MKM Museum Küppersmühle Extension / Herzog & de Meuron. Image © Simon Menges

MKM Museum Küppersmühle Extension / Herzog & de Meuron. Image © Simon Menges

As exposições de arte imersivas estão na moda, graças naturalmente às novas tecnologias digitais. Todos nós já conhecemos esse novo uso do adjetivo, antes mesmo de os dicionários o oficializarem. E esse uso mexe com todos os nossos sentidos, quebrando a predominância da visão, cujo império tem sua razão de ser em nossa própria fisiologia humana. Basta dizer, ecoando a neurociência, que um terço do cérebro é dedicado à nossa maravilhosa função ocular. 

Entremos, ainda que apenas na qualidade de leigos, na casa mágica da arquitetura, isso para usar uma imagem, embora com evidente reducionismo. Entremos na arquitetura com todos os nossos sentidos realmente atentos. Logo perceberemos que a arquitetura é imersiva pela própria natureza. Tão imersiva a ponto de esquecermos que ela nos envolve. Todavia, para a maioria das pessoas, é uma grande esquecida. Quanta ingratidão! Mas ela não está sozinha: no mundo atual, como outros já assinalaram, há um tremendo desconhecimento científico, ou seja, da ciência que “se oculta” no nosso cotidiano mais prosaico. A maioria de nós não faz a menor ideia de como funciona uma televisão, um micro-ondas, um ar-condicionado ou uma simples válvula da descarga. 

A arquitetura tem uma invisibilidade cotidiana. Muita gente imagina que só existe a monumental, ou a histórica, ou aquela que se impõe à vista por um motivo temático ou excêntrico. Ou seja, a arquitetura não teria mais que uma visibilidade pitoresca. De uma forma ou de outra, as pessoas se deparam com algo que ignoram quase totalmente, à exceção de certos momentos em que “precisam” saber qual estilo arquitetônico está presente numa determinada edificação: se o gótico, se o clássico, se o neoclássico, se o brutalista, etc.

Em 1996, o mundo da arquitetura vibrou com o aparecimento de um conciso ensaio intitulado “Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos”. Seu autor é o grande arquiteto  finlandês Juhani Pallasmaa (1936–). Escrito numa linguagem simples e fluente, o sucinto ensaio tornou-se um clássico. Penso que, embora se trate de um texto tão teórico quanto erudito, também não deixa de ser uma suave introdução, senão à arquitetura, pelo menos a um modo de percebê-la (nesse sentido, em minha modesta opinião, muito mais palatável que o conhecido livro de Bruno Zevi, “Saber ver a arquitetura”). Nada de jargão, mas de sensibilidade filosófica e literária. Nele encontrei autores de minha convivência, a exemplo de Proust, Bachelard, Wittgenstein, Rilke e Walter Ong. 

O empenho de Pallasmaa é delicado: deslocar uma visão dominante e focal para uma visão “afocal”, “periférica”, pois “A visão focada nos põe em confronto com o mundo, enquanto a visão periférica nos envolve na carne do mundo”, o que exige a presença de todos os outros sentidos. Logo de saída é assertivo: “Uma obra de arquitetura não é experimentada como uma série de imagens na retina, e sim em sua essência material, corpórea e espiritual totalmente integrada”. Por isso, nos lembra que “A perda de foco pode liberar os olhos de sua dominação patriarcal histórica”. É preciso ir além das questões de percepção visual… Não por acaso, pontua a certa altura: “A crescente popularização do vidro refletivo na arquitetura reforça a sensação de sonhos, de irrealidade e de alienação. A transparência opaca e contraditória desses prédios reflete nosso olhar, devolvendo-o sem afetá-lo ou deslocá-lo; somos incapazes de ver ou imaginar a vida que se desenrola por trás de suas paredes. O espelho arquitetônico, que devolve nosso olhar e duplica o mundo, é um recurso enigmático e assustador”.

