E Próspero – supondo que seja o Duque de Milão expulso em 1611 – vestia túnica? Meu colega economista, Luiz Alfredo Raposo, antes de explicar aqui na “Será?” como a política é necessária e não há democracia sem política, e que juízes não devem decidir segundo suas posições políticas, começa por “pegar a túnica de Próspero”. Não seria uma toga? Raposo não vestiu a túnica de Próspero, apenas a pegou. Por que será? Porque Próspero declama suas memórias sobre como sofreu uma usurpação? Porque Próspero consegue que se produza o afundamento de um navio na tempestade mas ao mesmo tempo determina que se salvem todos, o rei e seus nobres e a tripulação? Será que Raposo queria nos recordar que o nosso navio ameaça soçobrar na tempestade? Segundo o poeta W.H. Auden, quando deu sua aula sobre “A Tempestade”, o paralelo entre navio e estado é convencional e já tinha aparecido antes em Shakespeare. A tempestade do Prólogo (que mais tarde verificamos ter sido ordenada por Próspero) mostra que, numa crise, “a mágica da autoridade pertence a quem tem competência profissional e coragem”[1]: o capitão e o contramestre têm precedência sobre o rei.
Ou será porque Próspero quis educar seu escravo na ilha? Mas só fez piorá-lo, pois Caliban acusa:
“Vós me ensinastes linguagem/ e disso só é minha vantagem/ que sei praguejar”.
Não creio que alguém precise de toga alguma para fazer comentários sobre ações do Judiciário brasileiro em qualquer tempo, e mais ainda nos tempos atuais. Para o bem ou para o mal, já estão na boca do povo. O impacto dos atos do Judiciário passou a ser importante demais para que sua discussão seja deixada apenas aos profissionais especializados.[2] Mesmo assim, só posso entender como aberração e sintoma de instituições em crise a realização de comícios na porta dos tribunais ou importantes manifestações políticas, de partidários de uma posição ou da posição oposta, às vésperas de decisões judiciais. Implicam desrespeito ao Judiciário e implicam que o Judiciário está desmoralizado e disfuncional, pressupõem que as decisões do Judiciário são tomadas segundo a posição política dos juízes e conforme a pressão política e não de acordo com a lei. E indicam uma confusão entre os poderes, pressionando juízes que não têm mandato eletivo, não foram eleitos para defender os interesses deste ou daquele grupo social, são (ou deveriam ser), a rigor, apenas os operadores da garantia de cumprimento da Constituição e das leis. O Legislativo e o Executivo é que são os representantes eleitos do povo e devem ser cobrados pelos eleitores nos múltiplos estratos e grupos de interesse.
Como explicar essa pretensão de influenciar, via manifestações, decisões de uma suprema corte constitucional que deveriam, em tese, ser previsíveis, pois em cumprimento à Constituição e à lei? A pergunta irônica que se fez esta semana toda foi um pouco diferente: alguém sabe como explicar a um estrangeiro o que foi que decidiu o STF esta quinta-feira 22 de março? Sugestão de resumo: nossa corte suprema decidiu, depois de horas de discussão, que tinha o direito de decidir e decidiu não decidir, adiou a decisão e deixou o país esperando doze dias porque um dos Ministros tinha viagem marcada, e depois é Semana Santa. (A gente lembra, sim, que a Assembleia Nacional Constituinte se reuniu em 1988 “sob a proteção de Deus”.) E por que tanta angústia e dificuldade de decidir? A incerteza é criação do próprio STF, que permitiu, ao longo de anos, que decisões fossem tomadas em cada caso individual, sem firmar jurisprudência de forma clara, e que ocorressem decisões finais de juízes ou de cada uma das turmas sem a chancela do pleno do STF. Assim, em seminário recente, ouvi de um professor de direito constitucional que o Brasil tem, a rigor, 14 cortes supremas: os 11 ministros, mais cada uma das duas turmas, e a Presidência do STF, que decide a pauta e assim pode escolher o dia em que um processo é examinado (e implicitamente pode decidir que caso vai prescrever). Outro fator de incerteza jurídica é a enorme proporção das decisões monocráticas: o resultado de um processo é aleatório, depende do Ministro para o qual é distribuído. Em ano recente, para 95 mil decisões por um só dos Ministros do STF, tivemos 10 mil decisões colegiadas, saídas das duas turmas, e apenas algumas centenas foram decisões do pleno do STF. Boa parte das milhares de decisões monocráticas foram liminares que permaneceram para sempre liminares.
