Roberto Smith (*)
A herança da disparidade regional do Nordeste deve ser entendida como uma construção histórico-social e não pode ser associada a uma causalidade de ordem natural (secas, por exemplo). E é esta construção histórica que vai, em grande parte, explicar os traços da conformação da Região no contexto da nação.
A Região não existe por si, em termos de uma invenção metafísica, ou apenas geográfica. É fruto de um constructo singular, conjugado na história, de seus atores sociais, e de sua inserção geopolítica na ordem internacional responsável pela formação de uma identidade que passa a ser reconhecida.
É necessário, pois reconhecer como se dá a formação dessa pretensa identidade que vai estabelecer os contornos de sua territorialidade enquanto região Nordeste.
Os primórdios da colonização portuguesa (que se iniciou no Nordeste) coloca em destaque a agricultura mercantil canavieira. Que se fez em bases escravistas. Depois associada à pecuária e à produção algodoeira com geração de excedentes de culturas de subsistência que avançaram pelos sertões.
Ao longo da segunda metade do século XVII, e a partir daí, o açúcar vai passar a enfrentar uma crise secular, com a abertura da concorrência antilhana. O preço do açúcar cairia tendencialmente, e o preço do escravo subiria. No auge da economia açucareira, entre 1610-1640 um escravo custava entre 16 e 22 arrobas de açúcar. Na crise em 1780, o escravo passou a custar entre 90 e 130 arrobas de açúcar!
Esta é a primeira caracterização regional a se destacar (ainda incompleta) enquanto “espaço em crise”. Projetaria um processo denominado de Letargia Secular (Celso Furtado). No entanto, é o endividamento dos proprietários que faz persistir a produção e uma crescente dependência em relação ao capital mercantil, que era traficante. Era necessário produzir mais açúcar para pagar dívidas e reproduzir o sistema. É uma lógica do capital mercantil.
A especificidade que busco destacar: as terras no Nordeste foram se fechando dentro do regime de sesmarias! (que seria extinto em 1822 através de um ato de José Bonifácio). Enseja uma lenta desarticulação da economia de base escravista e substituição do trabalho escravo por um campesinato dominado, com base em relações de lealdade e submissão. Não se tratava de trabalho livre e sim de novas e complexas relações de trabalho coercitivo envolvendo o campesinato.
As terras encontravam-se fechadas e sua produção vinculada aos engenhos. O processo de “fechamento de terras” no Nordeste não implicará ocupação e escassez de terras. Tollenare, em 1817, indicava uma proporção de 1 para 24, como sendo a razão entre terras cultivadas e não cultivadas de um engenho no Nordeste, razão esta que atingia 1 para 12 se incluídas as áreas de pastagens. A expansão açucareira que se verifica na Zona da Mata e no Recôncavo baiano resultante das guerras napoleônicas provavelmente tenha ocorrido no interior da propriedade.
As pesquisas de Stuart Schwartz no Engenho Sergipe do Conde são bastante elucidativas no sentido de buscar revelar os “segredos internos” coloniais, título de uma de suas importantes obras. A economia da plantation destacada por Caio Prado Jr. com base no tripé: grande propriedade; monocultura exportadora; trabalho escravo descortinara um importante avanço analítico mas era esquemática e não possuía poder explicativo para dar conta de uma realidade social colonial que já era bastante complexa, envolvendo grandes e pequenos proprietários, com ou sem escravos e a presença de trabalhos a soldo em meio às práticas escravistas.
Procuro estabeleço uma comparação entre a economia canavieira nordestina e a economia cafeeira. Esta se expande em terras abertas e passa a requerer trabalho escravo em grande quantidade. Provoca a transferência (venda) de escravos do Nordeste e do Maranhão para S. Paulo, porque no Nordeste o trabalho escravo já não era mais necessário, e a repressão inglesa ao tráfico vinha se intensificando. .
Quando a escravidão deixa de ser sustentável para a economia cafeeira, ocorre enorme esforço em direção a uma política imigrantista (subsidiada pelo Estado Imperial), que não era cogitada e nem reivindicada para o Nordeste, que já tinha resolvido o problema da forma de submissão do trabalho.
Em termos culturais a baixa permeabilidade à diversificação de correntes imigratórias vai fixar as bases de uma matriz populacional e demográfica formada pela população indígena, negra e portuguesa. O pequeno fluxo imigrantista para a região Nordeste assegurará traços mais bem conservados de suas identidades e tradições culturais portuguesas, indígenas e negras. A matriz de crescimento da população nordestina estará, portanto, mais fortemente assentada sobre a mulher indígena, pois a razão de masculinidade era preponderante entre portugueses e escravos.
A dimensão política é o complemento importante para entender o delineamento regional do “espaço em crise”, envolvendo os contornos da antiga Capitania de Pernambuco e suas Anexas: Ciará, Rio Grande do Norte, Paraíba e porção norte do território da Bahia (Comarca de Manga) até 1799. Estas fronteiras seriam reforçadas pelos contornos da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador, em termos de um movimento protonacionalista de libertação colonial, em precoces bases republicanas. Movimento este impregnado da forte influência da maçonaria. Coincide com toda a decadência da dominação colonial portuguesa e sua herança nos primórdios do Império.
