Fernando Dourado

Old Arbat St.

15.11.14

Cheguei a Frankfurt depois de um breve cochilo e um almoço até decente a bordo. Fui direto para o terminal B, de onde saem os voos para a Europa do Leste e, lá chegando, vi diminuírem as chances de encontrar a tal roupa de frio de que precisava para me proteger do rigor moscovita. Tinha, é verdade, uma malha “Paul and Shark”, grife que acho ainda mais brega do que as demais, que me coube direitinho, mas que custava impensáveis 489 euros. Absurdo. Se fosse um terno, a história mudaria. Resolvi então trabalhar, comer uma salsicha para manter a tradição e embarcar para Moscou. A meu lado, um casal de atletas russos. Pelo jeito, primavam pela alta performance. Levaram meia-dúzia de bananas e até mesmo duas bandejas para comer um preparado proteico qualquer. As revistas que liam só versavam sobre bicicletas e tomavam muita água. Em menos de três horas de voo fizeram várias flexões no corredor. Que vida. Eu jurava que a vira se benzendo à moda ortodoxa russa ao acelerar das turbinas, mas as duas bandejas deles eram kasher. Como já tinham se empanturrado das coisas que eles mesmos trouxeram, a loirinha me ofereceu a bandeja. Disse que era peixe e que eu iria gostar. Eu falei: então deixa eu terminar essa massinha aqui, tomar um copo de tinto, e então ataco a bandeja que você tão gentilmente me oferece. Engraçado, você nada tem de judia. Ela disse então que eles não eram judeus. Mas que só pediam kasher porque era certeza de pratos feitos fora da zona industrial dos catterings e com bons ingredientes. Fazia todo sentido e eu lembro que uma vez ou outra encomendei, nos tempos que viajava muito. O resultado foi ótimo. Dois filezinhos de peixe excelentes acompanhados de uma massa tipo Spätzle muito saborosa. Veio ainda uma excelente salada de grãos e uma cumbuca com cebola frita – o melhor de tudo. De sobremesa, gelatina. O judaísmo me persegue terminantemente até quando tento mantê-lo fora de meu raio de ação. A chegada a Moscou foi às onze da noite e fiquei me deliciando com os voos que provinham de diferentes partes do velho império. Deixei de lado minha mala e fui para a esteira de um voo que vinha de Fergana, lindo lugar que visitei em 1994 e onde comi os melhores melões de minha vida. Eles eram regados a águas de irrigação do Amur-Daria e do Syr-Daria – desviadas para plantar algodão e garantir auto-suficiência. Era uma loucura ecológica, o sêmen de uma catástrofe ambiental. No aeroporto, adorei ver as mulheres com traços mongóis-coreanos, o falar uzbeki-turkmeni, as bagagens enfardadas, a solidariedade dos funcionários da faxina do aeroporto de Domodievono, todos os de baixo grau hierárquico à procura de conhecidos, e dando dicas de onde recuperar as bagagens e tratar das crianças sujas e bastante encapotadas. Antes que a turba lá fora pulasse em cima de mim para oferecer táxi, já passei o cartão num serviço regular e comprei a paz por trinta euros. Uma hora depois eu estava na rua Arbat, bem instalado, depois de ter relanceado as torres do Kremlin e de, mais uma vez, me sentir o homem mais afortunado do mundo. Só este ano é a quarta vez que venho para o Leste; depois de mais quatro ano passado. O quarto é senhorial.  Algumas janelas estão iluminadas, mas as cortininhas de voile são implacáveis e não há jeito de desnudarem uma russinha como aquela do avião fazendo acrobacias domésticas. Não se pode ter tudo.

 

16.11.14

 

O dia começou bem. Elena chegou à porta do hotel e me viu em trajes relativamente leves. Disse que só sairíamos se fôssemos comprar um agasalho de imediato. E era o que eu queria, na verdade. Gastei mais de 400 dólares em um bom modelo – o único que coube em mim – e não tinha escolha. Como o último que comprara foi em 2008, digamos que veio em boa hora. Fiquei meio chocado de perceber que em terra de homens grandes, nem assim havia nada de adequado às minhas medidas. O ponto alto do dia foi o almoço perto da Praça Vermelha onde depois daríamos nosso tradicional passeio. Assim, almoçamos no “Strana Kotoroy Net” – ou “O país que não existe” – onde cozinheiros de diversas etnias fazem num lindo ambiente uma culinária dos pratos mais conhecidos das antigas repúblicas soviéticas. Comemos muito bem e ela fez questão de pagar, o que só aceitei a muito custo. No final, chamou o velho Boris Schneiderman de fascista. Não gostei, mas calei-me. Fascista aqui é genérico. O Brasil está doente.