Diante desse quadro, não pode surpreender que até decisões do STF sejam questionadas com frequência na opinião pública. O STF, além de ser em tese a corte constitucional do Brasil, chamada a decidir que lei ou ação é constitucional ou contraria a Constituição, é também a instância de revisão última das decisões de todas as instâncias inferiores (para quem pode pagar os advogados que preparam os recursos), e é a primeira instância para 55.000 políticos e altos funcionários públicos que têm foro privilegiado. Cinquenta e cinco mil! Mesmo que os Ministros não tivessem seus dois meses de férias, sem dúvida um absurdo internacional, não há como escapar da sobrecarga de processos sem decisão (e em que a punição acaba prescrevendo, para aqueles com maior capacidade de apresentar recursos). Mas vemos que é forte a resistência a acabar (ou reduzir) o foro privilegiado – outro absurdo internacional – e os recursos ad infinitum com que se protelam punições após uma condenação – mais um absurdo internacional.
A tempestade em meio à qual se encontra agora o STF, essencialmente em torno do parágrafo 67 do artigo 5º da Constituição, foi gestada no próprio tribunal. O que deveria ter sido resolvido há tempos e em geral como uma questão constitucional foi sendo covardemente adiado, e agora está “fulanizado” – ainda por cima “fulanizado” em um polêmico ex-presidente da República. E tornou praticamente impossível a discussão de constitucionalidade sem remeter às posições de política de cada Ministro. Desmascara um Judiciário disfuncional. A sentença é objeto de disputa política por causa da incompetência acumulada dos próprios ministros do STF e da sua Presidência. Quem ousa recordar (ou escrever) o texto do parágrafo 67, ”ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, será acusado de ser contra a Lava Jato e a favor dos corruptos. E neste momento ficou mais difícil mostrar aos partidários do ex-presidente que esse parágrafo e sua interpretação literal favorecem apenas quem pode financiar a produção de recursos ad infinitum.
Esse é apenas uma das faces da desmoralização do Judiciário. Do outro lado dos recursos ad infinitum está a prisão ad infinitum. Não é sem razão que pesquisas indicam falta de confiança no Judiciário: mais de 90% da população considera que o Judiciário não trata de modo igual pobres e ricos. O Brasil tem uma taxa de encarceramento alta – e desse ponto de vista pode ser classificado como “punitivista”. A população carcerária está em quase 750.000 pessoas. E quem são esses presos? Em sua maioria jovens, negros e pobres. Quase 1/3 está preso por crimes relacionados com o tráfico de drogas, pouco mais de 1/3 por roubo e furto. As mulheres são 40%, e 60% delas são mães.
Não é retórica a afirmação de que a outra face dos recursos ad infinitum é a prisão provisória ad infinitum: 40% dos presos estão à espera de julgamento. Ou seja, enquanto se discute se deve ocorrer prisão de condenados em 2ª instância, esquecemos que há quase 300 mil pessoas presas sem condenação, e que essa espera pela decisão em primeira instância pode durar vários anos. Esse é um aspecto pouco divulgado da experiência daqueles que a elite da casta às vezes chama de “advogados de porta de cadeia”: o descaso com o tempo que dura um processo penal. Não há prazo para o término de um processo em primeiro grau e não há critérios unívocos para a prisão provisória, preventiva ou cautelar. E assim chegamos a trezentos mil presos ainda não julgados, com milhares que podem passar um ano e até mais à espera de julgamento, praticamente cumprindo pena antes de serem condenados! Quem sabe, agora que há presos ilustres, o nosso Judiciário decida estabelecer limites de prazo para o processo de primeiro grau, de modo que, desrespeitado o prazo, seja automática a soltura daquele em prisão provisória.
Que o Brasil é um país injusto já sabemos, mas que o Judiciário brasileiro funciona de modo injusto não está claro o suficiente. O Judiciário ainda evita discutir reformas, inclusive os privilégios excessivos de uma casta corporativa, mas nem o entusiasmado trabalho de combate à corrupção consegue esconder a sua necessidade. O nosso aparato jurídico e o seu funcionamento são caríssimos e ineficazes. É preciso reexaminar sua relação custo-benefício para a sociedade brasileira.
[1] W.H. Auden, Lectures on Shakespeare (Edited by Arthur Kirsch). Faber and Faber Ltd, Londres, 2000, pp. 298-299.
[2] Tenho grande respeito por conhecimento especializado, que resulta de longos anos de estudo e dedicação e de credenciamento estabelecido. Aqui estou apenas parafraseando Mahfuzur Rahman, meu colega economista na ONU, de tradição muçulmana, quando começou a escrever sobre o terrorismo islâmico depois do 11 de setembro de 2001:”esses são tempos desesperados, e religião hoje é importante demais para ser deixada inteiramente a seus intérpretes profissionais”. Khoda Hafez vs Allah Hafez and Other Critical Essays, The University Press Ltd., Dhaka, Bangladesh 2007, p. 68
comentários recentes