Helga Hoffmann

Finalmente o governo passou a explicar que a reforma da Previdência tem que ser aprovada para reduzir injustiça e desigualdade, e não simplesmente porque sem ela não há como obedecer ao teto do gasto público. “Combate aos privilégios” é um dos objetivos das reformas propostas pelo atual governo. Que o regime de pensões e aposentadorias no Brasil é injusto e contribui para a desigualdade já se sabe há bastante tempo, mas tem sido difícil convencer os beneficiários que recebem as aposentadorias de maior valor que o sistema é injusto. O livro do jornalista Brian Nicholson, Previdência Injusta, é em certo sentido simbólico: concentrou-se mais na injustiça que no déficit fiscal e na sustentabilidade, e não teve repercussão alguma (para tristeza do autor e de economistas que analisavam a desigualdade extrema no Brasil).[1]

Nicholson nunca afirmou que uma aposentadoria elevada é por si só injusta. Aposentadoria alta não é “privilégio”, desde que não seja subsidiada pelos mais pobres. Comparou a situação de sete grandes grupos, por ordem decrescente do seu número de integrantes:

  1. Aposentados por tempo de contribuição do INSS;
  2. Aposentados pelo INSS por idade;
  3. Aposentadorias especiais, incluindo a de mulheres e professores;
  4. Servidores públicos;
  5. Políticos e funcionários de estatais;
  6. Militares e suas filhas solteiras;
  7. Ex-combatentes e anistiados.

Nenhum grupo per se é de privilegiados, porque em cada um deles se encontram pessoas que por critério algum podem ser consideradas privilegiadas, seja pelo baixo valor de seus benefícios, seja pelo alto valor total das contribuições que fizeram. Mas em cada grupo, em maior ou menor proporção, há um contingente para o qual benefícios e contribuições estão em desequilíbrio, o que, no agregado, resulta no déficit da Previdência.

Acontece que boa parte das aposentadorias mais altas no Brasil é subsidiada pelos mais pobres. O subsídio fica escondido, ele se dá na medida em que é o Tesouro (isto é, a sociedade brasileira por meio de impostos pagos ao Estado) que cobre os déficits com aposentadorias e pensões do INSS (RGPS-Regime Geral de Previdência Social) e dos funcionários públicos, civis e militares, dos três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios (RPPS-Regime Próprio de Previdência dos Servidores).

E então é preciso explicar como o funcionamento atual do sistema previdenciário no Brasil faz essa transferência dos mais pobres para os mais ricos. Segundo dados de 2016, o déficit do RGPS foi de R$ 150 bilhões, enquanto o do RPPS foi R$71 bilhões. Só que o RGPS paga benefícios a quase 29 milhões de pessoas, enquanto o RPPS banca menos de 1 milhão de aposentadorias e pensões. Grosso modo, o subsídio da sociedade brasileira à aposentadoria de seu funcionalismo é de R$6 mil por benefício/mês, enquanto é de R$ 430 por benefício/mês o subsídio aos aposentados do setor privado. Como em 2016 o valor médio do benefício do RPPS foi R$9.400 e do RGPS foi R$1.450, vemos que a transferência é proporcionalmente maior no caso das aposentadorias do funcionalismo público. Enquanto no caso do INSS a contribuição recolhida cobre cerca de 70% do benefício, no caso do funcionalismo a contribuição recolhida não chega nem a cobrir 40% do benefício. A injustiça maior ocorre nesse processo de transferência para cobertura do rombo, pois este é pago pela sociedade em seu conjunto. É por isso que se defende uma mudança de regras para que haja mais equilíbrio entre contribuições a serem recolhidas e benefícios a serem pagos.

Há injustiça também na medida em que a Previdência “come” outros gastos importantes. No caso da União, as aposentadorias do INSS e do funcionalismo público (RGPS e RPPS) mais os benefícios assistenciais (BPC-LOAS)[2] correspondem em conjunto a mais de 60% de toda a receita primária (líquida de transferências para Estados e municípios) projetada para 2017. E a tendência é que tal proporção aumente com o envelhecimento da população e pode chegar ao ponto de não haver mais dinheiro para pagar ninguém. Os elevados gastos com benefícios previdenciários reduzem muito o espaço para outras despesas públicas, como o custeio de saúde, educação, segurança, mobilidade urbana. E reduzem o espaço para outros programas do governo federal como o Minha Casa Minha Vida, o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar, e o Luz para Todos. Sem falar dos investimentos públicos adiados em um país carente de infraestrutura e saneamento básico.