 

17.11.14

 

Essa madrugada um dente me incomodou a ponto de impedir o sono e tomei uma ampola líquida de um analgésico comprado no aeroporto de Madri. Li a bula e o fato é que o danado é potente. Serve para tratamentos oncológicos e é para ser tomado como injeção no músculo. Depois de um banho bem quente e prolongado, desses que já não se tomam em São Paulo por causa do racionamento, me encapotei e fui andando até a Praça Vermelha para aproveitar essa tarde de folga e encontro comigo mesmo. O rinque de patinação continua em montagem, mas as cores estavam lindas e tive a impressão, certamente falsa, de respirar um ar muito puro. O mausoléu de Lenine é tão belo que deploro o dia que sairá da praça. Mas as pessoas hoje passam com tanta indiferença que, fosse eu familiar, pediria um repouso eterno mais recolhido antes que algum cão vadio urine no granito. É verdade que, a essa altura, já não se deve saber nem se o que lá está é, de fato, o corpo original do velho líder. Isso porque mais de setenta cadáveres desde então já emprestaram elementos – pele, cabelo, cartilagens – para os retoques do embalsamamento de Vladimir Ilich Ulianov. Na volta para o hotel, passei pela porta da outrora lendária loja de brinquedos Detski Mir – “O mundo da criança” . Comprei muitos brinquedos lá para os enteados no passado. Geralmente eram coisas rústicas, sem tecnologia, mas que tinham certo encanto. Depois a loja entrou numa decadência de dar pena, mas agora pelo menos a fachada estava bonita, seguindo o padrão extravagante das luminárias natalinas da cidade. Imagino que a maioria do sortimento seja chinês.  Hoje a rua Arbat estava depauperada com pouca gente caminhando e menos ainda expondo quadros ou vendendo quinquilharias para turistas. Fui até meu restaurante favorito na área – o Bósforo – e, por dois mil rublos, comi bem de uma ponta a outra. Grosso modo, cem reais, mas não faltou nada e, horas depois, ainda estou com aquela sensação de jiboia saciada no frio.

 

18.11.14

 

Amanhã me mudo para os aposentos da universidade e espero que sejam melhores do que os do ano passado. Já a sopa de cogumelos de Natália pode ser a mesma. Amanhã, repito, quero estar mais leve e mais disposto à troca intelectual como pede o espírito acadêmico. Depois do almoço, mandei uns e-mails e, na sequência, fui explorar a região que já estou adorando. Em se tratando de mim, isso não é tão difícil quanto aparenta. A universidade fica na Leningradsky Prospekt e a estação de metrô de referência chama-se Sokol (pequeno falcão). Está bem conectada com a praça Maiakowskaya e com a estação de trem Bieloruskaya. O que mais me causou espanto foi a presença de um enorme prédio de versão stalinista, porém novo em folha. Quando fui vê-lo mais de perto, tive a impressão de estar diante de um empreendimento Trump ou em algum condomínio brega da Barra da Tijuca. Aliás, o nome do monstro – novinho e bem habitado – é Trump Palace e não me espantaria nada que o lamentável Donald esteja envolvido pois tem muito a ver com ele. Quando a noite caiu vi que, contrariamente aos austeros prédios stalinistas originais que só contam com sinalização aeroportuária de segurança, ele reluz como um castelo da Disney e os faróis são postados de forma a que ele irradie estrategicamente todo seu esplendor kitsch. Qualquer hora dessas vai ter sertanejo comprando um espaço ali. Ademais, parece ter quase tudo lá dentro – lojas, restaurantes, academias e, se duvidar, até escola. São Paulo tem umas aberrações parecidas em plena Cidade Jardim. Logo por que não haveria de ter aqui, justo no paraíso da plutocracia? Um taxista parou diante de um portão e só faltou ser massacrado pelas buzinadas histéricas de uma loira ornamental. Mas o que conta mesmo é o burburinho em volta da estação de metrô Sokol, este bem animado. Entrei numa loja gastronom de feição mais popular e se as vendedoras não tinham todas as cores das ucranianas do mercado da Bessarábia, em Kiev, têm pelo menos aquele modo de ser brusco e irritadiço em que um sorriso parece ser interditado e que dá a impressão – verdadeira até alguns anos atrás – de que quem estava atrás do balcão detinha poder de vida ou morte sobre quem estava do lado de cá. E não o contrário. Elas até podem propagandear seus pepinos, repolhos, hortaliças, peixes, queijos e costelas mas, do momento que o cliente se anima, a cara fecha e ela se entregará à operação de empacotamento com rapidez, ciosa de que não deve ceder muito espaço de escolha para o incômodo convexo de sua psicologia côncava. Exagerei agora. Simpatia, só mesmo das centro-asiáticas que, mesmo assim, logo se eslavizam. Onde já se viu? A exemplo do que fazem em muitos lugares da Europa, os embutidos são empacotados de qualquer jeito, numa trouxinha de papel que ocupa o mínimo espaço. Nos becos labirínticos por trás da grande avenida, assomam conjuntos residenciais enormes e que datam das outras eras. Paradas de ônibus elétricos se integram à estação de metrô e Moscou é enorme pois pontos extremos no mapa levam a outros ainda mais remotos. Quando tiver um tempo livre, vou fazer o de sempre: subir num ônibus destes e ver onde ele vai parar. É divertido ver a expressão das pessoas, o silêncio pesado, a passividade, a circunspecção, a indiferença e, vez por outra, uma conversa mais exaltada entre duas babushkas. Ao pé da escada de um ônibus elétrico, vi uma senhora de bastante idade saltar com graça escada acima. Pois bem, sou capaz de jurar que ela foi bailarina da ativa até completar 70 anos, pelo menos, e fato é que entrou nos anos em forma física nada compatível com o rosto enrugado. As mexericas que comprei no ambulante chegaram ao quarto congeladas e precisei esperar que o gelo derretesse até que elas ficassem comestíveis de novo. Amo Moscou, mas talvez esse seja só o começo de uma história. Pois pensar que tudo o que vejo tem raízes em 1917. Ou seja, em três anos, um século. Acho que ainda voltarei muito ao tema.