Mais do que uma crise meramente econômica, que se autolimita pelo ciclo dos negócios, todo o desenrolar dos fatos demonstra que o Brasil está atravessando algo bem mais profundo, que tem a ver com valores, com confiança e com perspectiva de futuro, temas que moldam as bases do modelo de reprodução da vida social e material contemporânea.
É provável que na base desta tensão esteja a necessidade de consumo em uma sociedade absurdamente marcada pela desigualdade, com poder de compra tão assimétrico. A expressão maior dessa cultura tem-se revelado na “Operação Lava Jato” que mais do que desnudou a “microfísica da corrupção” no país, ao escancarar as mais diversas e inventivas formas já entranhadas em praticamente todas as instituições. O que alimenta essa cultura de corrupção não são valores assentados na solidariedade, na generosidade e na preocupação em construir uma sociedade mais próspera. O que está na base dessa conduta é o comportamento egocêntrico, a ganância, a ânsia de bem-estar individual a qualquer custo, mesmo que isso signifique passar por cima da integridade ambiental, do respeito aos direitos humanos e da ruína do entorno social em que o individuo se encontra, o que gera a cultura dos carros blindados.
Robert Putman, ao analisar nos anos 1980 os efeitos tão díspares que uma mesma política nacional exerceu no Norte (positivamente) e Sul (negativamente) da Itália, verificou que no Sul daquele país, que era bem mais atrasado econômica e socialmente, predominavam relações baseadas no favorecimento de familiares ou protegidos, o que denominou de “familismo amoral”, que é a antítese de uma perspectiva mais horizontal de sociedade, em que o acesso aos cargos públicos ocorre com base na meritocracia, na competência e na eficiência. Em outras palavras, o que predominava naquela região era a cultura da “farinha pouca, meu pirão primeiro”, daí a política de desenvolvimento não ter atingido bom resultado. Uma sociedade assim dificilmente gera vínculos de confiança, tão essenciais para assegurar relações estáveis e duradouras, que é condição indispensável para o fortalecimento social e econômico. Qualquer semelhança com o que se passa com o Brasil não é mera coincidência.
Em uma sociedade democrática, mas profundamente desigual como a brasileira, e, além disso, onde essa característica é ainda mais extremada em suas expressões regionais, como uma espécie de colonialismo doméstico, não é uma tarefa fácil construir consenso em torno de uma perspectiva de futuro comum que beneficie a todos indistintamente. Será preciso fazer escolhas difíceis, alguém terá de reduzir seu espaço para que o outro possa emergir. Há que haver concessões, que definir critérios de prioridades, que construir entendimentos mínimos para determinar qual rumo seguir. Nesse rumo não há como todos serem contemplados da mesma forma, senão as desigualdades se perpetuarão ad eternum. Wilkinson e Pickett, no seminal livro “The Spirit Level”, deixam bem claro que, pior do que a pobreza, é a desigualdade, pois ela está na base da grande maioria das mazelas sociais, pelo sentimento de humilhação, de rancor e de ausência da justiça que provoca, gerando ódios, ressentimentos e grande descontentamento, que se traduzem em criminalidade, depressão, delinquência e outros tantos males sociais.
Os desafios, portanto, não são simples, nem tranquilos, muito menos fáceis de serem administrados. Exigem uma completa reconfiguração que restaure valores de generosidade e de confiança no amanhã; que possa imprimir uma nova cultura ao país que queremos edificar, para que bons frutos possam se colhidos no futuro. Não é, de forma alguma, uma tarefa individual, nem de um setor, nem de uma classe. É uma tarefa da sociedade, consciente de suas contradições, suas assimetrias, mas comprometida em mudar, em fazer diferente e melhor. Para conduzir esse processo social precisamos de liderança, de comprometimento e de engajamento.
Cada vez mais me interesso pelos fenômenos da natureza que trouxeram grande dano à Terra. Dia desses lia sobre as consequências terríveis da explosão do Krakatoa, em Java, que terminou alterando a temperatura do planeta pelos anos subsequentes. Na mesma Indonésia, tivemos no começo deste século um terremoto tão forte que deslocou minimamente o eixo em torno do qual todos giramos. O que mais me interessa nessa crônica de eventos brutais? Discernir os meios pelos quais a vida prevalece, se regenera e volta a acontecer.
Assim, se a geografia física ainda pode trazer esse alento aos mais otimistas, o mesmo não se aplica à forma como tenho visto os caminhos trilhados pelo Brasil desde os primórdios de minha vida adulta. É claro que temos muitos dividendos a apresentar, decorrentes até dos progressos da humanidade em geral e que são inegáveis. Mas há alguma coisa de intrínseco em nosso subdesenvolvimento que, creio eu, seu artigo desnuda com elegância.
E aqui falo dessas distorções de valores que levam pessoas como o ex-Governador do Rio a se enrodilhar numa espiral de gatunagens dignas de um ensandecido. Se isso seria de se esperar de gente como Bokassa, Mugabe, Marcos, Suharto e de chefes de gangue de estados delinquentes, é inexplicável a eclosão de semelhante patologia no centro do Rio de Janeiro, sob as barbas de tribunais de toda ordem. Mais do que isso, como pode um sujeito filho de um pai honrado se imantar de valores tão rastaqueras como foi o caso? Sim, o consumismo é de fato o pior dos fundamentalismos dos tempos que vivemos.
Nesse contexto, muitas vezes me parece mais verossímil que nos recuperemos de imensas catástrofes naturais do que que consigamos rever valores e colocar a sociedade como um todo em outro caminho. É como se o recado genético do colonialismo fosse muito arraigado. FHC dizia dia desses que infelizmente não vê outro caminho de remissão que não seja o da cadeia. É como se este fosse o último recurso de alerta para que os homens de boa vontade possam formular seus desígnios de fazer um Brasil melhor. Mas, convenhamos, a montanha é alta.