Existe ainda uma injustiça mais fácil de captar quando a maioria dos aposentados recebe um salário mínimo (atualmente em 937 reais, que é o que recebem ao menos dois terços dos 29 milhões de aposentados e pensionistas do INSS) e vemos as notícias de superaposentadorias superiores a 33 vezes o mínimo, sobretudo no Judiciário e em estatais, ou escandalosos acúmulos de elevadas aposentadorias com pensões.

O Brasil é conhecido como país de grande desigualdade social. Mas só agora se começa a perceber que precisamente um componente da renda mais sujeito a leis e regulamentos tem reforçado a desigualdade. Há pelo menos 15 anos a análise acadêmica mostra que a renda recebida como aposentadoria é mais concentrada que a renda em geral. Os estudos pioneiros do mais persistente pesquisador da desigualdade na distribuição de renda no Brasil, o economista Rodolfo Hoffmann, da USP, usaram dados da PNAD-Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, que não distinguia entre aposentadorias do INSS e as do funcionalismo público. Revelou-se que aposentadorias e pensões em geral eram uma parcela ligeiramente regressiva da renda, isto é, contribuíam para aumentar a desigualdade.[3]

Mais tarde, quando a POF-Pesquisa de Orçamentos Familiares disponibilizou dados em separado do INSS e do RPPS, ficou claro que as aposentadorias e pensões do INSS eram um componente ligeiramente progressivo da renda e eram as aposentadorias e pensões do funcionalismo público o componente fortemente regressivo, isto é, um componente que contribuía para a desigualdade da distribuição de renda.[4] A mesma constatação aparece em um estudo do IPEA publicado para comemorar os 10 anos do Programa Bolsa Família em 2013. É claro que no caso o foco eram as transferências como o Bolsa Família e o BPC. Mostrou como esses componentes, embora pequenos como proporção da renda total, contribuíram para a redução da desigualdade, enquanto a renda recebida do RPPS, o regime de aposentadoria do funcionalismo público, continuava sendo fortemente regressiva.[5]

Há razões próprias para cada item da reforma. A necessidade de aumentar a idade mínima para a aposentadoria, como vem sendo feito no mundo inteiro, vem das mudanças demográficas como o envelhecimento da população e aumento da proporção dos inativos. O fim das aposentadorias especiais, como a das mulheres, professores e policiais, infelizmente acabou sendo retirado da proposta, porque ainda não se reconheceu que não funciona compensar erros de política salarial com aposentadoria mais benevolente. Professores e policiais deveriam receber salários maiores para compensar a dureza e o mérito da profissão, e não serem mandados para casa quando talvez estejam no melhor ponto de sua competência e experiência profissional.

Mas a injustiça maior, ainda que menos flagrante, vem mesmo da maneira pela qual a renda é transferida entre diferentes grupos sociais. No fim das contas, analisando cada item das reformas propostas, e vendo a resistência de grupos que defendem privilégios com uma miopia que parece quase incurável, lembro a resposta de um bom analista de políticas públicas, Ricardo Paes de Barros, ao repórter que perguntava se era possível o ajuste fiscal sem prejudicar os mais pobres: “A sociedade precisa decidir o quão solidária ela é.” Sem demagogia, avaliando custos e benefícios de cada política pública. E note-se que sequer tocamos na questão da solidariedade entre gerações, pois manter por mais tempo um sistema insustentável causará enormes prejuízos para as próximas gerações.

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[1] Brian Nicholson, Previdência Injusta. Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil, São Paulo,Geração Editorial 2007.  Fiz resenha desse livro, publicada em Econômica, Rio de Janeiro, v.10 n.1, p171-173, junho 2008.  Repercussão zero.  Mas poucos meses antes aposentados da Petrobrás fizeram sucesso no Rio protestando nus porque o aumento concedido a empregados na ativa não se aplicara às aposentadorias. Até hoje ainda não se entendeu no Brasil que Previdência não é política salarial.

[2] BPC-LOAS é Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social.

[3] Já em 2002 isso ficou claro. Ver Rodolfo Hoffmann, “Inequality in Brazil: The Contribution of Pensions”, in RBE Rio de Janeiro 57(4):755-773 OUT/DEZ 2003.

[4] Causa espanto que o rendimento por RPPS seja um componente tão regressivo quanto o rendimento dos empregadores e rendimento de aluguel. Rodolfo Hoffmann, “Desigualdade da renda e das despesas per capita no Brasil….”, Economia e Sociedade, Campinas, v.19 n.3(40), p.647-661, dez.2010.

[5] Rodolfo Hoffmann, “Transferência de renda e desigualdade, Brasil, 1955-2912: análise de 11 parcelas da renda familiar per capita”. Capítulo 12 de Campello, T. e Neri, M.C. (org). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. IPEA, 2013.