Ivanildo Sampaio

Detalhe de máquina de datilografia.

Pode parecer ficção, mas já houve um tempo em que grande parte das famílias brasileiras acreditava na existência de discos voadores. Ou de OVNIs – Objetos Voadores Não Identificados, que surgiam e desapareciam no céu, nos mais diversos formatos: quando não eram semelhantes a um disco, vazando luzes coloridas por pequenas janelas, tinham a forma alongada de um charuto, movimentavam-se na velocidade da luz, desapareciam no infinito tão misteriosamente quanto haviam surgido. Colheram-se muitos depoimentos de simplórios personagens jurando, no linguajar dos “ufólogos”,  terem  sido “abduzidos”,  isto é,  terem sido capturados por um desses OVNIs, viajado pela imensidão sem fim do espaço, trazidos de volta e abandonados longe do lar e do local da captura.

A imprensa, em todas as partes do mundo, gastou muitas toneladas de papel para relatar casos de aparição de OVNIs, de casais “abduzidos”, de pequenos lugarejos onde toda a população testemunhou esse fenômeno no céu, e buscar uma explicação lógica para a misteriosa ocorrência, que de repente foi relegada ao esquecimento, tornando-se tão desmoralizada quanto o E.T. de Varginha. A revista Manchete publicou algumas reportagens sobre OVNIs, a maioria delas comprada às agências internacionais de notícias – especialmente Associated Press e United Press International , relatando principalmente casos que teriam ocorrido em zonas rurais de pequenas cidades dos Estados Unidos. Eram textos bem escritos, com belas fotos ilustrativas, depoimentos coerentes dos entrevistados. Mas raramente abriu suas páginas para relatar casos de “discos voadores” nos céus do Brasil. Não porque carecesse de um “especialista” no assunto compondo o quadro  de repórteres, pois entre eles estava justamente o  mais famoso e mais conhecido nacionalmente de todos os que escreveram sobre o tema: João Maria Cardoso de Souza Martins, ou simplesmente João Martins, meu colega de sala na produção de edições especiais das revistas Bloch, e na feitura das “edições-piloto” da Revista Tendência, antes do seu lançamento  no mercado.

Os “discos voadores” levaram para o espaço o conceito e a credibilidade do jornalista que João Martins foi – e na Editora Bloch, depois de uma longa carreira na revista “O Cruzeiro”, ele jamais voltou a escrever sobre o tema ou a ser o repórter de campo como havia sido durante toda sua carreira, em coberturas nacionais e internacionais.

O caso foi assim: no ano de 1954, quando O Cruzeiro era a maior revista de circulação nacional, editada pelos Diários Associados e com tiragem superior a 500 mil exemplares semanais, revistas e jornais norte-americanos começaram a publicar notícias sobre misteriosos objetos voadores que apareciam e desapareciam nos céus, sem que para isso houvesse uma explicação convincente.  Não eram balões meteorológicos, ainda não existiam os satélites que depois se tornariam corriqueiros, não eram novas “armas secretas” que estavam sendo criadas sob o calor da “guerra fria”,  enfim – que mistério era aquele que ninguém explicava?

Na época em que as revistas semanais consagravam duplas que se tornaram famosas (David Nasser e Jean Mazon; Mário de Morais e Ubiratan de Lemos, Ney Bianchi e Jader Neves, etc.), João Martins e Ed Keffel eram nacionalmente conhecidos pelas matérias que assinavam juntos nas páginas de O Cruzeiro. Eis que num dia de  semana, pobre de assuntos para fechar revista, chegam à  redação, esbaforidos, João Martins e Ed Keffel, pedindo para revelar, com urgência , uma ponta de filme com apenas cinco poses, que eles haviam  capturado numa praia semideserta do Rio de Janeiro. Depois de revelado, o filme mostrava, nos céus da Barra da Tijuca, um estranho objeto em forma de disco, que depois de fotografado, desapareceu.

