Paulo Gustavo

Da dir. para esq.: Lorca ao lado de Maria Antonieta Rivas, uma milionária mexicana, e um casal de conhecidos no campus da Columbia University (Fundação Federico García Lorca).                                     

 

Em sua monumental obra “Literatura Europeia e Idade Média Latina”, o crítico alemão Ernst Robert Curtius assinala que “A teoria literária da tardia Antiguidade determinou minuciosamente os preceitos do panegírico de cidades; havia que louvar primeiro a situação da cidade e logo enumerar todas as suas demais vantagens, sem descuidar  de seu cultivo da arte e da ciência”. Estes preceitos chegaram, igualmente, à Idade Média e, por sua vez, tornaram-se uma “tópica”, vale dizer, um lugar-comum emblemático, de uso literário.

Na Idade Moderna, já no século XIX, com a plena consolidação da Revolução Industrial, a cidade renova seu fascínio sobre poetas e escritores. Eis porque Baudelaire pôde escrever, em seu livro “As Flores do Mal”, os famosos “Quadros Parisienses”, nos quais encontramos versos como estes: “Fourmillante cité, cité pleine de rêves”; “Paris change! mais rien dans ma mélancolie / N’a bougé! palais, échafaudages, blocs,/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,/ Et me chèrs souvenirs sont plus lourds que de rocs”. Outro famoso poeta francês da mesma época, Rimbaud, conclui seu poema em prosa “Uma Estada no Inferno” com estas palavras emblemáticas: “Ao amanhecer, armados de ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades”.

No século XX, cidade e poesia continuam a se cruzar em inúmeras obras. Nos anos 1920, destaco a obra “Poeta em Nova Iorque”, na qual Garcia Lorca, sob a influência do surrealismo, recorrendo a metáforas e imagens alucinantes, condena o modo de vida americano. Jorge Luis Borges estreou louvando sua cidade com uma pequena obra-prima: “Fervor de Buenos Aires”. No Brasil, em 1922, Mário de Andrade publicou sua famosa “Pauliceia Desvairada”. E em 1923 Fernando Pessoa escreveria “Lisboa Revisitada” pela mão de seu heterônimo Álvaro de Campos. O canto às cidades tornou-se tão frequente que Carlos Drummond de Andrade, em seu antológico poema “Procura da Poesia”, recomenda aos poetas ou candidatos a poeta: “Não cantes a tua cidade, deixa-a em paz.”

Na própria tradição brasileira do século 20, há uma corrente de bons poetas a fazer das cidades substância de suas obras. Aqui citamos alguns. Manuel Bandeira, instigado por Gilberto Freyre, escreveu o célebre “Evocação do Recife”; e o próprio Freyre dedicou à cidade de Salvador o poema “Bahia de todos os santos (e de quase todos os pecados). Drummond cantou Itabira e o Rio e chegou, inclusive, a batizar um livro seu com o nome de um município mineiro — “Brejo das Almas”; Vinicius de Moraes inspirou-se em cidades tão diversas como o Rio de Janeiro, Londres e Oxford. João Cabral de Melo Neto dividiu entre o Recife e Sevilha a sua atenção poética; Ledo Ivo tem livros em que não falta uma temática urbana; Ferreira Gullar, idem; Mauro Mota  fez do Recife sua musa inspiradora; Carlos Pena Filho criou um pitoresco guia poético do Recife; Austro-Costa, romântico e satírico, também teve no Recife e na sua gente a sua fonte de inspiração. Joaquim Cardozo, tão ligado à engenharia e à arquitetura, escreveu poemas que se detêm em motivos urbanos; Jaci Bezerra, da Geração 65 de escritores pernambucanos, além de um longo e melódico poema dedicado ao Recife, escreveu o “Livro de Olinda”. José Mário Rodrigues, da mesma Geração, é autor de um belo poema — “A cidade” — em que aborda a morte física e simbólica das cidades.

O Recife provavelmente é uma das cidades brasileiras mais cantadas em verso, como bem atestam as antologias de Edilberto Coutinho — “Presença Poética do Recife” — e “O Recife pela Voz dos Poetas”, de Luiz do Nascimento.

Muitos poetas estão atentos àquilo que Bachelard chamou de “poética do espaço”, impulsionados a um só tempo pela imaginação e pelo inconsciente. Assim, é reconfortante pensar que a cidade é a nossa casa, o nosso espelho, o nosso útero, o nosso lar, a nossa família, a nossa âncora na dinâmica fluidez do tempo e do espaço. Naturalmente, a poesia da cidade ou sobre cidades também está vinculada ao simbolismo e ao imaginário da terra natal, da terra-mãe.

Uma capital do Ocidente é, por excelência, símbolo da cultura letrada. Segundo o crítico alemão Walter Benjamin, “Esta cidade se inscreveu tão indelevelmente na literatura porque nela mesma atua um espírito aparentado aos livros”. Segundo Benjamim, “de todas as cidades não há nenhuma que se ligue mais intimamente ao livro” e completa, com uma imagem que se tornou conhecida: “Paris é um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena”. Com efeito, sem conhecer sua literatura, não se terá conhecido bem Paris.

Ao concluir este tão breve quanto lacunoso passeio por tema sempre caro aos recifenses, quero contrastar essa monumentalidade de Paris com a cidadezinha anônima, mas igualmente cenográfica, de um belo soneto de Mario Quintana, soneto que parece resgatá-la de sua humildade e que nos deixa entre o devaneio do imaginário e o poderoso encanto das coisas simples.

Cidadezinha cheia de graça…

            Tão pequenina que até causa dó!

            Com seus burricos a pastar na praça…

            Sua igrejinha de uma torre só…

 

            Nuvens que venham, nuvens e asas,

            Não param nunca nem um segundo…

            E fica a torre sobre as velhas casas,

            Fica cismando como é vasto o mundo!…

 

            Eu que de longe venho perdido

            Sem pouso fixo (a triste sina!)

            Ah, quem me dera ter lá nascido!

 

            Lá toda a vida poder morar!

            Cidadezinha… Tão pequenina

            Que toda cabe num só olhar…