A sustentação e controle do status quo colonial português foi obra do poderio naval inglês, sob o comando do almirante Cockrane. A Inglaterra não tinha interesse em retaliação nacional do território colonial que já dominava em termos mercantis. À crise econômica agora se somava à crise política, de um território que tentou ser uma nação e restara submetido e derrotado.
O contorno da antiga Capitania de Pernambuco e suas Anexas identifica, pois o processo de independência de um país que não aconteceu, e que iria erigir a vaga noção do Norte para a região Nordeste como esta passa a ser tratada.
O café começara a avançar, a partir de 1820 deslocando-se do Vale do Paraíba em direção ao oeste paulista, ao mesmo tempo em que a Coroa Portuguesa, vendo o seu poder absolutista cair em Portugal, com a Revolução liberal do Porto, dá o golpe que significaria a continuidade do poder absolutista na sua principal Colônia, encarnado pelo Imperador D. Pedro I.
O poder absolutista no Brasil perdurará durante todo o Império, onde os Conservadores não darão vez aos Liberais, que serão derrotados, degredados e massacrados. Mas os Liberais nunca tiveram um projeto nacional, perdidos que estavam na defesa dos ideais do localismo. Os Conservadores foram mais decisivos e marcantes em termos de um projeto nacional e de superação da escravidão para “libertar” a economia.
Assiste-se a uma política econômica no Império, que é aquela destinada a proteger o café dentro daquilo que se convencionou denominar de modelo primário exportador. Baseava-se em desvalorização cambial que protegia a renda do setor cafeeiro exportador, que tinha melhores condições concorrenciais no mercado internacional, mas não era o suficiente para preservar a renda do setor canavieiro e algodoeiro nordestino. Reafirmava a tradição do Nordeste enquanto “espaço em crise”.
Nos primórdios da República ocorre uma mudança na política de preservação dos interesses do café. A política de desvalorização cambial é substituída pela política de valorização do café no mercado mundial. E logo no início do governo de Campos Sales se assiste à estruturação daquilo que ficou conhecido como a “política dos governadores” que vai reforçar o coronelismo no Nordeste.
Essa política faz desaparecer o Nordeste de uma configuração que expressasse uma vontade política definida em termos de uma participação mais efetiva na política nacional na Primeira República. Em troca os governadores recebiam apoios circunstanciados e despojados de qualquer forma de influência nos destinos da política nacional.
A política dos governadores juntamente com a política do café com leite (alternância de poder entre S. Paulo e M. Gerais) vai ser responsável por consolidar uma completa assimetria de poder regional, cuja base regional nordestina vai estar representada pela figura do coronel e nas práticas do clientelismo e pactos de lealdade, reforçadas e viabilizadas pela “política dos governadores”.
Este é, portanto, o programa da Primeira República – da chamada República Oligárquica. A defesa do café iria contraditoriamente provocar crescimento industrial, sobretudo no Rio e S. Paulo, dentro de um quadro internacional e cambial propício. O País iria aos poucos trafegar em direção ao modelo de substituição de importações, e formação de um mercado interno na Região Sudeste. O atraso do Nordeste devido à debilidade de seu mercado interno passará a ser a marca mais contundente e projetada da identidade do “espaço em crise”!
Celso Furtado, ao lançar o documento do GTDN em 1959, analisa retrospectivamente aquilo que iria denominar como o modelo de “triangulação das trocas”, mostrando que a economia nordestina perdia igualmente com o modelo de substituição de importações, assim como lhe fora perniciosa a política cambial no primário exportador. A explicação de Furtado e de Rômulo de Almeida é a de que o Nordeste gerava um saldo positivo na balança comercial, cujas divisas serviam para adquirir as máquinas e equipamentos para as instalações industriais do Sudeste. O Nordeste passava a comprar bens manufaturados a preços mais elevados do que se importasse os mesmos, traduzindo-se numa perda regional de substância econômica.
O que se assiste dentro do processo de industrialização é a continuidade de um processo que tivera início com o café que é a vigorosa transmigração de população nordestina, atraída por empregos, primeiro para o café e depois para a indústria, e que vai ser responsável pelo desenvolvimento e pelo crescimento de todo complexo cafeeiro que é, sobretudo, urbano, comercial, financeiro, ferroviário e do setor exportador em mãos de capitais estrangeiros.
Já na década de 50 estamos diante de um quadro onde as articulações políticas no País se estruturam em termos de lutas por bandeiras de Reformas de Base. Dessas mobilizações sociais iriam resultar em conquistas, dentre as quais ressaltaria o surgimento da SUDENE e de todos os processos que vão caracterizar os incentivos econômicos e maior atenção dispensada à questão regional que finalmente entra na pauta política, não sem ampla articulação contrária no Congresso Nacional.
A região Nordeste enquanto protagonista passivo de uma longa estruturação de um “espaço em crise” passa a ter firmada a sua identidade, fortemente envolta na debilidade de seu mercado interno. O conceito de mercado interno não é aquele que poderia parecer como sendo o oposto de mercado externo. Em verdade, trata-se do mercado interno para o capital, que corresponde ao adensamento das transações de compras e vendas, sobretudo dos setores produtivos de bens de capital cujos investimentos comandam o crescimento da economia.
O que mudou de lá para cá? Isso, faz parte de uma outra história, que fica para uma outra ocasião.
(*) Doutor em economia e professor aposentado do Departamento de Teoria Econômica da Universidade Federal do Ceará.
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