Chega essa época do ano e vejo um monte de marmanjo fazendo graça, publicando cartinhas em tom debiloide nas redes sociais. Uns pedem de presente a reforma da Previdência, outros a Mega Sena da virada. As pessoas então comentam o quanto é fofo um sujeito de 60 anos ou mais, se prestar a um papel tão idiota, na intenção de divertir os netos. E vão pespegar ao texto os tais emojis, aquelas carinhas de lua cheia sorridentes, muitas vezes com uma boca torta, na intenção de mandar um beijo. Só de falar sobre isso, já perco o pouco de respeito que ainda tenho por mim mesmo. Será que Churchill, o maior de todos nós, se daria ao desfrute de vir a público, assinando ele mesmo mais uma carta patética a Papai Noel, como eu faço agora? A resposta é não. Mas como não sou Churchill e como estou condenado a continuar sendo só eu mesmo até morrer, intimo-o a prestar bem atenção ao que vou dizer porque essa é a segunda e última carta que lhe escrevo, Papai Noel. E acautele-se que dessa vez a coisa não vai ficar só entre nós, não. Já aviso que vou fazer como todo mundo, o que significa colocar isso em algum lugar da Internet para um monte de gente ler. Talvez o que não tenha conseguido em privado, agora dê certo, ajudado pela multidão virtual.
A primeira carta, salvo lapso acidental de memória, data do final dos anos 1960. Se rabisquei um ou outro bilhete quando ainda era recém-alfabetizado, disso só tenho uma lembrança baça. Mas a que levo a sério mesmo foi aquela que levei ao correio, na avenida Guararapes, no Recife, um local onde eu jurara nunca botar os pés. Isso porque, talvez uns dois anos antes de me submeter ao que constataria ter sido um papel ridículo, vira aquele edifício todo despedaçado. Mamãe disse que tinha sido um acidente com bomba, mas tia Alicinha falou que fora um atentado político. E que muitos outros viriam, em nome do povo e contra a ditadura. Mesmo assim, fui levar a carta ao guichê, com medo que outra detonação me deixasse surdo. Espichado para a pouca idade, a atendente me olhou com um misto de comiseração e humor quando leu o destinatário: “Para Papai Noel, Estado: Lapônia, País: Finlândia, Continente: Europa”. Como sempre gostei de contexto claro, é capaz de ter acrescentado, Planeta: Terra e Sistema Solar. Isso feito, saí pela rua do Sol e atravessei a ponte Duarte Coelho com o coração batendo a mil. A mulher não soube estimar quanto tempo levaria para chegar ao destinatário e não aceitou meu dinheiro. “Ele já paga o selo, nem pense nisso”.
A bem da verdade, para não passar por otário completo, acho que já desconfiava de que você não existia. Ocorre que as propagandas da Varig eram tão convincentes. De mais, era tão bom acreditar em você. Especialmente, imaginá-lo entrando no meu quarto, pé ante pé, pela janela aberta, enquanto as renas bebiam água no rio. Mamãe deu a entender que você respeitava a ordem dos andares. Começava por Augusto, neto do General, que morava no 20º. Depois por Alexandre e Silvana Cardoso, no 19º. Lá também devia haver um presente para Manuelzinho, que era filho de Severina, a empregada. Então vinham os irmãos Cantarelli, no 17º. Chegava, por fim, nossa vez, que morávamos no 16º, meu irmão e eu. Mas era só o começo. Os amigos Guga, Sérgio, Babita e Telma no 15º, e os primos Pedro e Zé Ivan no 13º. Enfim, não vou enumerá-los todos até Patrícia Lobo, no 2º. Mas era um baita trabalho. Recapitular tudo isso, bem sabemos, é uma enorme perda de tempo e, francamente, não sei porque perseverar nesse exercício. Alguma coisa devo querer lhe dizer, mas ainda não sei o que é. Engraçado que não consigo xingá-lo de tudo o que queria. O insulto não sai, fico dando voltas e desisto, seu velho barrigudo (como eu, viu?).
Certo mesmo é que uma vez fomos à casa da melhor amiga de mamãe, no bairro de Casa Amarela, às primeiras horas da noite de Natal. Fiquei na varanda, vendo as mariposas voejando em torno da luz. Os adultos conversavam na sala de jantar. Então veio a música que falava de você. Dizia “Papai Noel voando a jato pelo céu, Trazendo um Natal de felicidade, E um ano novo cheio de prosperidade…” Nessa hora, olhei para o céu e juro que vi você passando, sacudindo as rédeas, deixando uma espécie de pozinho brilhante pelo caminho. Então fui dizer a meus pais que você já estava na cidade e que deveríamos voltar para casa para abrir a janela. Tinha ficado fechada por causa da chuva. Como é que você iria deixar minha bicicleta e o velocípede de meu irmão? Mamãe disse que tínhamos tempo, você ainda iria a Piedade e Boa Viagem, onde o pessoal dormia mais cedo porque levava muito sol de praia, e só então chegaria. Convenhamos, fazia todo sentido. Cinquenta anos depois disso, mesmo sabendo que você é um baita de um engodo, um pilantra de marca, eu confesso que nunca vi nada tão bonito quanto aquele rastro no céu, salpicado de estrelinhas.
