Foi há anos atrás. Numa aula que ministrava sobre a violência brasileira, engajei-me numa discussão com um aluno que atribuía a responsabilidade pela escalada da criminalidade no país aos defensores de direitos humanos, intelectuais, sociólogos etc. que passavam a mão na cabeça da bandidagem. Como sempre acontecia nessas ocasiões, expliquei, com uma paciência que não tenho mais, que sociólogos apenas estudam as causas da violência, e que defensores de direitos humanos não são defensores de bandidos, mas do estado de direito; e que quem defende bandido são seus advogados, de acordo com esse mesmo estado de direito. Mas meu aluno, impermeável aos meus argumentos, falou mal do Estatuto da Criança e do Adolescente e, para meu espanto, citou a canção “Meu Guri”, de Chico Buarque, como um exemplo de apologia à delinquência juvenil! 

Foi um daqueles momentos em que a gente fica estatelado, sentindo a famosa vergonha alheia. A menos que fosse um sujeito de má-fé, era um simplório no sentido técnico da expressão: alguém mentalmente incapacitado para entender os sentidos de um texto além do que está literalmente escrito. Recordo rapidamente que “Meu Guri” incorpora a voz de uma pobre mãe brasileira (provavelmente favelada, provavelmente preta) que tem seu “guri”, um afanador de corrente de ouro, bolsa, chave, terço, documentos e mesmo “um patuá”, executado pela polícia ou pelo esquadrão da morte – pouco importa. E, falando para nós outros (“moço”, diz ela como Riobaldo), bem-intencionados defensores dos direitos humanos, a mãe manifesta sua surpresa com nosso “alvoroço demais”. Para ela, como mãe, ele “tá lindo de papo por ar”, com “venda nos olhos, legenda e as iniciais” – como prescreve, aliás, o ECA. E mais: como o sonho do seu “guri”, desde a “meninice”, era se tornar manchete de jornal, ele conseguiu: “eu não disse, seu moço /ele disse que chegava lá”. E chegou.

Espantou-me a incapacidade de ler essa obra-prima (talvez a mais lancinante) da canção brasileira como ela deve ser lida: pelo avesso. Como devem ser lidas as grandes sátiras. Em 1729, o irlandês Jonathan Swift publicou um panfleto famoso, “Uma Proposta Modesta”, sugerindo uma solução original para resolver o problema da fome no seu país, então um dos mais miseráveis da Europa: assim que os bebês pobres chegassem à idade de um ano, as mães poderiam vendê-los a “pessoas de qualidades e posses” para serem abatidos e servidos à mesa. Assados ou cozidos, eles seriam um petisco “delicioso e salutar”. Num cúmulo de crueldade, recomendava que no último mês de cria eles fossem bem amamentados, de modo que fiquem “bem cheinhos”. Houve, na época, simplórios que achassem que Swift estava falando a sério. E, em vez de se chocarem com a fome dos irlandeses, se chocaram com a “Proposta” para acabá-la. 

Lembrei-me da fábula de Swift quando comecei a escrever este texto. E se me lembrei do diálogo antigo com o meu aluno, que tinha esquecido completamente, foi porque li, sem a princípio acreditar, que Chico Buarque havia decidido não mais cantar “Com Açúcar, com Afeto”, para não contrariar as feministas. A canção, outra vez relembrando rapidamente, desta vez incorpora a voz de uma mulher submissa que fica em casa esperando pelo companheiro que “diz que é um operário”, que “sai em busca do salário”, mas “qual o quê!” “No caminho da oficina / há um bar em cada esquina”, onde o safado, em vez de ir para o batente, fica “discutindo futebol” e “olhando as saias / de quem vive pelas praias / coloridas pelo sol.” À noite, embriagado, volta para sua amélia; e ela, “ao lhe ver assim cansado / maltrapilho e maltratado”, como vai se “aborrecer?” Como uma boa dona de casa, assume o papel que era o seu: “Logo vou esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro meus braços pra você”. The End.

Não sou mulher, mas sou, tanto quando é possível um homem ser, feminista. Minha mulher, obviamente, é mais feminista do que eu, já pelo simples fato de ser mulher. Mas tanto ela, quanto outras amigas nossas, ficaram surpresas com a decisão de Chico, sem entender. Fui me inteirar do assunto. O caso aconteceu no recém-exibido documentário sobre Nara Leão – de quem, aliás, partiu a sugestão de que ele escrevesse para ela uma canção do tipo “Amélia”. “Ela encomendou e eu fiz”, explica Chico, e ainda completa: “gostei de fazer”. (Todos nós gostamos, porque o resultado foi mais uma inesquecível canção brasileira dos anos 60.) Depois pondera que as feministas “precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão”. Mas assim mesmo lhes dá a mão à palmatória:  “As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas”, e conclui: “Eu não vou cantar ‘Com açúcar e [sic] com afeto’ mais”.

Tudo bem. Ninguém é obrigado a cantar o que não queira, seja por que razão for, e em nenhum momento Chico falou mal da música (muito pelo contrário). A coisa, aliás, me pareceu ter sido dita com uma naturalidade não planejada, no ritmo espontâneo de uma conversa, nada parecido com um auto-cancelamento – se posso me permitir esse bizarro neologismo – militante. Mas aí é que está. A naturalidade mesma com que Chico fala me chama a atenção, pois é como se tivesse tornado natural, quase um ato-reflexo, estarmos o tempo todo exibindo atestados de boa-conduta em relação a essas cobranças identitárias. O fato de o atual presidente da república, no seu indigno discurso de posse, ter prometido libertar o país do “politicamente correto”, nunca me inibiu de dizer o que acho da “correctness”: um pé no saco!

Chico Buarque continua sendo para mim um dos mais notáveis poetas brasileiros de todos os tempos. Tanto que, rompendo um jejum de uns vinte anos (pois não gosto de ir a shows), fui assisti-lo na sua última turnê em 2018, aqui em Recife. Se ainda fizer outra e passar por aqui, irei vê-lo de novo. Mas dessa vez vou tentar juntar um magote de feministas dispostas a escandir assim que ele apareça no palco: 

Com açúcar / com afeto / canta! 

Com açúcar, com afeto / canta! 

Canta! Canta! Canta!

Mas se ele não cantar, tudo bem: aplaudirei de pé do mesmo jeito.