Em março do ano passado, a pandemia lançou uma rede de estresse social sobre a população. Antes, a sociedade brasileira já experimentava clima de polarização política. Sobrepostos, estresse social e radicalismo político tornaram ainda mais agudo o patamar de intolerância no país.

Em 1763, o filósofo francês, François Marie Arouet, Voltaire, que viveu de 1694 a 1778, publicou O Tratado sobre a tolerância. O livro nasceu sob inspiração de suposto crime praticado por Jean Calas, protestante e comerciante em Toulouse. A acusação era a de que ele teria assassinado seu filho, Mac Antoine. Por este haver decidido converter-se ao catolicismo.

Treze juízes reuniram-se para julgar Calas. Não havia provas contra a família. Nem contra Calas. Mas a intolerância religiosa substituiu eventuais provas. E Calas foi condenado à morte.

Voltaire indaga: Respeitam-se as confrarias. Mas, por mais edificantes que sejam, que benefícios fazem ao Estado, comparável ao mal que lhe causaram ?

E discorre sobre os desmandos praticados pelo Papa Alexandre VI. Junto com seu filho, o cardeal, Bórgia. Que mandou matar os Vitelli, os Urbino, os Gravina, uma centena de senhores feudais, para pilhar seus domínios.

Diz Voltaire: A Alemanha seria um deserto de ossos de católicos, evangélicos, anabatistas, degolados uns pelos outros, se a paz de Vestfália não tivesse garantido a liberdade de consciência. Quanto mais seitas existirem, menos perigosas elas serão. O grande meio de diminuir o número de maníacos é abandonar a doença do espírito e submetê-la ao regime da razão. Que esclarece os homens, lenta e infalivelmente. Porque a razão é humana, é benevolente, inspira a indulgência, sufoca a discórdia. E fortalece a virtude.

Para Voltaire, o direito natural é aquele que a natureza determina a todos os homens. O direito humano só pode ser fundado no direito da natureza. E o princípio universal de um e outro é: “Não faças ao outro o que não queiras que seja feito a ti”.

Então, o direito da intolerância é absurdo e bárbaro. É o direito dos tigres. Por sua vez, os romanos não professavam todos os cultos. Mas permitiram sua prática. Sob Moisés, sob juízes, sob reis, vereis sempre exemplos de tolerância.

Voltaire lembra que Cristo não fixou leis sanguinárias. Não ordenou a intolerância. Não mandou construir masmorras de Inquisição. Nem instituiu carrascos em autos de fé. As palavras e as ações de Cristo pregam doçura, paciência, indulgência. É o pai de família que recebe o filho pródigo; o samaritano caridoso; o perdão à pecadora; contentando-se em recomendar fidelidade à mulher adúltera.

Cristo não se enfurece contra Judas. Ordena a Pedro que não use a espada. Repreende os filhos de Zebedeu que queriam descer o fogo do céu sobre cidade que não quis alojá-lo.

Nenhum homem gosta de serviço forçado. São muitos os autores que se alinham à tolerância: conciliai, não forçai (São Bernardo); doenças da alma não se curam pela violência (Cardeal Le Camus); cedei todos à tolerância civil (Fenelon); a violência produz hipócritas (Tillemont); na religião como no amor, obrigação não consegue nada (Amelot de la Houssaie).

Segundo Voltaire, quanto menos dogmas, menos disputas; quanto menos disputas, menos infelicidades. Para ser feliz nesta vida, o que é necessário ? Ser indulgente. Não é necessária grande arte para que cristãos possam tolerar-se uns aos outros. É só olhar os homens como irmãos.

Em 9 de março de 1765, tolerância e inocência triunfaram. O sr, Banquecourt relatou novamente o processo. E os juízes, por unanimidade, declararam a família inocente. Reabilitaram a memória de Jean Calas. Houve, em Paris, grande alegria. Multidões congratularam-se nas praças.