Em busca do sentido do tato e, por assim, de mais humildade para a visão, o teórico finlandês recentraliza o corpo humano, afinal “[…] nossos corpos e movimentos estão em constante interação com o ambiente; o mundo e a individualidade humana se redefinem um ao outro constantemente”. E voltando, com mais ênfase, a expor sua tese, sentencia: “Toda experiência comovente com a arquitetura é multissensorial […] Em vez de mera visão, ou dos cinco sentidos clássicos, a arquitetura envolve diversas esferas da experiência sensorial que interagem e se fundem entre si” [grifos meus]. Assim ocorre no nível acústico, no nível do tato, no nível olfativo, no próprio sentido do paladar, como nos recorda ao citar um John Ruskin sinestésico: “Eu gostaria de comer toda essa Verona, toque por toque”…

Essa interação sensorial do corpo com o ambiente e o espaço arquitetônico debatida por Pallasmaa não passou em branco na teoria da arquitetura do pernambucano Evaldo Coutinho (1911–2007) quando, em 1970, publicou “O espaço da arquitetura”, onde, com aguda percepção, observa: “O corpo resulta ser um agente de influxos, uma fonte de ruídos, um fixador e movedor de sombras, de reflexos, fazendo as vezes de criador eventual a expensas da criação maior [o invólucro arquitetônico] que lhe previu o advento, ou, antes, se compôs tendo em consideração esse mesmo e complementar advento”.

Coutinho, ao substituir a centralidade do maciço para o vão, pôde, como que, em volutas teóricas, dedicar-se a essa interação profunda e sensorial entre o ser humano e a arquitetura. Anota ele: “Malgrado os elementos sólidos se erguerem com plena satisfação do sentido do tato, em virtude da fronteira estética há uma ‘distância’ infinita entre o muro e o espectador […]”. O vão, pode-se dizer, abre-se a criações do usuário e, de certa forma, reconfigura-se sensorialmente, ensejando uma emergência de todos os sentidos. Portanto, uma “[…] realidade aberta a quantos se encaminham à sua intimidade”. Por outro lado, Coutinho antecipa Pallasmaa ao criticar o costumeiro valor dado ao monumental (vale dizer: ao visual): “Em verdade, as histórias da arquitetura, além de consistirem em histórias de monumentalidades, esquecidas de que a obra-prima de uma época muita vez se encontra em despretensioso tugúrio, mesclam inconcebivelmente os mais díspares exemplares”, o que deriva do antigo “[…] hábito de se conceber a arquitetura estritamente como plástica, o problema do estilo prendendo-se tão só aos valores da escultura […] omitia-se o vão”.

Suponho que Pallasmaa subscreveria a observação do pernambucano segundo a qual “[…] a síntese dos sentimentos pessoais” não era tradicionalmente convocada ao espaço arquitetônico. Afrontando esse hábito, o teórico pernambucano propõe o que chamou de “participação no estilo”, pela qual “Quem ingressa no edifício barroco, barroco se faz”; no ambiente, este alguém sendo, “ao mesmo tempo, sujeito e objeto da mesma conjuntura”.

Como o finlandês em 1996, o pernambucano, já em 1970, está plenamente atento ao encontro de todo o corpo com a realidade arquitetônica, na qual “[…] o contexto, oriundo de tantas parcelas, como a luz, a sombra, o ruído, o silêncio, a temperatura, isto é, o espaço interior do edifício […] só se deixa representar pela palavra lírica”. Assim, não sem motivo, Pallasmaa recorre a Proust, Rilke, Borges e Junichiro Tanizaki, invocando as imagens e metáforas de tais autores para enriquecer o seu trabalho conceitual.

De fato a “conversa” entre literatura e arquitetura, tão presente em ambos os autores, oferta ao espaço estético arquitetônico uma atenção condizente com sua natureza. Nesse sentido, o genial pernambucano alude a Marcel Proust como autor exemplar, pois este “[…] mostra abundantemente o valor da imagem quando se pretende transferir a outrem uma sensação que os recursos conceituais por si sós não atingem”. Proust, como diz Coutinho, confere, em sua obra, um  “verdadeiro sortilégio cênico” à arte da arquitetura.

Antecipando-me a possíveis equívocos, registro que as rápidas observações acima não têm a pretensão de esgotar o ensaio do arquiteto e  teórico finlandês e, muito menos, as ideias de Evaldo Coutinho em seu longo e denso ensaio “O espaço da arquitetura”. O que intentei mostrar foi apenas alguns pontos em que o autor pernambucano, por assim dizer, prenuncia algumas percepções de Juhani Pallasmaa ou com elas tem alguma afinidade, o que pode eventualmente ensejar análises mais aprofundadas. Modestamente me contento em ter aproximado dois grandes teóricos, que beberam na literatura e na filosofia alguns dos segredos que animam o eterno diálogo entre a arte enquanto produção ontológica e o ser humano, seu criador.