“Rosselini amou a Pensão de Dona Bombom”, de Cícero Belmar*
Introdução
Nas três e meia primeiras linhas do livro, Belmar nos avisa a que veio e descortina o universo de fantasia em que estaremos entrando, caso continuemos a leitura. Bom. Já não é bem Belmar. Também ainda não se trata daquele que vai contar a história de Dona Bombom, com suas meninas e seus exóticos frequentadores.
A instância que nos aparece aqui – e que de chofre nos conduz para uma região onde se está desenrolando uma outra história ou, como quer Autran Dourado, “uma história subliminar e simbólica que subsiste debaixo das minhas histórias” – é a instância exercida pelo que a teoria chama de “autor implícito”. Para além da máscara a que todo criador recorre para contar a história – o narrador -, no espaço entre este e o autor, como assinala Maria Lucia Dal Farra, localiza-se um ser que atravessa toda a narrativa e que se trai, no interior dela, na eleição deste ou daquele signo, na preferência por determinado narrador, na opção favorável por esta ou aquela personagem, na distribuição das matérias e dos capítulos, na própria pontuação escolhida.
Jornalista no batente de várias mídias – a impressa principalmente -, premiado diversas vezes pelo que produziu nelas, seria natural que Belmar recorresse à técnica em que se consagrou, para plasmar as feições desse ser, considerado hoje tão indispensável à boa execução da construção literária, quanto o autor e o narrador. É através dessa técnica que Belmar se apresenta, ou apresenta o seu “eu implícito”, deslocando-nos do espaço-tempo reais, onde começamos a leitura, ao espaço tempo ficcionais, onde se movem as perguntas (o que é verdade, o que é mentira?) e nos situamos no território onde tudo é simulacro, o tempo mais que tudo, o tempo ficcional mais que todos os tempos.
No sutiã com que apresenta o primeiro bloco do romance nascente – técnica que se irá repetir a cada bloco ou capítulo – uma outra história estará sendo contada, subjacente à história principal, descortinando-lhes os horizontes, antecipando-a em pormenores essenciais e mantendo-a nos limites possíveis da verossimilhança, ideal maior, desde Aristóteles, de todos aqueles que se arriscam em qualquer seara artística.
Quando a palavra é passada à onisciência de um narrador, fixado em 3ª pessoa, já o cenário estará criado para que se respire a atmosfera do mundo de Dona Bombom, ainda apenas Dona Arcângela, dona de um puteiro, porta de entrada para a maravilhosa viagem de volta ao Recife dos anos 50, seus cabarés e suas putas, seus boêmios e seus intelectuais, circunscrevendo a nostalgia de um tempo que decididamente não volta mais.
AÇÃO!
Prefaciando “Umbilina e sua grande rival” – o primeiro romance premiado de Belmar -, Raimundo Carrero destaca duas características que seriam os vetores da força narrativa contida no romance prefaciado: agilidade e simplicidade. No mesmo texto, Carrero assinala que Belmar conhece os “segredos da montagem dos personagens e movimentação nas cenas, algo não muito comum entre os escritores”. Se ali o crítico configura tais qualidades ainda em estágio embrionário, em “Rosselini amou a pensão de Dona Bombom” elas vão transparecer de forma avassaladora no ritmo frenético que se imprime particularmente à narração dos seus três primeiros capítulos. A partir deles, já estaremos situados: nos contornos da cidade que irá servir de cenário ao transcurso da narrativa e nas características essenciais das personagens que nela se irão envolver ou terão papel significativo na sua realização (D. Edilza, a tapioqueira, que anuncia a vinda do cineasta italiano ao Recife ou D. Salete, a cartomante, que confirma a informação da tapioqueira, introduzindo no espírito da nossa protagonista a curiosidade necessária para o desenrolar das várias ações posteriormente narradas, ou ainda Julieta, a cozinheira, cuja procura é a razão das ações nesses capítulos iniciais e se transforma em suporte fundamental das atividades exercidas por D. Bombom).
Exibir tais qualidades – agilidade, simplicidade, montagem de cenários e personagens – na composição narrativa é empresa só aparentemente fácil. Na verdade, como diz o mesmo Carrero, ela exige “perícia e paciência” e remete à assertiva lapidar de Júlio Cortázar: “O romance que nos interessa não é o que vai introduzindo as personagens na situação e sim o que introduz a situação nas personagens”. No nosso entender, é isso que ocorre com as personagens desse “Rosselini amou a pensão de D. Bombom”. Elas não foram pré-concebidas. Elas se forjam na ação e crescem, diminuem ou desaparecem, conforme se revelem mais ou menos capazes de se locomover nas situações que sobre elas incidam.
