É objeto de estudos o fenômeno do aumento do desligamento da realidade por parte de políticos e governantes em momentos de crise. A incapacidade notória de não ver o óbvio. Estamos assistindo a uma dessas manifestações, de caráter exemplar. Gravado pelo empresário Joesley, o Presidente Temer apressou-se em explicar o inexplicável. Deu declaração pública e entrevistas sobre o evento e, como Dilma, no caso da Pasadena, produziu provas contra si mesmo, caiu em contradição e confirmou tópicos da gravação que o criminalizam. Reconheceu que o empresário falou em compra de juízes e procuradores, e que ele não reagiu como devia, achando que era fanfarronice do parceiro. Declarou que o recebeu por causa da operação Carne Fraca, quando esta operação ocorreu dias depois. Não teve o discernimento mínimo de antes de tudo pedir a verificação da autenticidade da fita. Reação primária. Faltou um Gilmar Mendes ao lado, pedindo “cautela”.
Mais recentemente, Temer negou ter utilizado o avião deste mesmo empresário para viajar com sua família, afirmando que viajara em avião da FAB. Depois, desmentiu sua afirmação, tendo em vista os elementos comprovantes da inverdade. O pior é que o desmentido foi seguido da afirmação de que não sabia de quem era o avião. O desnorteamento é visível. Contudo, a falta de discernimento, de compreensão dos fatos e processos em que estamos inseridos, em momentos de alta tensão como este, não é apanágio dos dirigentes políticos, também obscurece a capacidade de seus analistas.
O Brasil encontra-se em um período de transição, dizem todos os analistas. Causa estranheza esta frase, porque tenho a sensação de que nunca saímos da transição, estamos sempre em movimento, em mudança. Houve momentos em que nos esquecemos disso, como no segundo governo Lula, mas foram poucos anos, jamais uma década. E alguns poucos não se deixaram envolver no clima de oba-oba da época. Ficaram retraídos, desconfiados. Há momentos, porém, como o atual, em que esta sensação é tão forte, tão forte, que, permitam-me a expressão, “chega dói”. O Brasil é um país que caminha dois passos e recua um. Pior, entrou no túnel veloz da incerteza, que nos deixa pasmo. Sem compreensão do que de fato está em jogo não conseguimos imaginar com clareza onde esta crise multifacetada poderá nos levar, e mais grave, como dela sair.
Uma questão interessante nessa matéria é considerar que não temos uma transição, no singular, mas transições, no plural. Abordo duas. Temos uma transição do modelo econômico baseado no Estado intervencionista e no processo de industrialização, marcado pela substituição de importações entre os anos 1920/1970, que faliu e não consegue atribuir à economia uma expansão contínua, natural da economia de mercado. Sua crise se manifesta nos anos 1980, e se agrava nas duas décadas seguintes. Há trinta anos patinamos, sem nos dar conta de que é necessária uma mudança substancial na lógica do desenvolvimento socioeconômico. E temos uma transição menor, no regime politico baseado na coalização presidencial, desenhado nos anos 1990, e esgotado na presente década. Elas se conversam e se autoinfluenciam, como não poderia deixar de ser, mas são distintas.
Ao lado dos comentários jornalísticos sobre a conjuntura política, mais ou menos inteligentes, presentes em nossa mídia cotidiana ou semanal, somos invadidos neste momento por análises genéricas, sustentadas em categorias envelhecidas, como oligarquias, burguesia nacional, luta de classes. Não que estas categorias sejam imprestáveis ou inócuas, mas elas mudaram de sentido com o tempo, e nem todos os seus usuários deram-se a devida conta. Elas perderam parte de seu valor heurístico. Um exemplo: a contradição entre classes sociais não desapareceu, apesar de todas as críticas a respeito, e as dificuldades de sua operacionalização, mas ganhou um outro status, em dois sentidos. Se antes ela funcionava como um princípio organizativo da sociedade, hoje ela convive com uma plêiade de conflitos que lhe retiram o valor de princípio organizativo, para repartir esta função com seus congêneres. De outro lado, os atores mudaram substancialmente ao longo do tempo. A denominada classe operária, núcleo central da “emancipação da humanidade”, do credo marxista, não apenas não se expandiu, como previsto, mas percorreu uma trajetória inversa ao longo da segunda metade do século XX. E, mais recentemente, de forma mais acelerada com o processo de “desindustrialização”, a qual, segundo analistas, é uma marca de nossa sociedade dos últimos vinte anos.
