Não tenho, infelizmente, condições de avaliar até que ponto o incremento às relações internacionais Sul-Sul, proporcionadas pelos recentes governos brasileiros, influenciaram direta ou indiretamente na chegada de diversos autores africanos ao Brasil. O fato é que, além de nomes lusófonos já conhecidos, como Pepetela, Luandino Vieira, Agualusa e Mia Couto, estão chegando e se tornando familiares outros mais como Chimamanda Adichie, Chenua Achebe, Yaa Gyasi e Scholastique Mukasonga. Nomes que mostram o vigor das diversas literaturas africanas. Vigor por sinal já bem conhecido dos europeus, em particular pela França e pelo mundo anglófono, aliás não sem motivo, uma vez que muitos autores têm no inglês e no francês uma de suas línguas maternas.
Os editores nacionais abriram o olho para a África e, ao que parece, têm sido gratamente correspondidos pelo nosso público leitor. O continente africano deixa as especializadas prateleiras sociológicas e antropológicas (se é que podemos falar assim) e brilha na “generalista” seção literária. O brasileiro, tão africano por sua formação histórica e social, redescobre a África. Nela, encontra e reencontra fraternidades ocultas (e ocultadas), espelhos e similitudes que pareciam embaciados por uma miscigenação e uma negritude que, a rigor, não subiram ao topo da pirâmide social, não obstante esforços exemplares e restauradores como os de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.
Aos 61 anos de idade, escrevendo em francês, a ruandesa Scholastique Mukasonga, várias vezes publicada pela Gallimard, chega ao Brasil por intermédio de uma pequena, jovem e instigante editora paulista, a Nós, que a lançou em julho último na Festa Literária Internacional de Paraty. Sucesso. Aliás, duplo sucesso, pois foram lançados, com a presença da autora, dois de seus livros: “A mulher de pés descalços” e “Nossa Senhora do Nilo”, este último um romance já premiado na França.
Penso que o relato autobiográfico e algo ficcionalizado “A mulher de pés descalços” é uma bela iniciação ao universo de Mukasonga. Seu horizonte histórico é o sangrento e colossal genocídio ruandês de 1994, cujo legado de quase um milhão de mortos, também assassinou, em apenas cem dias, vinte e sete membros da família da escritora e por pouco não extinguiu sua própria vida. Como é sabido, o horror do massacre de sua etnia tutsi pela etnia rival, a dos hutus, chocou o mundo, muito embora o mundo pouco ou nada tenha feito diante da trágica velocidade dos acontecimentos. Uma vergonha de nosso tempo.
É verdade que, por um lado, se “A mulher de pés descalços” começa pelo medo da morte e das milícias inimigas numa infância tão real quanto ficcionalizada, assim como pelo cadáver martirizado da mãe da escritora, também é verdade, por outro lado, que o livro transcende o que seria apenas o fato tristemente histórico, tão brutal quanto a política que o conduziu com fria e calculada técnica. Transcende a crueza histórica para logo enveredar, com maestria, por uma espécie de etnografia poética de Ruanda.
Essa etnografia, que também é uma memória afetiva, centra-se na personagem da mãe da escritora, cuja esperança e coragem são celebradas no pórtico da obra. Apesar de narrado em primeira pessoa, é da terceira pessoa consubstanciada nessa mãe que vem grande parte do ponto de vista sobre Ruanda. É assim que vemos a casa e sua arquitetura. É assim que assistimos à celebração dos alimentos, em especial do sorgo, (“[… ] uma bela plantação de sorgo era um talismã contra a fome e contra as calamidades, era um sinal de fertilidade e de abundância […])”. É assim igualmente que conhecemos as relações das pessoas com os remédios caseiros e com vários outros usos e costumes da sociedade ruandesa.
São especiais as evocações de Mukasonga que nos falam como a mãe opinava sobre os casamentos, o comportamento e a beleza das moças. Aqui a sensibilidade e a reflexão da autora se unem num trecho pungente: “Mas como a gente faz para saber se é bonita sem um espelho? […] O único espelho eram os outros: o olhar satisfeito ou os suspiros de desânimo da nossa própria mãe, as observações e os comentários da irmã mais velha ou dos colegas e, depois, o rumor que corria pelo vilarejo que acabava chegando até nós: quem é bonita? E quem não é?”. Mukasonga também registra que em Ruanda “não se praticava a mutilação genital feminina como em outras sociedades africanas. Pelo contrário, era preciso proteger esse reduto precioso de onde vêm as crianças”. Na visão tradicional dos ruandeses, a mulher tornar-se mãe “era conquistar o auge da admiração”. Tragicamente, por ironia a essa valorização da fecundidade, o genocídio de 1994 usou o estupro como arma e “quase todos os estupradores eram portadores do vírus HIV”. As vítimas, todavia, embora rejeitadas pela sociedade, não abortaram e “encontraram nos filhos nascidos do estupro uma fonte viva de coragem e a força para desafiar o projeto dos seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das mães-coragem”. Essa fecundidade negativa se tornou um símbolo de resistência e um penhor de futuro.
Narrado e escrito com simplicidade e concisão, “A mulher de pés descalços” parece trilhar um caminho de esperança e tecer um catártico curativo sobre a dor. Mukasonga, ao fazer um afetuoso mosaico da cultura de seu país, realça o poder terapêutico da literatura e age como uma guardiã da memória de seu povo. Seu livro é uma celebração da vida. Uma cicatriz que brilha para iluminar o perdido, mas que é capaz de mostrar ao futuro a coragem e o valor dos antepassados.
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