Joan Robinson, economista da Universidade de Cambridge

Joan Robinson, economista da Universidade de Cambridge

Não creio que haja consenso sobre o que é um economista. E assim tampouco haverá consenso sobre o que é “ser economista”. Ainda mais depois que os suecos deram o Nobel de Economia de 2002 a um psicólogo social. Há enormes divergências entre os teóricos da ciência econômica, entre as correntes de pensamento. Na história do pensamento econômico encontraremos quem considere a economia uma subseção da matemática que só ganha relevância quando testada como explicação do mundo real.

            É imensa a variedade das atividades em que encontramos “economistas”, de fato ou de jure. No nosso dia a dia parece que os de maior prestígio são os que lidam com o funcionamento da economia em seu conjunto, com as interrelações entre as chamadas variáveis macroeconômicas, com expansão ou declínio da economia real, no país ou no mundo. São os que podem explicar o que está por trás de manchetes como “O Dólar Cai”, “Recessão é mundial”, “Inflação sob controle”.

             Mas não são economistas apenas as estrelas da nossa profissão. Sei que há jovens bacharéis em economia que trabalham em empresas e acham que não são economistas porque ainda não são assessores de política econômica no Senado ou na Fazenda, nem chegaram a diretor do BC. Há, no entanto, uma imensidão de possiblidades e especialistas setoriais, desde os peritos no mercado da energia, transporte, trabalho, ou outros setores da produção. Eu nem saberia enumerar as eventuais ocupações. Até operadores na Bolsa, que os analistas de banco não entendem como economistas, precisam saber de economia. E à medida que o mundo mudou – e muda sempre – apareceram novos setores a exigir economistas, para mostrar o impacto das alterações do meio ambiente (e não só mudança climática) sobre a economia, em diferentes lugares e setores. Ou será apenas marketing a sigla ESG?

            Estudiosos do comércio internacional são antigos, mas modernamente apareceu o especialista em relações internacionais fora da antiga diplomacia. Tais relações se multiplicaram com a globalização em nível infranacional e implicam o estudo dos aspectos econômicos de tais relações e/ou conflitos, até nas empresas individuais. E na base de tudo há as carreiras de ensino e pesquisa acadêmica, com grande variedade de tendências, pois que, para além das noções básicas acumuladas, a teoria econômica está continuamente em construção.

            Considerado o conjunto das possibilidades de trabalho dos economistas – qualquer que seja sua posição no espectro político – ouso dizer que os economistas em geral deveriam entender como um fracasso da profissão se não conseguirem ajudar na redução da pobreza e da desigualdade. Quando trabalhei na Alemanha, registrei em pesquisa para o Institut fuer Iberoamerika-Kunde a correlação entre crescimento econômico e melhoria dos indicadores sociais, em geral progresso social vinha com crescimento da economia (Social Indicators and their role in development policy in Latin America, Hamburgo, 1978). Depois de décadas de baixo crescimento no Brasil, não será tempo de inverter a pergunta? Será que os indicadores sociais deploráveis em saúde, educação e desigualdade, até os índices de criminalidade, não são fator da limitação do crescimento econômico? Será que a brutal desigualdade social não está distorcendo e congelando a má alocação de recursos? Desde o seu fundador a economia é ciência social. Pode até ser que seja a mais exata das ciências sociais, e nisso a econometria ajuda, mas é como ciência social que importa. São os economistas – se souberem formular e aprovar em processo democrático políticas para aumento da produção e consumo de modo minimamente igualitário e regular – os profissionais tecnicamente mais preparados para reduzir pobreza. Ao menos em tese. Claro que não o podem conseguir sozinhos.

            Formalmente é economista quem tem o diploma de bacharel em Economia de instituição autorizada pelo Governo a emitir tal título. A regulamentação da profissão vem da Lei 1411, de 1951, segundo Nivaldo José de Castro, em “O Economista: A História da Profissão no Brasil”, que acompanha caminhos da profissão desde a chegada de Dom João VI e as “Aulas de Comércio da Corte”. Será que naquelas Aulas se estudava Adam Smith, que então já tinha influência na Grã-Bretanha e Estados Unidos, sobretudo por seu livro de 1776, “Natureza e Causa da Riqueza das Nações”? No Brasil, antes da industrialização, o ensino da economia se amplia junto com o desenvolvimento do comércio. Castro só tratou os aspectos formais e etapas da regulamentação do ensino, para concluir que a dinâmica do mercado de trabalho, sua diversidade, além de ambiguidade de identificação da categoria, tornou praticamente inócua a regulamentação.

