Clemente Rosas

…”Sou positivamente liberal em economia, socialdemocrata em política e anarquista em cultura”  – José Guilherme Merquior

Nunca tinha ouvido falar do Professor João Cezar de Castro Rocha, doutor em literatura. Mas o tema de sua palestra – José Guilherme Merquior – me levou à Fundação Joaquim Nabuco no dia 13 passado.  E tive a oportunidade de conhecer um dos melhores conferencistas que já encontrei em minha vida.  Sua exposição revelou riqueza vocabular, precisão conceitual, calor humano, jovialidade, e uma fluência verbal que só havia visto, até então, no mestre Santiago Dantas.  Tudo isso – e afortunadamente para mim – sem qualquer “muleta” audiovisual, a não ser a projeção de um único quadro, do pintor Georgione – La Tempesta –  a que se referiu, na conclusão da sua fala.

Sou da mesma geração de Merquior, e tinha notícia dele desde o tempo em que, aos 21 anos, morei no Rio, como dirigente da União Nacional dos Estudantes, quando ele já despontava como crítico literário nas páginas do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB).  Mas éramos, eu e os companheiros da UNE, esquerdistas de diversos matizes, e tínhamos prevenção contra o jovem liberal que não se engajava, como faziam quase todos os intelectuais, em um “tempo de partido”, de “homens partidos”, como definiu Drummond.  Só muito depois, passado o olho do furacão de 1964, assisti a uma conferência dele na FUNDAJ, e li seus livros “As Ideias e as Formas”, “A Natureza do Processo” e “O Marxismo Ocidental”.  E fiquei sabendo de sua amizade e respeito para com Leandro Konder, grande pensador de formação marxista, que assinava, também quando jovem no Rio, uma coluna satírica no “Novos Rumos”, jornal do PCB, sob o pseudônimo de Pedro Severino.  Ao ponto de qualificar o livro do amigo sobre Lukács como “belo, profundo e luminoso”.

E o que emergiu, com clareza solar, da palestra do Prof. João Cezar?  A figura marcante de um dos maiores pensadores brasileiros (ao lado de Sérgio Paulo Rouanet e Ferreira Gullar), que eu já vinha aos poucos descobrindo: extremamente precoce (primeiro livro aos 21 anos), de uma erudição gigantesca (“Ce jeune homme a tout lu”, segundo Raymond Aron), escrevendo livros também em inglês e francês, sempre em linguagem clara, com saudável espírito polêmico e razão despida de vieses e preconceitos.  Devo a ele o lampejo que me fez tomar consciência do artificialismo e das limitações da concepção da dialética marxista, como explicação para as transformações da natureza e da sociedade. (Para ele, “uma senhora de pouca virtude”).  E também a compreensão do caráter não-científico da psicanálise, outro monstro sagrado da nossa civilização.  Ambas mitologias modernas, como as rotulei em artigo publicado nesta revista eletrônica.

Foi também Merquior que, com a “artilharia leve” dos seus artigos no SDJB (expressão dele próprio), desconstruiu brilhantemente o formalismo de certos críticos pós-modernos, que insistem em abordar o texto literário com abstração do contexto histórico em que foi escrito, e em que viveu o seu autor.  Trata-se de reducionismo mutilador da realidade, que compromete a valorização da obra estudada, e esconde, muitas vezes, as limitações intelectuais de quem o adota, em matéria de conhecimento histórico, filosófico ou sociológico.  Temos aí o caso dos “hermeneutas apedeutas”, na classificação irônica do nosso comentado.

