Elimar Pinheiro do Nascimento[1]
Em julho de 1987 Claudio Porto convidou-me a um realizar um trabalho sobre o qual não tinha a menor ideia. Desafiou-me a desenhar cenários políticos para o Brasil 2000. No momento do convite mal tinha ideia do que fosse cenário. Apenas leituras eventuais e despretensiosas. Mas, depois de uma conversa telefônica, aceitei o convite. Ainda sem saber direito do que se tratava, era uma grande irresponsabilidade. Mas, no momento não pensei assim, imaginei que talvez pudesse fazer algo interessante. Afinal, Claudio havia me explicado duas ou três coisas essenciais. Primeira, cenários são hipóteses de futuro, usados justamente porque nossas projeções e previsões são sempre falhas. Por isso, ao invés de dizermos que neste ano o PIB irá crescer de 3%, utilizamos não números, mas faixas = entre 1% e 3%, significando que fora da faixa não vale a pena pensar (o pior é que, hoje, penso que vale). Segunda, o futuro é a morada privilegiada da incerteza, e o único caminho de administrá-la era elaborando cenários alternativos que privilegiassem os extremos. Estressar as alternativas era o caminho. Com isso, o espaço de acolhimento das incertezas era mais amplo. Claro que esse procedimento escondia o desejo impossível, vejo hoje, de “acertar o futuro”. E, a terceira coisa, que ele não conhecia ninguém que tivesse elaborado algo do gênero com alguma consistência. Como gostam de dizer os analistas políticos, reproduzindo frase de um daqueles velhos políticos bonachões e experientes, a politica é como nuvens, quando as olhamos em determinado momento estão com uma certa configuração, minutos depois podem ter outra, bem diversa. Ainda acho que foi uma irresponsabilidade, mas sempre fui tentado por desafios impossíveis, como derrubar a ditadura militar no Brasil, em 1966, a partir da FAFIPE (antiga Faculdade de Filosofia da Universidade de Pernambuco, onde fiz meus primeiros estudos universitários).
O pior (ou melhor, depende do ponto de vista) é que desenhei algo de que meus colegas gostaram e isso os levou a me convidar, inúmeras vezes, até recentemente, a trabalhar em cenários e planejamento estratégico, em boa parte do tempo na bela companhia do Sergio Buarque. Como disse, não tinha a menor ideia do que deveria fazer. Ao contrário do que dizem os bons consultores, eu não tinha nenhuma luz no fim do túnel, não tinha a menor ideia do produto que deveria entregar seis meses depois, em dezembro de 1987. Aceitei também porque estava com tempo livre, recém-chegado à UnB, onde deveria passar dois anos, participando da Comissão de Acompanhamento da Constituinte que Cristovam Buarque, então reitor, tinha criado, e que era dirigida por um antigo deputado federal, gaúcho, que depois seria vice-governador do seu estado. Com tempo, e precisando de dinheiro, o convite caiu bem.
Na época (e mesmo hoje) era fã de Antônio Gramsci, pensador marxista italiano muito interessante. Minha paixão era tão grande que havia mesmo estudado italiano (ainda em Moçambique, onde vivi três anos, entre 1976-1979), e passado um mês em Roma, para ler os Cadernos do Cárcere, obra central de Gramsci, no original. Em 1984 havia publicado um artigo sobre Hegemonia em Gramsci, na revista Ensaios, que angariou alguns poucos elogios de intelectuais mais velhos, que eu admirava. E mereceu uma citação em artigo de Carlos Nelson Coutinho, por quem tinha grande admiração por seu livro a respeito da democracia como valor universal.