            Em geral nenhum diploma específico por si só garante que a pessoa exercerá de fato a “competência” que tal diploma define. Aqui parece existir entre os estudantes e o público um culto infundado do diploma (e um culto ainda mais desproporcional das festas de formatura). A educação formal é imprescindível, mas vale o chavão do “aprendizado ao longo da vida”. Mais ainda para o economista, pois a economia tem como seu laboratório e teste empírico de suas ideias cada país e o mundo.

            Recebi meu título de Bacharel em Filosofia, em março de 1961, no gabinete do Reitor Eremildo Vianna, sozinha, já não lembro se foi canudo. Em retrospecto, mas usei tradução juramentada dos meus diplomas. Algo valeu, mas não dentro do que abrangia a proposta daquele diploma. Stricto sensu, naquele ano, dali não saiu filósofo nenhum. Dos meus colegas da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil no fim dos 1950s, nossa “fenefi” famosa (ou notória, se quiserem), boa parte virou “cientista político”, uma das colegas teve carreira diplomática brilhante, outro foi para a Universidade como professor de história. Só eu “virei economista”, antes mesmo de chegar à Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, e obter o diploma de economista em 1968. Lembro do belo prédio antigo na Praça 15 de Novembro, que frequentei de 1964 a 1968. Do outro lado saíam as barcas para Niterói.

            Jamais esqueci travessias nessas barcas, mas – e tenho vergonha de confessar – quase não lembro dos meus professores naquela Faculdade de Economia, exceto o que havia sido meu colega em 1963 no “Curso de Treinamento em Problemas do Desenvolvimento Econômico”, do Centro BNDE-CEPAL, e hoje é grande perito em transportes, Josef Barat. Não esqueci o Diretor da Faculdade, Cândido Antonio Mendes de Almeida, que havia sido da fase inicial do ISEB (onde eu havia trabalhado na fase final, de 1962 até março de 1964). O Professor Cândido assina meu diploma e o certificado de que ali na F.C.P.E.R.J. ministrei a cadeira de Desenvolvimento Econômico no primeiro semestre de 1969.

            Já com o devido diploma, devo ter repassado aos alunos o que tinha aprendido em 1963 no curso de TDE (técnico em desenvolvimento econômico) do Centro BNDE-CEPAL, sobretudo com Dom Aníbal Pinto Santa Cruz e Celso Furtado, ainda que possivelmente já estivesse mais cética. A cooperação BNDE-CEPAL já não existia, fechado o Centro e seus cursos depois do golpe civil-militar de 1964. O presidente do BNDE já não era aquele que, junto com Dom Aníbal, havia assinado meu certificado de TDE, obtido “com distinção”, ainda que tivesse sido a única da turma que não era bacharel em economia. Aliás, fui aceita no curso, em julho, porque tinha publicado em março, pela Editora Civilização Brasileira, um livrinho que estava sendo vendido nas bancas de jornal, Como planejar nosso desenvolvimento? Mas isso é história. (revistasera.info/2023/03/60-anos-este-mes/). Em retrospecto, foi sempre o caminho possível em cada momento na busca do meu ganha-pão. Exceto quando assumi o risco de pedir demissão da EIAP/Fundação Getúlio Vargas (onde trabalhei de 1967 a 1969) para ir para Brasília. Bem que o Dr. Athyr Guimarães, o diretor, perguntou premonitório:”tem certeza que é isso que você quer? Não arrisca cair sentada entre duas cadeiras?”

