Helga Hoffmann

Domingo passado, 1º de outubro, houve um referendo que deveria dizer “sim“ ou “não” à autodeterminação e separação da Catalunha e Barcelona do resto da Espanha. Esse referendo foi anunciado, em junho de 2017, pelo governo regional, mais precisamente por Carles Puigdemont, Presidente regional da Catalunha desde o início de 2016. O governo da Espanha em Madri advertiu que o referendo era inconstitucional e não se realizaria, permaneceu em silêncio, sem diálogo ou contraproposta, e em 1º de outubro tratou de impedir de fato a votação.

Desde domingo o que está em debate já não é exatamente o referendo dos nacionalistas e suas consequências sociais e econômicas para a Catalunha, ou para a Espanha e a União Europeia. O que se denuncia é a violência policial com que o governo espanhol tratou o referendo. Para os próprios separatistas o que importa é ampliar o apoio que era até agora praticamente inexistente fora da Catalunha e sequer na Catalunha é majoritário.

As redes sociais catalãs e a imprensa mundial estão tomadas por fotos chocantes para uma democracia ocidental, muito mais para um país importante da União Europeia: funcionários catalães presos por prepararem eleições, impedimento à impressão de cédulas, cerco policial a postos de votação, longas filas nos locais que conseguiram abrir à força, soldados carregando gente de todas as idades, sobretudo mulheres, e até homens com crianças, para evitar que entrassem em locais de votação, jovens se fazendo arrastar, grupos de pessoas passando a noite nos postos na tentativa de evitar seu fechamento, pessoas machucadas, o chão coberto de cédulas inutilizadas. A urna, símbolo universal da democracia, assim desonrada pelo governo em Madri, foi transformada em propaganda dos separatistas catalães.

Revolta a violência contra cidadãos desarmados procurando exercer seu direito democrático de liberdade de opinião, e é geral o protesto contra o bloqueio dos sites pró-independência. De tanta indignação na mídia, não mostraram que houve também agressões de grupos separatistas contra os policiais, alguns deles feridos e outros obrigados a sair dos hotéis em que se hospedaram, e violência contra os que se expressavam em favor das leis vigentes já durante a campanha. Ao que parece a Guarda Civil havia se precavido, pois ancorou um navio no porto em Barcelona para servir de hotel para os policiais.

A inépcia do Primeiro-Ministro espanhol Mariano Rajoy é que transformou em vitorioso Carles Puigdemont, o Presidente regional catalão. O Primeiro Ministro espanhol apostou que conseguiria impedir a votação e fracassou. Acabou legitimando a provocação dos líderes separatistas que já durante a campanha o compararam ao ditador Francisco Franco. Como notou um repórter de “Político”, ao comentar essa nova crise que a Espanha inaugura, “a União Europeia julgou que convocar o referendo sobre Brexit foi um erro. A Catalunha mostrou que esmagar um referendo poderia ser ainda pior” (www.polico.eu acessado em 03/10/2017). Mesmo assim, é só na exaltada retórica de populistas que a Espanha é ditadura e os catalães um povo oprimido. Mas certamente temos hoje uma Catalunha dividida e uma Espanha dividida. Apenas agora é que começam também manifestações de rua contra os separatistas.

Puigdemont alega que 2 milhões de catalães, 90% dos que teriam chegado às urnas, aprovaram o “sim”. Deverá anunciar oficialmente o resultado no Parlamento da Catalunha em 9 de outubro, e aí poderá fazer a declaração unilateral de independência que prometeu na campanha. O resultado é questionável por dois tipos diferentes de dúvida. A primeira dúvida refere-se à logística, aos aspectos formais. Independente de se considerar inconstitucional um referendo que não abrangia a Espanha inteira, no caos instalado domingo cerca de 60% da população da Catalunha ficou em casa. Aliás, já antes do 1º de outubro os partidos do parlamento catalão contrários aos separatistas estiveram mudos, deixaram correr o mito de uma identidade homogênea na Catalunha. Foi criado um clima de tensão e ofensa em que a oposição ao separatismo ficou quieta. Não houve campanha pelo “não” e então o que se deu foi um plebiscito do “sim”, montado pelos separatistas. As pessoas que foram votar não podem garantir que houve lisura. Eleições têm que ter sigilo e fiscalização dos oponentes em qualquer caso, mais ainda diante de emoções tribais e clima de insurreição romântica. Em muitos casos não havia listas de eleitores, havia urnas espalhadas pelo chão, teve eleitor que declarou ter votado 5 vezes, turistas resolveram participar da festa enrolados na bandeira catalã, e o resultado foi anunciado rapidamente. O seu valor é simbólico, como já foi o do referendo catalão de 2014.

A segunda dúvida é quanto ao conteúdo do “sim”. “Autonomia” e “república independente” significa precisamente o quê? Durante os quatro meses da campanha não houve esclarecimento do que se quer com a independência, além da rejeição histórica à monarquia dos herdeiros de Felipe V de Bourbon, vitorioso em 1714, e identificação do governo em Madri com a ditadura de Franco, na afirmação de que o franquismo não foi vencido nos diversos acordos da transição de 1977 (conhecidos sob a denominação geral de Pacto de Moncloa) que levaram à Constituição de 1978.

Demandas tangíveis podem ser discutidas. Já o intangível tem que ser enfrentado com contrapropaganda. A Catalunha tem um peso aproximado de 20% da economia espanhola e os municípios da costa catalã estão entre os mais ricos da Europa. A renda média da Catalunha é bem mais alta que a renda média do conjunto da Espanha, e é mais alta que a renda média da União Europeia. Há quem afirme que, independente, a economia da Catalunha poderia se beneficiar de uma política econômica própria, mas esse debate não esteve presente na campanha.

