Ivanildo Sampaio

Detalhe de máquina de datilografia.

Não dá para esquecer a efervescência que era a redação da Manchete, localizada na Rua do Russel, 804, Praia do Flamengo, Rio de Janeiro, no final daqueles anos 60. A começar pelo brilhantismo dos profissionais que a compunham – não apenas em Manchete, a “revista-mãe”, mas nos demais títulos que formavam a  família de publicações da Editoria Bloch: Fatos & Fotos, Pais e Filhos, Ele e Ela, Desfile, Amiga, Tendência, Sétimo Céu, Enciclopédia Bloch e tantos mais.

Comecemos pela Manchete: ali estavam, trabalhando e produzindo todos os dias, se não estivessem viajando para alguma tarefa fora da sede,  nomes como Raimundo Magalhães Jr., Ney Bianchi, Nilson Laje, Zevi Ghivelder, Flavio de Aquino, João Martins, Renato Sérgio, Flávio Costa, Salim Miguel, Cícero Sandroni, Roberto Muggiatti, Paulo Rehder, Narceu de Almeida, Lago Burnet, Ledo Ivo,  Marco Aurelio Borba, Uirapuru Mendes, Irineu Guimarães,  Silvan Paezzo,Herbert Laranjo, Carlos Marques, Atenéia Feijo, Creston Portilho, Rui Portilho, Rosa Freire d’Aguiar, João Antônio e tantos outros. Por pouco tempo, ali aportou também o genial gaúcho Caio Fernando de Abreu, que por força das circunstâncias acabou regressando a Porto Alegre. Cerca de 30 fotógrafos, considerados os melhores do país, produziam imagem para as centenas de páginas de textos publicados a cada semana. O gaúcho Justino Martins, conterrâneo e cunhado de Érico Veríssimo – ambos nasceram em Cruz Alta – chefiava aquele grupo, certamente o mais brilhante e talentoso na história do jornalismo pátrio.

Éramos um extrato da própria sociedade brasileira de então: estavam ali não apenas cariocas, mas gente de todas as partes desse imenso país, muitos, como eu, Marco Aurélio Borba, Caio, Uirapuru, Salim Miguel e outros mais, fugidos da repressão em seus Estados, onde de repente ficou impossível trabalhar e sobreviver. João Antônio, o grande repórter e escritor paulista, autor do premiadíssimo “Malagueta, Perus e Bacanaço” – saiu de São Paulo para o Rio não por questões políticas, mas por recomendações médicas, pois precisava cuidar da saúde do filho, que desenvolvera uma profunda alergia ao ar poluído da “Paulicéia Desvairada”.

Foi João Antônio um dos primeiros amigos que fiz na redação da Manchete. Além de premiado como contista, João fizera parte da primeira equipe da Revista Realidade, lançada em São Paulo pela Editora Abril e ainda hoje considerada um marco na história do jornalismo brasileiro. Era uma revista que privilegiava o texto, que permitia ao repórter escrever na primeira pessoa, que não tinha limite de gastos para produzir uma boa matéria e que, acima de tudo, pagava os melhores salários do jornalismo brasileiro. Como João, pela sua fama e seu histórico, foi contratado pela Bloch ganhando bem mais do que a média, provocou uma certa ciumeira em alguns profissionais mais antigos na Manchete, o que o deixava taciturno e chateado: não era culpa dele se ganhava bem, os outros que fossem cobrar dos patrões.

Como nós dois chegamos no Rio quase ao mesmo tempo, não conhecíamos a cidade e não tínhamos amigos mais chegados, quase sempre, ao fim do expediente, saíamos juntos para o chope no bar da esquina e uma avaliação da vida nessa nova experiência. E tínhamos outra coisa em comum: ambos gostávamos de um taco de sinuca.

O restaurante Lamas, naquela época já próximo de completar o seu primeiro centenário, ficava no Largo do Machado, a poucos quarteirões da seda da revista, servia chope de boa qualidade, tinha seis mesas de sinuca nos fundos, permanecia aberto até que saísse o último cliente. Durante muito tempo, antes que descobríssemos a beleza que era a quadra das escolas de samba, quando não estávamos, eu ou ele, viajando a serviço da revista, o Lamas passou a ser o nosso refúgio das sextas-feiras.

Numa das minhas viagens mais demoradas, com quase 40 dias fora da sede, chego ao Rio e descubro que João Antônio deixara a Manchete. Não suportara as pressões, as alegações de que ganhava muito e produzia pouco – e resolveu mandar tudo para o espaço. Depois, surtou. Esteve internado numa clínica especializada e quando saiu escreveu um belo texto para a Revista Homem, cujo título foi, apropriadamente, “Casa de Loucos”. Um dia eu também cansei – havia casado, não queria e não podia continuar a vida de repórter itinerante, deixei a Manchete e fui buscar novos caminhos.

Trabalhava numa empresa de comunicação, em Copacabana – mistura de agência de propaganda, produtora de conteúdo e assessoria de imprensa – quando, num fim de tarde de uma sexta-feira, (sempre às sextas) reencontro João Antônio. No balcão de um boteco, tomando chope, intercalado com goles de cachaça. Parecia revigorado. Abraçou-me, disse que esperasse um pouco, pois quem estava ali, nos fundos do boteco, por trás de uma falsa porta, tocando violão e tomando cerveja, era o grande Nelson Cavaquinho. Íntimo do dono do boteco, levou-me para os fundos onde nossa conversa continuou.

Falou que detestava Copacabana, que estava morando naquele “pedaço decadente do Rio” porque pretendia escrever um livro sobre o bairro, especialmente sobre “a fauna” que ali habitava. E cumpriu a promessa. Escreveu o livro “Ô, Copacabana”, o último de sua produção literária.

Um dia João sumiu, estava novamente bebendo muito, havia separado da mulher. O corpo foi encontrado quatro ou cinco dias depois de sua morte, num apartamento pequeno e modesto, na Copacabana decadente que foi o seu último refúgio, como boêmio e como escritor.

Grande João. Solidário, talentoso, culto, amigo dos amigos até o último suspiro – um paulista que nunca perdeu o sotaque e nunca conseguiu esquecer o chão natal, que viveu e morreu em Copacabana pensando nos bairros periféricos de São Paulo, que jamais se identificou com o Rio de Janeiro, onde, para sua tristeza, desapareceram também os derradeiros e decadentes salões de sinuca.