De suas polêmicas, merecem referência as que manteve com duas figuras notórias dos nossos meios jornalísticos e políticos.  Com Paulo Francis, que começou exaltado esquerdista e acabou direitista empedernido, ao ponto de classificar os nordestinos como “jecas de uma região desgraçada” – e ser banido, por conta disso, de todos os jornais do Nordeste – e com Marilena Chauí, a “filósofa petista”, que põe o seu pensamento a serviço do partido, e “odeia a classe média”.  No primeiro caso, Francis, sem argumentos, limitou-se à difamação e à agressão pessoal, bem ao seu estilo cafajeste.  No segundo, a descoberta e revelação do plágio ao pensador francês Claude Lefort fez a brasileira tirar logo o time de campo, recolhendo-se ao seu público cativo de sectários.

Merquior esteve sempre distante das tendências que infirmam o pensamento contemporâneo: a busca do aplauso fácil, pela simplificação; o recurso às citações, desobrigando o juízo próprio; e a compulsão de originalidade, pelo caminho tortuoso da expressão obscura.  O que se observa é que intelectuais, não apenas brasileiros, no afã da novidade, concebem categorias nebulosas de pensamento, recorrendo, às vezes, levianamente, a conceitos de outras disciplinas, como a matemática, para empulhar leitores de espírito tímido.  Essa atitude foi magistralmente desmistificada pelos cientistas americanos Alan Sokal e Jean Bricmont, em seu livro “Fashionable Nonsense – Postmodern Intellectuals Abuse of Science” (edição brasileira: “Imposturas Intelectuais”), onde figuras como Lacan, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Luce Irigaray e outras são reduzidas às suas verdadeiras dimensões intelectuais.  Não devemos esquecer a observação de Ortega y Gasset, de que a clareza é a cortesia do pensador.

Por falta de argumentos mais consistentes, os adversários de Merquior criticam a sua suposta carência de pensamento próprio.  E o professor João Cezar abordou bem o tema, que aqui desenvolvo.  Em primeiro lugar – num enfoque bem pessoal deste escrevinhador – o avanço da ciência no século XX reduziu o espaço para os sistemas filosóficos abrangentes, como já vinha ocorrendo, desde o Renascimento e o Iluminismo, com a religião. Em segundo lugar, terá havido mesmo originalidade de pensamento entre filósofos medievais e modernos, consectários dos gregos antigos?  Pelo menos quanto aos ocidentais, há espaço para a dúvida. Tive um amigo, profundo conhecedor da Antiguidade Greco-Romana, que me desafiou a apontar qualquer concepção filosófica moderna, para que ele, prontamente, indicasse a sua matriz grega.  Tentei duas vezes e perdi.  Não há mais novidade, hoje, em filosofia.  Há apenas – ou deve haver – isenção de “parti pris”, acuidade de percepção, universalidade de conceitos, coragem de encarar a realidade e as lições da História, sempre com foco na essência das coisas.

Seria desejável, como observou o conferencista, que Merquior não tivesse morrido tão jovem (49 anos), para poder analisar, com sua lucidez e independência de espírito, as profundas modificações na sociedade, em escala mundial, a que estamos assistindo, sobretudo a partir da última década do século passado. Pois o jovem pensador brasileiro não teve inibições em criticar os europeus, convertendo-se, ainda na expressão do Prof. João Cezar, no antípoda do Oto Maria Carpeaux, europeu que se dedicou a interpretar o pensamento brasileiro.  Faria bem melhor que um Francis Fukuyama, de imerecida notoriedade.

Volto à estrutura da conferência para reportar como, enfim, o Professor João Cezar fez alusão ao quadro “La Tempesta”, em seu arremate.  O pintor foca o momento inicial da tempestade, com dois raios, no centro da pintura, riscando um céu sombrio e convulso.  Abaixo, um córrego ainda calmo.  Numa das margens, jovem mãe amamenta o filho. Na outra, um pajem a observa furtivamente.  A mulher olha docemente, sem timidez nem exibicionismo, para o espectador do quadro.

Como relacioná-lo ao tema da palestra?  Certamente, a paisagem induz à reflexão de que a realidade é complexa, e está sempre aberta a “leituras” diversificadas, provisórias e perfectíveis.  Assim como a ciência, a razão crítica , e os seus cultores.