João Martins,  baiano de nascimento, formado em engenharia, respeitado pela maneira criteriosa como produzia suas reportagens; e Ed Keffel, nascido no Egito,  veterano em reportagens de campo, começaram a ser questionados e sabatinados pela alta direção dos Diários Associados. O filme foi longamente periciado, mostrado a especialistas, virado e revirado –  sem  que se notasse, com os recursos da época,  qualquer sinal de fraude. E decidiu-se pela publicação da reportagem. Que marcaria, para sempre, o destino profissional da dupla de jornalistas, levando-a do céu ao inferno: “cascateiros”, “fraudadores”, “desonestos” foram alguns dos menores adjetivos com que João e Keffel foram posteriormente contemplados, embora 40 anos depois ainda se discutisse, em congressos de “ufologistas”, a autenticidade das cinco fotos capturadas numa praia então deserta do Rio de Janeiro.

Quando a revista O Cruzeiro começou a dar sinal de decadência, alguns dos seus profissionais procuraram outros rumos. João Martins foi um deles. Tinha no seu currículo dezenas de coberturas relevantes, entre elas a dos Jogos Olímpicos de Helsinki, na Finlândia, em 1954, quando conheceu uma bela loura que trabalhava como voluntária nos serviços de apoio, e que ajudou o brasileiro Ademar Ferreira dos Santos, ganhador da medalha de ouro no salto triplo, a prender nas costas da camisa o número de identificação que havia soltado. Chamava-se Hilkka, tinha um sobrenome impronunciável, terminou casando com aquele repórter que veio do outro lado do mundo.

Pois bem, com a crise n’ O Cruzeiro, João Martins, já veterano,  foi convidado por Adolfo  Bloch para integrar a equipe da  Manchete, não mais como repórter, e sim como redator  de uma  nova divisão da empresa, que produzia exclusivamente edições especiais. Era uma experiência nova na empresa e eu também  acabei lá, como repórter itinerante.

Na verdade, João Martins não gostava de falar da famosa reportagem sobre o disco voador da Barra da Tijuca, nem de muitas outras que escreveu sobre o mesmo tema.  Ele morava, com a mulher e duas filhas, na Rua Ayres Saldanha, paralela à Avenida Atlântica e quase em frente ao “Flag”, um bar famoso onde diariamente tocava piano Luís Carlos Vinhas, expoente da Bossa Nova. Certa vez, fui de carona com ele até o “Flag”. Quando desci para o primeiro copo de chope, João resolveu me acompanhar. Sentamos numa mesa de  canto e como era inevitável,  começamos a falar sobre nosso trabalho. Sem querer e sem forçar, surgiu na nossa conversa a história do disco voador, publicada n’O Cruzeiro e de repercussão internacional. Eu havia lido a reportagem no Departamento de Pesquisa da Manchete, era um texto bobo, sem maiores informações, que se sustentava nas fotos publicadas, uma delas tomando uma página inteira.

Como já havia bebido alguns copos de chope, e me sentia mais descontraído, não perdoei:

– “Vem cá, João, você diz que foi com Ed Keffel para a Barra da Tijuca à procura de um restaurante onde servissem camarões frescos… A Barra da Tijuca, naquele tempo, era o fim do mundo, quase desabitada, sem estradas, sem avenidas, ao que consta também não tinha restaurantes. Por que vocês não procuraram camarões frescos nas dezenas de restaurantes que havia em Copacabana?

– João devolveu de bate-pronto: “É que não fomos lá para comer camarões… A gente havia recebido uma denúncia de que quem se escondia por lá era o doutor Joseph Mengele, o célebre criminoso nazista que fugira da Alemanha no fim na guerra… Eu e Keffel fomos até lá para ver se a informação procedia e se a gente encontrava aquele carniceiro tão procurado…

Grande João, foi um grande e criativo repórter enquanto viveu.