João Rego 

Ruas de Sevilha.

(Domingo,  22 de outubro de 2017)

 

A ESCOLA DE TRADUTORES DE TOLEDO

Talvez devido ao fato de que nossa existência seja tão efêmera, diante do longo período de tempo da história humana, é impossível para nossa consciência ter a noção real de que tudo que está à nossa volta, e nos constitui como sujeito, é resultado de um encadeamento de fatos que teve sua origem em tempos imemoriais.

A principal força motriz que constrói esses fatos, e que nos distingue dos animais, forjando nossa cultura, é o conhecimento. Religião e ciência vêm, desde que adorávamos os astros e nossa linguagem era composta de poucos grunhidos, em conflito estruturante, conduzindo nosso caminhar com razoável sentido evolutivo.

A coisa complica um pouco mais com as aceleradas transformações tecnológicas que nos projetam na sociedade da informação. Google, Wikipedia, Facebook, Microsoft, Apple, constroem, com velocidade impensável há algumas décadas atrás, plataformas para a produção, preservação e difusão de informação e conhecimento que nos perpassam, em nosso cotidiano, alterando nosso espírito e a forma como nos relacionamos com o outro, nosso semelhante. Este  cada vez mais próximo, à distância de um clique.

Nada disso teria sido possível se as barbáries da história tivessem predominado sobre a cultura, rompendo essa fantástica cadeia de fatos evolutivos (portadores de conhecimento) que chegam até nosso presente, e seguem adiante, com as futuras gerações.

Na Idade Média, a Escola de Tradutores de Toledo, fundada pelo arcebispo Don Raimundo (1125-1152), exerceu o valioso papel de preservar e transmitir, para as futuras gerações, parte relevante de todo o conhecimento científico e religioso daquele período. Obras como a geometria de Euclides, do século III, fundamento para as ciências exatas de toda a modernidade, e que só no século XIX sofreu alterações; os filósofos gregos, a medicina, botânica, astronomia, etc.

Tudo foi objeto de interesse desses intelectuais que, impulsionados pela paixão do conhecimento, de forma muitas vezes clandestina, preservaram parte valiosa do que havia de melhor da herança humana, e que constitui nossas sociedades atuais.

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Como bibliófilo, fiquei emocionado vendo os detalhes dos trabalhos e sacrifícios que esses tradutores realizaram. Não tinha como não homenageá-los nesses escritos de viagem. Sobre esse tipo de emoção, ouvi certa vez, de um “chef”japonês, falando sobre a veneração no momento de tratar um atum. Era uma atitude de profundo respeito à vida. Os primitivos, das várias partes da terra, têm também esse tipo de veneração pela caça abatida, pois graças ao seu sacrifício está garantida a sobrevivência do caçador.

Sobre o livro deveríamos ter sentimento semelhante, pois portador de palavras carregadas de sentidos, desejos e conhecimentos que alimentam nosso espírito, fazendo efeito transformador sobre nosso ser.

DOMINGO EM SEVILHA

Nosso alvo turístico era o bairro de Triana, uma charmosa comunidade que se constituiu como um apêndice de Sevilha, separada pelo rio Guadalquivir. Sempre no começo do dia, logo após o café e um bom banho, nossa disposição para andar é fantástica. E foi o que fizemos, fomos andando até Triana, seguindo fielmente o que o mapa ditava. No meio do caminho, encontramos os momentos finais de uma maratona. Uma festa arretada!

Atravessamos a multidão e seguimos. Domingo, é tudo fechado, ficam abertos apenas bares e restaurantes. Fechado estava também, para nossa frustração, o Mercado Público de Triana. As ruas alegremente cheias, entretanto, nos convidavam a andar, até que nos deparamos com uma igreja e entramos. Estavam rezando a missa com um belo coral, filmado por mim.

Após alguns minutos sentados na porta da igreja, andamos até a beira do rio, local charmoso e cheio de bons restaurantes, que ocupam a rua  com mesas.

Tomamos cerveja e beliscamos algumas azeitonas. Pesquisando, descobrimos uma exposição de artes na Plaza Mayor, em frente à Escola de Belas Artes.

O gesto arriscado é pensarmos que nossas pernas são incansáveis.  Vamos definindo locais, aí olhamos no mapa, “Ah, são apenas 2 quilômetros”, e de 2 em 2 quilômetros você anda uma distância enorme. Foi o que aconteceu, quando eram cinco horas da tarde estávamos cansados e, para complicar, os dois navegadores erraram, e tome afastamento de casa. Fabiana se amotinou e assumiu o mapa. Foi a salvação.

Não sei se vocês sabem, mas Sevilha, nesta época, é de um sol de rachar. Eu, que já vinha com fome – onde já se viu um corpanzil desse ser movido por duas azeitonas e um copo de água? – fui entrando no automático, que é um estado meio cataléptico, em que sua mente se concentra apenas no desejo de chegar em casa. Nada mais interessa, as belas ruas estreitas, vistas pela manhã, eram apenas cansativos obstáculos a serem vencidos.

Finalmente chegamos, e deu tempo de descansar. Havíamos decidido que hoje à noite iríamos nos despedir de Sevilha com chave de ouro. Pesquisei no TripAdvisor e achei o Casa Carmen. Como não aguentava mais ouvir aquela terrível frase “vamos andando, é pertinho “, seguindo uma sugestão de Elba, baixei o aplicativo Pide táxi. Uma maravilha!

O “ pide” me lembrou o cara que vendia coxinhas em Boa Viagem:

– Se não pediu, pida!

O carro nos pegou na Calle Enladrillada 37 e nós deixou na Santander 15. O motorista estava ouvindo o jogo de futebol, e acho que o time dele estava perdendo, pois dirigia sério que só “um porco mijando “. Depois de várias e várias ruas, todas estreitas, num zigue-zague de nos deixar tontos, nos deixou em nosso destino.

Éramos pura felicidade. Para completar, o atendimento perfeito, diferente do maître casca-grossa do El Rincocillo, que, vi depois, é rinoceronte em espanhol. A comida perfeita, acompanhada por vinho escolhido por Antônio Carlos.

Após a sobremesa, Fabiana ainda ensaiou um impensável ato de rebeldia , que vinha de encontro a minha preguiça, querendo voltar a pé. Após alguns minutos, o bom senso prevaleceu e em cinco minutos estávamos em casa.

Finalizamos com a arrumação das malas e o ritual do Vinho de Pijamas.

A DESPEDIDA

Hoje, segunda, fizemos o café da manhã e nos organizamos para partir. Deixaríamos Tonho e Fabiana no aeroporto com destino ao Brasil, e seguiríamos , eu e Elba, para a bela Ronda, cidade de Málaga.

Foram dias maravilhosos que usufruímos juntos. São companheiros de viagem de primeira grandeza. Como cunhada e concunhado, temos construído e nutrido um forte e valioso vínculo afetivo. Juntos criamos nossos filhos, agora estamos na fase de juntos criarmos nossos netos. Formamos uma família extremamente solidária, para os bons e os maus momentos. Enterramos, com tristeza, nossos mortos; com imensa alegria celebramos os que nascem – como é mesmo a vida.

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