O que sei de mais é que no chamado ano da desilusão, eu tinha visto uma bicicleta Monark na loja Viana Leal, na entrada da seção de brinquedos, com quadro masculino, recomendada para meninos de 14 anos. Ora, eu tinha uns dez, mas também já a altura de alguém de 15. A bicicleta era verde, os pneus tinham uma faixa branca e uma espécie de crina de cabelinhos de borracha. Era linda e já vinha com buzina. Percebi que mamãe queria chamar minha atenção para um enorme velocípede lilás, mas eu o ignorei por completo. Queria a bicicleta e lhe mandei a descrição dela com clareza, dizendo até em que lugar da loja estava. Pois bem, cacete, você se confundiu e me trouxe o tal velocípede, porra. O grande para mim e o pequeno para o meu irmão. Na manhã da decepção, todos os meninos desceram para brincar com os presentes e mostrá-los uns aos outros. Eu fiquei em casa, emburrado, em greve. Foi aí que mamãe – as más notícias eram com ela – acendeu um cigarro e então disse que você não existia. Que era meu pai quem comprava os presentes e ele mesmo os colocava sobre o chinelo. Naquele ano, parece que o dinheiro estava curto. Lembro da dor até hoje, pois foi diferente das poucas e boas que sentiria na vida. Só rebati com “é claro, eu já sabia”. Que também é uma resposta padrão para a dor.
Três dias depois, eles trocaram o velocípede pela bicicleta e devo ter ficado contente porque ela foi para mim instrumento de libertação, e não peça de exibicionismo. Com ela, fiz descobertas especiais e que teriam impacto sobre minha vida. Mas o que quero dizer é que nunca consegui entender aquela visão que eu tivera, no céu de Casa Amarela, no momento em que tocavam sua música na televisão. Da conversa fatídica, disse a mamãe que ficasse tranquila pois eu não contaria o segredo a meu irmão, 3 anos mais novo. Lembro quando ela rebateu: “É melhor contar de uma vez, depois a decepção é maior”. Argumentei que não fizesse isso, que ele ainda era pequeno. Ela fez um muxoxo e mal sabia eu que estava diante de seu padrão negocial preferido vida afora, até hoje. Usando a tática do choque de realismo, ela prepara o interlocutor para o pior. Carrega tanto nas tintas, é tão competente em espezinhar a esperança, que a má notícia termina sendo boa. É como se começasse dizendo que alguém morreu (ou quase) para suavizar, na sequência, admitindo que o cara está na UTI. Ora, saber o paciente vivo, ainda que estivesse todo remendado, passava a ser uma boa notícia. Foi o caso. O mundo caíra para mim, mas podia também desabar sobre meu irmão de 7 anos. Indultá-lo do choque já foi um alento, bastava a dor de um. Então ela acendia outro cigarro e seguia em frente. Esperta, Lucy.
Foi assim que o mito de sua existência ganhou sobrevida lá em casa. Quando íamos a Garanhuns, e passávamos pela Serra das Russas – uns morretes recobertos por abacaxis que têm fama de ter curvas perigosíssimas, na mitologia pernambucana -, papai desacelerava e apontava ao longe, no fundo do vale, um ponto branco, não sei se com um fiozinho de fumaça saindo pela chaminé ou não. Então, dizia a meu irmão: “Lá está a casinha de Papai Noel”. E então inventava que você descansava depois das festas, tirava umas férias, e já começava a fabricar os brinquedos para a estação seguinte. Eu sempre gostei de inventar história para distrair as pessoas, mas nesse capítulo eu preferia não dizer nada. Enquanto meus pais respondiam às perguntas tolas de meu irmão, eu preferia imaginar que você morava mesmo na tal Lapônia. No fundo, invejava Zé por ainda acreditar numa mentira, mas o que me intrigava era saber o que eu vira naquela noite. Muitos anos depois, quando pude fazer de minha vida o que bem queria, fui à Finlândia no fim do ano. Sob pretexto de ver a aurora boreal, a -20°, vasculhava o céu de Rovaniemi à sua procura. Vá lá que o Brasil era longe, mas em sua própria cidade, você bem que poderia aparecer. Renas, tinha de monte. Mas no céu, só clarões e flocos de neve. De você, nada, meu velho.
Vou concluir, Papai Noel. Chego ao fim sem saber ao certo o que quis lhe dizer. Desconfio que passar meia-hora castigando o teclado, escrevendo essas bobagens, foi uma maneira de reafirmar a mim mesmo que talvez a visão que tive naquela noite em casa de Marlene e Hélio Fontes, não estava de todo equivocada. O caso da bicicleta foi o que tinha que ser, pronto, acho que já virei a página de vez. Como você deve saber, a vida só me deu coisa boa desde então. Se você de alguma forma esteve por trás disso, tanto melhor, não duvido de todo. Nessa última carta de minha vida a você, não vou pedir as reformas nem os números certos da loteria. Na verdade, eu só queria que tudo ficasse como está por mais alguns anos, de maneira que eu tenha tempo de fazer umas coisinhas antes de ir embora. Não sei como vocês organizam as competências e as reservas de mercado, você e as divindades. Seja como for, irreal por irreal, você continua sendo meu favorito. Mais do que Buda, Jesus, Shiva ou qualquer outro. Ainda hoje, não resisto a parar diante de uma versão sua num shopping mundo afora. Nunca se sabe. Portanto, não se preocupe em botar as barbas brancas de molho nem em desviar a rota das renas para evitar dar de cara comigo. Já não temos mais contas a acertar. Pena mesmo foi que só eu o tenha visto naquela noite de encantamento, e, pelo jeito, ninguém mais. Paciência. Cuide da glicemia e um abraço.
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