“Vista da abordagem liberal moderna, a cidadania atual é uma condição quebrada.” A frase é do conhecido antropólogo argentino Néstor García Canclini à certa altura do seu livro “Cidadãos substituídos por algoritmos”, cuja edição brasileira, da Edusp, conta com uma atualização de textos realizada pelo próprio autor. É dessa “condição quebrada” que Canclini reflete sobre o que chama de “descidadanização” e que está à vista de todos: a perda de direitos, a despolitização, a precarização do trabalho, a vulnerabilidade das novas gerações, a tendenciosa articulação dos algoritmos que nos monitoram a vida cotidiana e redefinem socialmente o trabalho, o consumo e a comunicação, sobretudo quando decorrem da ação dos chamados “Gafa” (Google, Apple, Facebook e Amazon). 

Escrito numa linguagem acessível ao leigo, o ensaio de Canclini vem se somar a outros tantos que nos estimulam a reagir a um mundo em que a globalização, segundo um dos especialistas citados, “só acontece no capital ou nos dados”! O que fazer diante do sentimento de impotência e de apatia, do saber-se insignificante ante a atual “desordem do mundo”? O que fazer para novamente robustecer uma democracia minada por uma crise de representatividade, pelo elitismo das cúpulas, por redes sociais que desestabilizam, que desconcertam e que se embebem de discursos de ódio e de rematadas mentiras? O que fazer se agora perdem vigência noções clássicas de cidadania e política?

O mal-estar vem assumindo várias faces numa “difusa reação antissistema”, a exemplo de movimentos que pedem a saída da União Europeia, da eleição de políticos xenófobos e racistas (Vox na Espanha, Democratas Suecos, a Liga na Itália, Alternativa para a Alemanha, etc.), de grupos “sem programa, sem líderes duráveis nem estratégias de governo”, como os Coletes Amarelos na França. Sobre esses movimentos, “Um traço compartilhado é sua expansão veloz, surpreendente, capaz de aliar, em dias ou semanas, ações de rua e midiáticas de multidões”. No caso do Brasil, Canclini lembra o Ele Não e os caminhoneiros que, em 2018 “paralisaram a circulação de alimentos, medicamentes e combustíveis ao longo de duas semanas” e pediam uma “intervenção militar”. Noutros lugares, explica o autor, “O apelo a forças extranacionais é a contraparte reveladora daquilo que os cidadãos deixam de esperar de seus governos”.

Atento às mudanças trazidas pela internet e as redes sociais, Canclini observa que a cidadania passou por uma remodelação: de cidadãos “midiáticos”, ou “midiatizados”, passamos a “cidadãos monitoriais”, pois “cada um é simultaneamente monitor e ‘voyeur’”. Outro ponto importante é que, na esteira das novas tecnologias, foi criada uma “governabilidade algorítmica”, que, por assim dizer, desbancou uma “governabilidade estatística”. É com aquela que de agora por diante temos de nos haver.

Em capítulo especialmente dedicado à questão dos algoritmos (provocadoramente intitulado “No que estão pensando os algoritmos?”), onde examina em detalhe os movimentos operacionais de corporações como o Google, Canclini ora diverge, ora concorda com as ideias de Yuval Harari, trazendo-o para uma saborosa discussão crítica em torno dos impactos sociopolíticos da monopolização de dados no presente e no futuro. Para o antropólogo argentino, “A nova ‘autoridade dos algoritmos de big data’ (Harari), que relativiza a liberdade individual, o livre-arbítrio, não elimina os condicionamentos sociais, nem as disputas econômicas ou políticas, nem as interações parcialmente gerenciáveis por meio do poder computacional”. Assim, ao responder ele mesmo à pergunta que intitula o seu capítulo, Canclini pondera que tal pergunta “[…] é insuficiente se não discutirmos ao mesmo tempo por que são tão poucos aqueles que os fazem pensar e colhem os resultados. Esse percurso conduz a ver que o fervor algorítmico não elimina as paixões da desigualdade”.

Todavia, há esperança. E é para ela que o livro de Canclini também aponta. À descidadanização também corresponde uma visível recidadanização. Para que esta ocorra, uma primeira atitude deve ser desconfiarmos da pretensa autonomia do sistema algorítimico, rejeitando-a, pois os atores hegemônicos o orientam tendenciosamente. Também, diz ele, é de se notar que as crescentes conquistas de organizações de consumidores mudaram de patamar ao deixarem para trás a era simplesmente midiática. Por outro lado, é preciso compreender que a economia da autoexploração com consenso está entrelaçada a “[…] uma submissão política consentida” [grifo nosso]. O antropólogo menciona igualmente a leitura, que é “[…] uma das formas de entrada ao espaço público” e  “[…] continua nutrindo opiniões, debates e votos”, indicando que os prognósticos de que livrarias e editoras seriam extintas fracassaram. Finalmente, Canclini vai buscar na psicanálise um importante auxiliar à potencialização da esperança. Ao interpretar os processos que interligam afetos, desejos e crenças, a psicanálise pode e deve se voltar para projetos coletivos de resistência, pois é certo que os algoritmos atuam “[…] como captadores de desejos e de crenças”… 

Bem, não somos um algoritmo (kkkk), mas recomendamos o ensaio do ilustre “hermano” argentino!