Por esta razão, que nada tem a ver com o convite, nem com o trabalho, é que, depois de alguns ensaios de cenários baseados em possíveis trajetórias de partidos e políticos, em plena transição política, com Sarney presidente, todos frágeis e ridículos aos meus olhos, é que caí, por acaso, no conceito organizador dos cenários, o conceito de hegemonia. Não no sentido pejorativo que hoje normalmente tem, mas no sentido original de Gramsci, como o exercício do poder pela persuasão e adesão de parceiros. Prevalência intelectual e moral de uma determinada força política-ideológica, cuja visão de mundo, traduzida em políticas públicas, ganhava a adesão da maioria dos cidadãos de uma sociedade, atribuindo-lhe coesão e rumo.
Também na época estava estudando e publicando sobre a transição política brasileira. E, em particular, havia escrito, na época, um artigo caracterizando a situação brasileira em 1986, como marcada pela ausência de hegemonia, momento em que o velho já morreu, mas não foi enterrado, e o novo nasceu, mas ainda não tem forma identificável. E que persistia, às vésperas da Constituinte, da qual não se tinha certeza sobre os seus resultados. Aliás, em relação ao regime político apenas em 1992, com o plebiscito que deu vitória ao Presidencialismo, é que teríamos a resposta.
Pela conjunção de um e outro trabalho tomei a ausência de hegemonia como o ponto de partida e o ingrediente central de criação de cenários, partindo da técnica conhecida como árvore de decisão, porém, adaptada aos meus objetivos. Assim, a primeira hipótese de futuro era de que a ausência de hegemonia persistiria e, então, iniciaríamos uma trajetória um pouco à Argentina. Este era um dos países mais desenvolvidos no mundo no final do século XIX, e percorreu o século XX em declínio, intermitente e suave, até perder sua importância. Nesta primeira hipótese teríamos momentos sem hegemonia de qualquer força politico-ideológica relevante, intercalado por momentos de hegemonia frágeis. A segunda hipótese nasceu do conhecimento que tinha em torno dos debates ideológicos mundialmente relevantes sobre o aparente declínio do socialismo e da socialdemocracia, e a ascensão do novo liberalismo com Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan nos Estados Unidos. Dessa forma, tinha em minha frente três forças de envergadura, a que somei uma mescla que me parecia plausível. Isso me permitiu construir mais três cenários políticos para onde poderíamos caminhar: liberalismo, socialdemocracia, social-liberalismo. A hipótese do socialismo me parecia impossível, apesar do surgimento do PT e dos ressurgimentos dos partidos comunistas. Com isso, fiquei com quatro cenários, que de certa forma foram percorridos entre 1988 e 2010. Trajeto que não havia pensado como possível.
O desenho dos cenários que fiz pareceu consistente aos meus colegas, e com a vitória de Collor de Mello, representando uma força liberal inesperada no Brasil, ganhei prestígio[2]. E o pior, comecei a achar que perscrutar o futuro tinha algum interesse, e recompensa. Era como se eu tivesse acertado o futuro. Ledo engano, mas de que na época não me dei conta. Ou, que levei algum tempo – e tentativas frustradas – para me dar conta de que na previsão do futuro o mais importante é o imprevisível, a lógica do Cisne Negro, como diz Nassim Nicholas Taleb (2008). Ou o “desconhecido desconhecido”. Aquilo que não esperamos.
Essas aventuras não me levaram à conclusão que não deveria mais me meter a estudar o futuro – atualmente ofereço uma disciplina intituladaProspectiva e Sustentabilidade– mas que devo tratá-lo com mais respeito, e mais modéstia[3]. E, sobretudo, com mais humor. Também não significa que devemos abandonar o mundo perigoso das previsões. Silver (2013) mostra como os campos do conhecimento, nesta área, têm resultados distintos. Enquanto a meteorologia avançou enormemente, com cerca de 70% de acerto em períodos de 24 horas, a economia continua um desastre. Estranhamente, porém, apesar disso, conservam-se a arrogância e a ignorância dos economistas e previsores das finanças. Pegos, cotidianamente, no erro, e alguns catastróficos. Aliás, o acerto é a exceção, aparentemente.
