“Em busca do tempo perdido” é uma obra que assume, por assim dizer, a potência e o desespero do desejo. A meu ver, mais que a sexualidade em si mesma, o que está presente como um dos grandes “leitmotivs” é justamente o desejo e sua força vital, o desejo que vai de par com a sexualidade e que é ao mesmo tempo uma inequívoca fonte de angústia. Se, por um lado, nosso autor quis fazer um “estudo” geral da sexualidade humana, apontando a diversidade e a mistura de vários comportamentos; por outro, não cessa de refletir sobre o que subjaz de psicológico e até de psicanalítico a esses diversos comportamentos. Como se sabe, as afinidades entre Proust e Freud têm sido uma constante temática na fortuna crítica proustiana.
Na “Busca”, cujo herói/narrador se afirma explicitamente como alguém sem ideias preconcebidas, a sexualidade e o desejo são vistos, quaisquer que sejam os supostos desvios ou perversões, como naturais, sem julgamento moral, o que não quer dizer que o mundo retratado e seus personagens compartilhem desse ponto de vista. Pelo contrário, malgrado a liberalidade francesa de então, o que se observa na virada do século 19 para o 20 ainda é um mundo repressivo que não dá ao desejo e ao sexo o estatuto que viria a assumir com a revolucionária criação da psicanálise.
Nesse contexto, Proust será um dos primeiros autores a incorporar o desejo sexual como um tema integrado e recorrente, sem meias palavras. Como um analista “avant la lettre”, vai tentar decifrar a esfinge que sente devorá-lo. Seu livro monumental permitiu-lhe espelhar-se e espalhar-se como alguém a meu ver pan-sexual. O sentimento dos heterossexuais, dos homossexuais e dos bissexuais de seu romance são, imagino, como que figuras e projeções do próprio autor. O que neles projeta é provavelmente o mesmo drama que encenou ou viveu em si mesmo. Sobre isso, é significativo saber (vários estudiosos e biógrafos proustianos já o notaram) que só com a morte dos pais Proust sentiu-se liberado e desreprimido para criar seu livro, onde desejo e sexo, para choque dos contemporâneos, foram postos a nu de uma forma tão naturalista quanto inovadora.
Após tantas leituras da obra proustiana, suspeito que a palavra “desejo” e seus cognatos, não por acaso, sejam as mais frequentes (O filósofo Nicolas Grimaldi nos fala que a palavra “amor” é provavelmente a mais presente na “Busca”. Mas o que seria o amor senão o principal e mais característico desejo?). O desejo é, por assim dizer, o próprio existir, com este se confunde, como transparece nesta passagem: “É o desejo que engendra a crença, e se de ordinário não reparamos nisso é porque a maior parte dos desejos criadores de crenças não acaba […] senão quando nós mesmos acabamos”, e isso porque “a velhice nos torna, antes de tudo, incapazes de empreender, porém não de desejar. Só num terceiro período, aqueles que chegam à extrema velhice renunciam ao desejo”.
Proust, seguindo as pegadas de Buda e Schopenhauer, sabe que só uma satisfação seria possível e definitiva: a extinção do desejo. Este não é outra coisa senão “a eterna lástima da vida” (“lástima” na tradução de Mário Quintana; o original francês fala em “regret”, palavra geralmente mais traduzida como “lamento”, “queixa”, o que conota sofrimento, falta, e não valor moral). Assim, a vida se projeta para o nada e, enquanto desejo, assume as variadas formas da ilusão, impregna-se das mais diversas fantasias. O desejo, como a vida, é uma espécie de Proteu e faz, segundo Proust, “florir todas as coisas enquanto a posse as faz murchar”. O caleidoscópio do desejo está sempre a nos mostrar, em suas combinações, novas figuras, novos signos, novas crenças. Mas não nos iludamos: recomeça, por isso mesmo, o ciclo das desilusões, o retorno ao desencanto.
Como se vê, Proust associa-se aos filósofos pessimistas. Seu idealismo negativo quer tão somente nos apontar que a vida é tal como se expõe, o que não significa um completo desastre, mas uma oportunidade de tomarmos nas mãos, com mais consciência, o seu fugidio prazer. Enquanto ser de desejo, o Homem não se deve deixar iludir: não está destinado à felicidade. Somente a arte e a criação conferem algum valor ao seu esforço de existir. Por sua vez, o sexo, lugar privilegiado do desejo, parece nos usar para seus próprios caprichos. A natureza, como diria Schopenhauer, encontra meios de satisfazer não a nós humanos, mas à sua própria e irrefreável Vontade. Por isso, não faltam colorido, vivacidade e contingência nos signos sempre em combinação do caleidoscópio do desejo.
Ocorre-me pensar que a “Busca” é ela própria uma espécie de caleidoscópio, esse artefato óptico e lúdico que Proust soube elevar à condição de poderosa metáfora da vida social, pois nesta encontramos os signos que se combinam e se recombinam num jogo de mudança e repetição. E quem sabe de eterno retorno…
Podemos falar num niilismo proustiano ? Quanto do que ele escreveu foi fruto de sua época e quanto de observação do lado animal humano?
Parabéns novamente.
Podemos falar num niilismo proustiano ? Quanto do que ele escreveu foi fruto de sua época e quanto de observação do lado animal humano?
Parabéns novamente
Muito bom, Paulo Gustavo. Especialmente intrigante é seu último parágrafo em que você vê a “Busca” como metáfora da vida social. Embora meio ocioso perguntar, fica no ar uma questão: a de que se você desconfia da intencionalidade do autor ou se ela simplesmente aconteceu pela própria natureza caudalosa da obra?
Abraço,
Fernando