Há uma reclamação antiga dos catalães de que recebem do governo central em Madri menos do que o governo central arrecada em impostos na região. Esse é o mesmo discurso do “dinheiro roubado” na campanha do Brexit (em que se acusou a União Europeia de tirar dinheiro de instituições britânicas). Mas essa demanda de “independência fiscal” é também a face envergonhada dessa irracionalidade nacionalista e não é suficientemente denunciada como falta de solidariedade com os municípios mais pobres da Espanha, sobretudo no sul da península.

Nova aduana? Renegociação de relações comerciais com o resto da Espanha? O que fazer com os bancos (que já começam a transferir seu domicílio legal para fora da Catalunha)? E a moeda? E o Exército? E a União Europeia? Pelo visto ninguém desfez a ilusão de que uma Catalunha independente continuaria na União Europeia sentada ao lado da Espanha. E, no entanto, isso já ficou claro no referendo na Escócia, quando escoceses optaram por permanecer unidos à Inglaterra: independência da Espanha significa sair da União Europeia, que por ora considera as relações com a Catalunha uma questão interna da Espanha. Ninguém se lembrou dos custos do Brexit e os danos que já causa à economia britânica.

Nenhum político catalão apresentou aos eleitores os custos de uma separação. Até agora a “Catalunha república independente” é uma utopia sem traços concretos que tem servido para que os políticos independentistas aumentem sua votação no parlamento regional. Sua viabilidade é o que menos importa a esses políticos, a julgar pelos métodos com que a defendem.

As consequências práticas vão depender de negociações a se realizarem entre Barcelona e Madri, em primeiro lugar. Provavelmente exigirão alguma intermediação da União Europeia. Mas a situação é grave, na medida em que as partes envolvidas não se mostram dispostas ao diálogo. Trata-se da primeira vez desde a queda do Muro de Berlim que há um questionamento de fronteiras legais dentro da União Europeia.

Em outros momentos históricos um monarca espanhol exerceu papel conciliador. Don Felipe VI não disse nada durante a campanha separatista. Em ocasiões anteriores expressou seu respeito pela língua catalã e introduziu trechos em catalão nos seus discursos. Dessa vez o rei de Espanha dispensou um gesto conciliatório e usou apenas o espanhol: em pronunciamento na TV, enquanto manifestantes protestavam nas ruas de Barcelona contra a violência e pelo recolhimento das forças de segurança, defendeu o governo espanhol no uso do artigo 155 da Constituição. Denunciou a “deslealdade inadmissível” e “conduta irresponsável” do governo catalão. Falou em “situação de extrema gravidade”.  No mesmo dia a Suprema Corte espanhola aprovou a abertura de um processo por sedição, do que são acusados vários policiais, funcionários e políticos separatistas.

Na noite seguinte Puigdemont respondeu ao rei em catalão, “uma língua que eu sei que vós compreendeis”, para dizer que o monarca havia decepcionado muita gente que o apreciava na Catalunha. E aproveitou para uma entrevista ao diário sensacionalista alemão “Bild” dizendo que “se sentia já como presidente de um país livre”, e pronto para enfrentar uma “possível” pena de prisão.  A vantagem na publicidade continua dele e o impasse continua. Os partidos no Parlamento catalão contrários ao separatismo pediram intervenção judicial de Madri para impedir a próxima sessão, em que Puigdemont iria declarar a independência.

A reação das autoridades supranacionais na União Europeia demorou. Durante a campanha predominou o silêncio. Os países membros da União Europeia não têm interesse em reforçar movimentos separatistas. Ao mesmo tempo, depois do referendo, mesmo mantida a posição de não interferência nos assuntos internos da Espanha, ficou difícil ignorar a violência do governo espanhol. Populistas defensores do Brexit aproveitaram para criticar a União Europeia por apoiar Madri. O ultranacionalista britânico Nigel Farage tuitou: “Os que apoiam a UE ignoram deliberadamente a violência na Espanha contra os catalães. Esta será a maneira com que a UE lidará com discordância no futuro.”

Governos europeus que se manifestaram sobre o conflito, como a Bélgica e a Eslovênia, pediram diálogo e solução pacífica. O Presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk, depois de um dia inteiro de fotos de violência policial circulando pelo mundo, tuitou que teve uma conversa com o Primeiro Ministro Rajoy, concordava com os argumentos constitucionais deste, e apelou para que se evitasse a escalada no uso da força. O Presidente da Comissão Europeia, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, apenas usou a conferência de imprensa regular para dizer, via sua porta-voz, que “segundo a Constituição da Espanha o voto na Catalunha não foi legal”, é “uma questão interna da Espanha”, e advertiu que sem estar em linha com a constituição espanhola a Catalunha “se veria fora da UE”. O Presidente do Parlamento Europeu, o italiano Antonio Tajani, anunciou que ali se realizaria um debate sobre legalidade e direitos fundamentais na Espanha.

A União Europeia e seus países membros não poderão se limitar a essas constatações sobre o domínio da lei. Terão que buscar fórmulas para forçar ambas as partes a uma solução negociada com o objetivo de manter a paz e a estabilidade, ideais que estão na base da criação da União Europeia. Apesar do nacionalismo irracional que os líderes independentistas de direita e de esquerda manipulam, com a vaga promessa de uma vida melhor e mais justa em uma república independente, ao menos até agora ninguém consegue imaginar que possa ocorrer, na Europa de hoje, uma segunda guerra civil espanhola. Mas, em última instância, há o risco de confronto violento, basta uma morte acidental.