A previsão é um sonho dos cientistas sociais, desde o século XIX, com Auguste Comte, um dos pais da sociologia e do positivismo. No entanto, na medida em que aumentamos o conhecimento sobre a sociedade esse sonho torna-se mais distante, e nossa ignorância dos fenômenos sociais, maior. Somos, portanto, mais impotentes. Exatamente porque a complexidade social aumenta e nossa mente não tem qualquer treino para uma tarefa desta natureza. A previsão, porém, é uma atitude cotidiana que temos, com acertos e erros. Quando vamos atravessar uma rua prevemos o tempo entre o veículo e a travessia da rua. Com este cálculo, decidimos atravessar ou esperar. Da mesma forma organizamos nossas férias, nossa entrada na Faculdade, e assim por diante. Ou seja, mesmo sendo a previsão frágil e frequentemente errônea (não no caso da travessia da rua), mantemos o costume. Aliás, necessitamos dele.
Vivemos, portanto, entre a necessidade de prever, inclusive para nos dar a possibilidade de bem dormir e programar férias, e a incompetência em prever. Uma tensão permanente que só pode ser enfrentada na displicência. Ou seja, sabendo que estamos errando, por falta de informações, pela qualidade das informações, pela imprevisibilidade dos eventos, mas também pelas características de nosso cérebro (forte atração pelos fatos e narrativas[4], e fraca apetência para as abstrações) e nossa forma de pensar, (em caixas pré-fabricadas) aprendida em escolas castradoras. Mas também pela pouca habilidade de viver na incerteza, na fluidez. Enfrentar o futuro com displicência significa mais do que a consciência dos limites de nossos erros e a persistência dos erros significa dar espaço para o surgimento do cisne negro, estar aberto ao imprevisível.
Todos estes prolegômenos para dizer que sou fanático por estudar o futuro, sabendo que é uma tarefa impossível, mas sempre treinando a displicência (não sei se é esta a palavra certa, mas é algo que quer dizer sem arrogância, sem certezas, sem levar demasiadamente a sério, e sempre aberto a ver o novo, por isso mesmo leio muitas coisas que nada tem a ver com o meu trabalho, e adoro conversar com pessoas diferentes e divergentes – , pelo simples fato de que elas sempre veem aquilo que não vejo, pouco importa se certo ou errado). Considero, portanto, uma necessidade e um divertimento.
Por isso gosto de imaginar como vão se desenrolar as eleições presidenciais deste ano, como também quais as consequências das learning machines ou Inteligência artificial sobre nosso futuro no próximo meio do século. E articular fatos/narrativas e abstrações.
Por exemplo, há uma tensão política no País evidente, e um desgaste das instituições democráticas visível, embora menos evidente. Para alguns, mais fanáticos, já ingressamos em um regime de exceção, porque o impeachment foi um golpe e o Lula é um preso político. Alguns chegam a fazer uma analogia entre 2018 e 1968[5]. Para dizer o menos, pouco consistente. Simultaneamente, há um declínio, constatável pelos institutos que se dedicam a estudar o assunto, da democracia no mundo. Não apenas porque se reduz o número de democracias consideradas plenas e aumentam os regimes caracterizados como autoritários, mas também pelo aumento do prestígio destes países em comparação aos países mais democráticos, quando se toma em consideração parâmetros como crescimento econômico, redução da pobreza e aumento da qualidade de vida de seus habitantes.
O declínio da democracia é um fenômeno mundial que tem correspondência no espaço nacional, embora pudesse isso não ocorrer, pois, às vezes acontece que um determinado fenômeno mundial toma, no Brasil, uma direção contrária. Por exemplo, enquanto o mundo conhecia uma relativa estagnação econômica, nos anos 1970, o Brasil conhecia o “milagre econômico”; ao inverso, o mundo voltou a crescer na década de 1990, e o Brasil começou a patinar. Porém o Brasil, na questão democrática, faz o mesmo trajeto do mundo, pois, reduz-se o índice democrático[6]do País deste 2011. Ocupávamos o 47o, hoje ocupamos o 49o, segundo Economist Intelligence Unit Democracy Index.
