Clemente Rosas

Prison hands.

Álvaro Moreyra, em seu livro “As Amargas, Não”, clássico da literatura de reminiscências, conta o diálogo com o seu carcereiro, ao sair de prisão por delito de pensamento, nos turbulentos anos 30 do passado século:

O senhor agora é um homem livre!

– Sempre fui, principalmente no tempo em que estive aqui.

A lembrança me vem a propósito do livro de Chico de Assis, “Cárceres da Memória”, recentemente lançado.  E me leva à conclusão de que meu amigo não foi feliz no título, escolhido em contraponto ao da famosa obra de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”.

Na verdade, a memória, pré-condição da consciência e da capacidade de projetar, simular e sonhar do espírito humano, não pode ser encarcerada.  E é essa nobre faculdade cerebral que nos distingue, na natureza, dos demais viventes.

No nosso caso, a prova está no próprio livro de Chico.  Através dele, como afirma seu autor com rara felicidade no texto de apresentação, “a literatura cumpriu seu papel habitual de recriação da vida”.  E o poeta foi transportado, como um “fazendeiro do ar”, para verdes pastos, onde pôde apascentar as suas lembranças, liberto das paredes que apenas encarceram os corpos.

O livro é valorizado pelo inspirado tratamento gráfico e editorial que recebeu.  Os originais – uma “envelhecida, tosca, pobre brochura datilografada” – foram reproduzidos em fac-símile, e enriquecidos com fotos da prisão onde esteve o escritor, por nove anos.  As marcas dos furos e dos grampos nas páginas, os tipos oscilantes de uma velha máquina de escrever, tudo contribui para dar autenticidade e calor ao documento.  E o leitor corre os olhos, comovidamente, pelos poemas, notas e reflexões do prisioneiro.

Nos textos, é de se notar a atitude resignada de contemplação serena, e algo melancólica, dos fiapos de natureza que chegam a um encarcerado.  E isso o aproxima de outros presos, ilustres:

É alegre a natureza

Quando chora.

O calor dissimula e seu cessar

Deixa um ar de reinício.

Os homens voltam ao trabalho

Revigorados.

Os carros mantêm-se às ruas

Acautelados.

E eu retorno dos sonhos

Tranquilo leve aceitável

Percebemos aí o mesmo clima e o mesmo tom de Paul Verlaine:

Doux bruit de la pluie

Par terre et sur les toits

Pour um coeur qui s’ennuie

O le chant de la pluie

……………………………………..

Le ciel est pardessus le toit

Si bleu, si calme

Un arbre pardessus le toit

Berce sa palme

Tomemos outro exemplo:

Despeço-me do quadradinho

liame de dois mundos.

Melancólico, melancólico

quando descer um andar

é perder de vista a luz

as flutuações do rio

as variações do tempo

o movimento a vida.

Estes versos merecem ser confrontados com os de Ho Chi Minh, com quem o nosso autor se identifica, pela motivação política da prisão:

Os velhos presos dão boas-vindas aos novos presos

No céu, nuvens brancas perseguem outras escuras

As nuvens somem do nosso campo de visão

Na terra, gente livre é amontoada nas prisões.

………………………………………………………………………

De manhã, o sol aparece sobre os picos das montanhas

E se derrama pelas montanhas com um brilho róseo

Só em frente à prisão a escuridão permanece

E o sol é afastado das celas da prisão.

O livro de Chico de Assis não vale apenas como um expressivo volume de versos e reflexões.  Ele é também um testemunho palpitante de que nenhuma ditadura pode elidir o ideário e os sentimentos de cidadãos livres.  E de que o espírito humano sempre vence a batalha contra a violência e o obscurantismo.

Fileira de cima: Érico Dornelles, Rholine Sond, Grivaldo Tenório, Alan Melo, José Silverio, Mauricio Anizio, Zoé, Airton Correia, Ednaldo Miranda, Chico de Assis. Ivo, Amaro e Bode.
Fileira do meio: Ivan, Chico Monteiro, Edvaldo, Julio Santana, não identificado, não identificado, Samuel Firmino, José Arlindo Soares, Sergio Buarque, Generino, Ivo e Elenaldo Teixeira
Fileira de baixo: Hamilton, Pedro, Wandevaldo Nogueira, Juliano Siqueira, Luciano Almeida, Pery Falcon, Rosalvo e Inocêncio Uchoa.