            A rigor, só quando cheguei em Brasília no fim de 1969, para trabalhar como professora na Universidade de Brasília, é que fui aprender teoria no “estado da arte” de então. O Departamento de Economia tinha um grupo de economistas jovens, recém-chegados de doutorados ou mestrados nos Estados Unidos. O ambiente de diálogo entre os professores e rodízio dos docentes nas disciplinas do currículo foi incentivo ao estudo e à pesquisa. Ainda que não se concretizasse a “Cambridge do Planalto” que Edmar Bacha então queria construir na UnB. (Contei essa história em revistasera.info/2019/08/sem-nostalgia-fragmentos-de-memoria-de-uma-militante-helga-hoffmann/)

            Mais uma dose grande de aprendizado, é claro, foram dois anos letivos (de 1973 a 1975) em Cambridge, Inglaterra. Ao tempo em que ainda lá estavam Robinson, Kaldor, Sraffa. Mesmo assim, onde mais aprendi economia foi trabalhando 17 anos na ONU, sobretudo quando fui chefe da Seção para Economias em Desenvolvimento. Apesar do breve interregno cambridgeano, a rigor, nunca passei do campo da economia aplicada.
É sabido que vários de nossos economistas, mesmo fora da área acadêmica, têm pós-graduação no exterior ou dentro do país, como qualificação adicional, e não vieram da graduação em economia, e sim da engenharia e do direito, do Instituto Rio Branco, até de outros cursos. Rubens Ricupero veio da diplomacia. Pedro Malan, da engenharia. Talvez o exemplo mais notório seja de um dos grandes da economia no Brasil, Mario Henrique Simonsen, que nem está entre os que estudaram no exterior: Bacharel em Engenharia pela Universidade do Brasil, chegou à economia a partir da matemática, e já era economista admirado e professor de economia na FGV antes de resolver “regularizar” sua situação numa faculdade privada do centro do Rio.

            Diz o ditado que “de médico e de louco, todo mundo tem um pouco”. Pois uma rima dessas precisa ser inventada para o economista, pois hoje em dia todo mundo faz perguntas e dá muito mais palpite sobre a economia, sem se preocupar em embasar afirmações. Temos alguns economistas muito didáticos, que têm se esforçado por explicar ao grande público as relações básicas entre variáveis econômicas, esmiuçar, em português claro, a necessidade de certas políticas ou os fundamentos de cada decisão de política econômica que causa polêmica. Vários são colunistas de economia regulares. Mas ainda não são suficientes.

            A opinião pública é essencial no caminho das ideias até sua transformação em políticas públicas que funcionem. Na tarefa de esclarecimento talvez sejam ainda mais importantes alguns jornalistas que sabem mais de economia que muito economista, como Rolf Kuntz, Miriam Leitão, Celso Ming, Raquel Landim e outros. Vários dos colunistas de economia não são formados em economia. O mais didático deles, Carlos Alberto Sardenberg, consegue tornar mais didáticos até os economistas que participam do programa dele.

            Falta muito para melhorar a “palpitologia” e capacidade de influenciar do grande público. Até para que uns e outros não achem que se pode baixar juros “no grito”. Talvez os economistas em geral carreguem uma dose de culpa, quando não se esforçam por traduzir suas ideias e conhecimentos também, em paralelo, para uma linguagem que um público leigo possa entender. E, no entanto, esta seria uma nobre tarefa, junto à pesquisa científica. É certo que importa na economia a matemática, a estatística, a capacidade de testar relações entre variáveis em modelos passíveis de cálculos em computador. Depois disso, vale repetir que o sucesso das políticas econômicas, e antes disso sua aprovação, depende de educar o público. E aqui me divirto lembrando um dos fundadores, o cambridgeano Alfred Marshall, professor de Keynes:

            “Mas sei que nos últimos anos de meu trabalho sobre o tema aumentou minha sensação de que um bom teorema matemático com hipóteses econômicas dificilmente pode ser boa economia [economics]: e cada vez mais apliquei as regras – (1) Use a matemática como linguagem simplificada, e não como instrumento de investigação. (2) Mantenha-a até terminar o trabalho. (3) Traduza para o inglês. (4) Ilustre com exemplos que são importantes na vida real. (5) Queime a matemática. (6) Se você não consegue 4, queime 3. Isto último fiz com frequência.” (Tradução minha). “Letter from Marshall to Bowley”. Memorials of Alfred Marshall (Ed.A.C.Pigou) (Macmillan, London, 1925, p.427)

*Um dos depoimentos de 37 economistas que responderam à pergunta de Roberto Luis Troster, reunidos em Ser Economista (Editora Processo 2024). O ecletismo é tamanho que Troster só encontrou em comum entre eles que todos gostam da profissão. Dentre os 37 há de tudo e, como eu disse ao próprio Mailson da Nóbrega no lançamento, ele é o mais famoso e eu a mais velha.