MANUSEIO DAS TÉCNICAS E DOS PLANOS LITERÁRIOS
Configurado o cenário onde as ações se desenrolam, entrelaçadas com ele, na forma dinâmica já enunciada, as personagens que as empreenderão, acrescidas das que forem surgindo em decorrência do entrecho dramático já esboçado, faltaria o quê, para que a narrativa viesse a ter o êxito que obteve? Para responder positivamente a essa demanda, Belmar transita do exímio manuseio da técnica jornalística, para o mesmo patamar no manejo das mais modernas técnicas literárias. Particularmente a partir do 4º capítulo, o romance passa a ser narrado em várias vozes, que se revezam às vezes de forma expressa (assinalada por aspas que antecedem e fecham a fala), outras vezes de forma tão sutil, que o leitor mal nota as mudanças de perspectiva e tem a impressão de que o narrador é um só. É na habilidade exuberante com que comanda esse processo de muda entre os enunciadores do discurso narrativo, que Belmar consegue manter fixo o interesse do leitor, fazendo-o acompanhar as diversas peripécias através da quais se entrecruzam personagens reais (citados pelo próprio nome), com personagens imaginários, articulando-os num sistema harmônico que só a boa literatura consegue produzir.
A meticulosidade e competência na construção de cada um desses planos narrativos, o absoluto domínio de linguagem necessário à sua revelação, conduzem-nos, como que encantados, ao antológico capítulo final do romance, verdadeiro Baile Fiscal (se nos permitem o paralelo histórico) das putas e dos frequentadores de puteiros recifenses. Além da exuberância narrativa ai verificada, encerrando o romance com a exibição apoteótica dos nossos blocos carnavalescos, expressão mais autêntica das nossas raízes culturais, Belmar pontua, como última sentença do último dos sutiãs, através dos quais insinuou outra história nas entrelinhas da história principal:
“O tempo poético é real e subjetivo”.
CONCLUSÃO
Terminada a leitura, não há como evitar a formulação da pergunta: será tudo verdade, ou de uma ponta de verdade se construiu um reino de mentiras? Vargas Llosa – escritor peruano e Nobel de Literatura 2011 – talvez nos ajude a responder:
“nos acréscimos sutis ou grosseiros à vida, nos quais o romancista materializa suas obsessões secretas, reside a originalidade de uma ficção. Quanto mais expressar uma necessidade geral, mais profunda a ficção será, e também quanto mais numerosos forem, ao longo do espaço e do tempo, os leitores que identifiquem, nesses contrabandos filtrados da vida, os demônios que os inquietam”.
Nesse sentido, podemos dizer que Belmar obteve pleno êxito: deixou inquietos todos os nossos demônios. Podemos dizer mais ainda: o romance em foco é a conjugação quase perfeita da técnica jornalística – em seu grau máximo de apuração – com a técnica literária – em seu grau máximo de depuração. Manuseando com primor essas duas técnicas, Belmar legou à posteridade “uma esforçada operação intelectual, o trabalho de uma linguagem e a invenção de uma ordem narrativa, de uma organização do tempo, de determinados movimentos, de determinada informação e de determinados silêncios”, tudo enfim de que depende, na expressão do mesmo Vargas Llosa, “um romance bem-sucedido”. Como só pode ser classificado esse fantástico “Rosselini amou a pensão de Dona Bombom”.
*Trabalho apresentado em 2011 na Pós-Graduação em Literatura, da UNICAP, em disciplina ministrada pelos Professores Janilto Andrade e Renata Pimentel.
Referências Bibliográficas:
BELMAR, Cícero: Rosselini amou a pensão de Dona Bombom – Fundação de Cultura da Cidade do Recife, Recife: 2007
BELMAR, Cícero: Umbilina e sua grande rival – Fundação de Cultura do Recife, Recife, 2002.
CARRERO, Raimundo: in Umbilina e sua grande rival – Fundação de Cultura do Recife, Recife, 2002.
CORTÁZAR, Júlio: O Jogo da Amarelinha, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1994.
DOURADO, Autran: Uma poética de romance – Rocco, Rio de Janeiro, 2000
LLOSA, Vargas: A Verdade das mentiras – ARX, São Paulo, 2004
Oi Chico, vou nas minhas estantes buscar o livro que você comenta. Andei fazendo arrumações, desfazendo-me de coisas preciosas como a coleção completa da Revista Cebrap. Mas o livro de Belmar, sei, ficou lá, em algum lugar. Só me falta disposição de procurar agora. Queria reler algumas passagens para uma prosa com você aqui por esse canal da revista. Li o livro à época do curso de Janilto, que levou de quebra o autor para uma conversa com os alunos. O mesmo curso no qual você foi aluno um ano antes e me indicou. O livro é delicioso. De uma vivacidade narrativa impressionante. Claro que o autor teve no Recife dos anos 50 o cenário perfeito como seu aliado na construção das personagens e cenários. Cícero Belmar não foi o primeiro e não será o último a aliar com competência e graça a técnica jornalistica com a criação (mais do que técnica) literária. Parabéns por sua bela crítica.