Uma das mudanças significativas que marcam, não a pequena, mas a grande transição, é o fato de que em face de um modelo econômico falido, não conseguimos desenhar uma alternativa. Em grande parte, isso ocorre porque não atentamos suficientemente para as mudanças dos últimos trinta anos, que ocorreram em velocidade a que não estávamos habituados. Não há uma compreensão clara. Não apenas entre os intelectuais, mas no âmbito da sociedade brasileira, e particularmente entre seus dirigentes políticos. A Dilma tentou o tempo todo, inutilmente, estimular o antigo modelo com inócuas isenções de impostos. Só fez agravar a crise. Por sua vez, os defensores do modelo de desenvolvimento durável não conseguem exprimir a proposta com clareza e, sobretudo, de forma operacional, para que tenhamos uma alternativa ao modelo econômico falido.
Quanto à pequena transição, o Congresso Nacional não consegue desenhar uma proposta de reforma política que assegure um custo menor de campanha, reduzindo a corrupção eleitoral, e que aproxime os representantes dos representados. No primeiro caso, duas medidas podem ser tomadas: a extinção do uso de TV e a adoção do voto distrital. No segundo, deve-se eliminar as coligações nas quais votamos em A e elegemos B. Mas deve-se também extinguir as condições favoráveis à ingovernabilidade, como a profusão de partidos, por meio da extinção do acesso ao fundo partidário por parte de partidos sem expressão eleitoral, desestimulando a sua criação. Eleições presidenciais anteriores às legislativas, por sua vez, facilitam a constituição de maiorias governamentais, acelerando o fim do presidencialismo de coalizão. Como a possibilidade de candidaturas avulsas conversa com o desejo da sociedade de ter candidatos sem comprometer os desgastados partidos na praça. As tentativas de listão ou de aumento exorbitante do fundo partidário, que se discutem no Congresso, caminham no sentido do suicídio politico, no afrontamento da opinião pública, que não está disposta a assinar cheque em branco para politico, ou financiar obrigatoriamente as campanhas eleitorais astronômicas que conhecemos atualmente. O Congresso tem dificuldades em adotar medidas que vão ao encontro das demandas da sociedade, mas, se conseguir, é provável que o País dê um salto qualitativo nas próximas eleições.
De forma idêntica, no caso da grande transição, dever-se-ia abrir um fórum de políticos, intelectuais, empresários e lideranças populares, para construir eixos de ação estratégica relativamente consensuais em sua grande expressão, embora com divergências na sua operacionalização. Elas possibilitarão um novo tipo de desenvolvimento. Fizemos isso na luta contra a Ditadura, inaugurando o mais longo período democrático que o Brasil já conheceu, na criação da estabilidade monetária, que nos permitiu vencer a hiperinflação, e, finalmente, na ideia de que são necessárias políticas de proteção social, com redução da pobreza e das desigualdades. Por que não podemos, hoje, definir os grandes eixos de ação estratégica que nos permitam criar um novo modelo de desenvolvimento econômico, sob a luz da sustentabilidade, da inovação, da solidariedade e do “bien vivir”? Modelo que seja produtivamente inclusivo, com uso racional dos recursos naturais, com prioridade efetiva na educação e na inovação, e um Estado mais eficiente, menos burocrático e menos corrupto. O senador Cristovam Buarque está iniciando um movimento neste sentido, com o objetivo de tentar definir um projeto mínimo e relativamente consensual de um novo modelo de desenvolvimento, que congregue as forças comprometidas com a construção de um futuro diferente para o Brasil. É uma esperança nesse mar de desânimo que vivemos atualmente.
Muito boa análise. E concordo que para ter um “projeto de país” que alguns da velha guarda reclamam retoricamente, ou “novo modelo de desenvolvimento econômico” é preciso construir um consenso para tal projeto de país. Baseado em que? Por onde começar a construção de tal consenso, em um estado democrático? Também acho que a crise está absorvendo tanta atenção que estamos esquecendo do médio e longo prazo. Essa crise vai passar. E aí?