, no entanto, que sua avó e seus tios estavam todos ao redor da sua mesa assistindo ao gole mais espalhafatoso com que seria possível sorver o chá tão desejado.
A única diferença é que agora ele era tão velho quanto eles ainda eram.
The End
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