Nas eleições deste ano já temos duas dezenas de candidatos, o que lembra as eleições de 1989, com a diferença de que aquelas eram eleições solteiras. Além do que, eram as primeiras eleições presidenciais depois de 28 anos. Apenas os homens e mulheres com mais de 47 anos haviam tido experiência semelhante, em 1960, e não existia a polarização que temos hoje, nem o combate, e os escândalos, a corrupção, nem o desgaste da política e do Parlamento, e os movimentos erráticos, e catastróficos, do STF.
O período ainda não é propício a grandes previsões, as pesquisas de intenção de voto, ademais de sua imensa e reconhecida fragilidade preditiva, dizem pouco. Se as regras estão definidas, não o estão os jogadores que vão entrar em campo, na seleção. Há apenas pré-candidatos. Na linguagem futebolística, Tite ainda não se pronunciou. Alguns já tem lugar garantido, como Marina, Ciro e Álvaro Dias, pelo que tudo indica. Outros quase, como Bolsonaro[7]. Outros, nem tanto, como Alckmin, e outros é quase certos que estarão fora como Temer ou Lula. Alguns terão alguma chance, como Ciro, Marina e Bolsonaro, se de fato forem candidatos. Outros têm chances perto de zero, como Boulos, Manuela, Aldo Rebelo e mesmo Álvaro Dias ou João Amoêdo. E outros, ainda, temos certeza que não têm qualquer chance, como Fidelis e Eymael.
Neste desenho previsível, em que Lula estará fora, o segundo turno até ontem reunia Bolsonaro, Marina e Ciro. Mas, agora parece que o cisne negro – sem trocadilho – está adentrando a sala. Nem ainda pré-candidato, o ministro Joaquim Barbosa ocupa o terceiro lugar nas intenções de voto, com Ciro, ambos com 9%.
O cisne negro verdadeiro, porém, pode ser o Lula que quase ninguém, nem a maioria dos petistas, acredita que será possível. Mas, como das instâncias superiores do Judiciário deste País pode-se esperar quase tudo, e o ex-advogado do PT será o presidente da suprema corte, não se pode garantir.
Tenho amigos, contudo, que esperam um outro cisne negro, a suspensão das eleições em face dos embates crescentes, com destruição de prédios, obstrução de ruas, avenidas e estradas, badernas nos centros das grandes cidades, assassinato de personagens importantes, e crescimento da violência urbana (no Rio, mesmo com a presença das Forças Armadas, ela continua crescendo).
Afinal, nas equações não lineares de Henri Poincaré o imprevisto tem guarida. Imagine neste país surrealista chamado Brasil.
[1]Sociólogo, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.
[2]Realimentado quando caracterizei os governos de FHC como social-liberal, e o de Lula como socialdemocrata.
[3]Uma das atividades mais interessantes é submeter à crítica dos alunos, de mestrado e doutorado, os cenários dos quais participei.
[4]Lembro-me de uma historia contada por Howard Becker quando encontrou um ex-aluno alguns anos depois de um curso que lhe tinha parecido muito positivo. O aluno imediatamente falou-lhe de uma piada que ele contara, e começou a rir. Becker perguntou-lhe sobre o conteúdo do curso. “ Ah! Não importa, mas a piada foi ótima”, e se pôs a rir novamente. Era o único que ele havia registrado.
[5]Em artigo a ser publicado na revista Politica Democrática mostro em que esta analogia é falsa.
[6]Mensurado por alguns parâmetros previamente definidos como garantia de direitos civis, participação política etc.
[7]Digo isso porque abrem-se processos de racismo e homofobia contra Bolsonaro que, como Ciro, perde-se pelas próprias palavras.
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