As mobilizações planetárias ocorridas no ano de 1968 ainda suscitam indagações sobre as motivações mais profundas que empolgaram os jovens de países que atravessavam conjunturas econômicas e políticas bem diferentes. Como uma corrente, o mundo assistiu a explosões de descontentamento e de desejo de mudanças que se espalharam, de repente, sem nenhum centro de coordenação e sem contar com a velocidade atual das várias mídias. Mesmo que parecesse um ciclo de radicalização política com base em um ideário socialista radical, o que ocorria, de verdade, era uma sinergia mais ampla, muito além das ideologias, ou seja, estava-se diante de uma verdadeira ruptura geracional que levava a uma quebra de todos os valores estabelecidos. É como se a geração do Pós-Guerra desse um alerta de que não se contentaria com a naturalização das contradições socioculturais, nem mesmo com as mudanças graduais que vinham acontecendo no mundo após o final do segundo grande conflito mundial.
Para os protagonistas dos movimentos, um outro modelo alicerçado em grandes mudanças deveria abranger tanto o ideário acordado pelo capitalismo como pelo socialismo. O poeta tcheco (depois presidente de seu país) Vaclav Havel (Observateur critique d’une révolution, Hors-Série, Le Monde 2, mars – avril, 2008) afirmou para o Le Monde que a sociedade estava fascinada por um símbolo da modernidade que vinha sendo historicamente reprimida. Ainda segundo o teórico da Primavera de Praga, na “Tchecoslováquia o movimento detestava as ideologias, o que estava sendo questionado era o totalitarismo do chamado socialismo real”. Para Havel, o movimento de estudantes da Primavera de Praga não acreditava na chamada crise revolucionária, muito menos nas teses sobre a revolução. Os estudantes não utilizavam a palavra socialismo, isso não significava nada, não tinha conteúdo. Esta jovem geração se recusava a carregar bandeiras, ela detestava as construções ideológicas.
O sociólogo Edgar Morin, considerado o interprete mais representativo de 1968, começa uma entrevista em 2008 sobre os legados de 1968 afirmando “tudo continua como antes, mas nada é parecido com antes” (Magasin Littéraire, avril – mai, 2008). Segundo o autor, passou a existir uma outra maneira de ver a si mesmo, de olhar a vida e a sociedade. Tomando como referência a França: é como se a alma do movimento fosse uma simbiose entre o “Marxo-libertaire” – traduzido na espontaneidade do grupo 22 de março, no qual se misturava de maneira bem confusa, mas se assemelhava muito – e a memória do socialismo utópico do anarquismo, dos trotskistas, tudo para completar a surpresa das forças da ordem e do Partido Comunista. No entanto, para a grande massa mobilizada que escrevia nos muros de Paris “é proibido proibir”, o importante mesmo era “reinventar a vida”, enquanto o Partido Comunista corria em desespero para repor as coisas no lugar, muito embora o secretário geral do PCF, um conhecido stalinista, anunciou que estava prestes a formar um governo provisório de gestão, proposta que tinha a desconfiança da juventude rebelada.
Nas ocupações, em um primeiro momento, as grandes centrais sindicais perplexas conseguiram retomar o controle e obtiveram do governo um acordo de melhorias das relações de trabalho, que tirou o movimento do comando da nova vanguarda operária, que tinha simpatia com a revolta estudantil. Isso fez Daniel Cohn-Bendit afirmar: “Nós queríamos mudar o mundo, mas os operários queriam apenas melhorar suas condições de vida” (Magasin Littéraire, n.13, avril – mai, 2008).
A interpretação do choque geracional que levou às rupturas culturais e às reivindicações societárias é, atualmente, predominante, embora algumas poucas análises ainda falem de um movimento político motivado por convicções revolucionárias. Na época, talvez, esse segundo enfoque tenha subido à cabeça de uma pequena vanguarda, a qual, de costas para a sociedade. igualou a democracia parlamentar com o fascismo e desencadeou um processo violento de ataques armados contra pessoas e instituições na Itália e Alemanha, isso com as instituições democráticas em pleno funcionamento. Também no Brasil, parte da vanguarda confundiu a aspiração da maioria dos estudantes, de liberdade, de lutas por diretos, ou o desejo de se livrar dos preconceitos patriarcais, com um projeto de revolução anti-imperialista, ou pelo socialismo. Com o aguçamento da repressão pela edição do AI- 5 e do Decreto 477, a grande maioria estudantil indicou que a luta pela liberdade e contra a ditadura não significava a renúncia a seguir a sua trajetória de vida, profissional e familiar
A quem acompanhou o despertar das mobilizações no período mencionado, deu para perceber que o novo fenômeno da contestação já despontava em 1965/1966, quando o governo militar começava a decepcionar as classes médias rural e urbana, que foram, em parte, sua base de apoio social na deflagração do Golpe Militar. Em um capítulo que escrevi para o livro “O Sonho é Realidade” de autoria de Galba Gomes (2016), contemporâneo da militância estudantil em Fortaleza, mostrei que existia o sentimento de mudança que corria na geração estudantil pós-1964, que se mostrava ansiosa para superar o tradicional mandonismo do poder tradicional e se tornar protagonista de um novo tempo. O ex-líder estudantil Wladimir Palmeira em uma entrevista para o livro “Eles só queriam mudar o mundo”, de Regina Zapata e Ernesto Soto, destaca também essa expectativa de ruptura cultural, mesmo no ambiente mais cosmopolita do Rio de Janeiro. Para ele, primeiro ocorreu uma revolução nos costumes, para depois chegar à política. A marcha da História criou outros conceitos, que passaram pela crítica radical a tudo o que existia. A crítica do passado preencheu toda a razão de ser da nova geração. Se o próprio socialismo ficou ultrapassado, tudo desabou e nada se sustentava (ZAPATA; SOUTO, 2008).
Em entrevista recente para o jornal Estado de São Paulo (13/05/2018) um dos ícones de 68, Daniel Cohn-Bendit, no momento em que a revolta completa 50 anos, demonstra que o que possibilitou as grandes manifestações simultâneas em vários países, vivendo diferentes conjunturas, foi a busca de novos valores culturais. Afirma o ex-deputado do Parlamento Europeu que, até o momento dos protestos contra a guerra do Vietnam, nas manifestações da Primavera de Praga e no Maio de 68, os estudantes viviam sujeitos a valores patriarcais. Então, para eles, lutar por valores e liberdades individuais era mais importante do que a revolução política. Nessa direção, completa: “Foi uma revolução cultural bem sucedida e uma revolução política fracassada”. Na verdade, fracassada se olhada do ponto vista clássico da tomada do poder, na ótica das esquerdas, o que, segundo Dany, o vermelho, felizmente não aconteceu. Na sequência da História, no entanto, foi seguida de mudanças políticas significativas, com a incorporação de diretos e a modernização das instituições educacionais e fabris. No plano cultural, então, a sociedade se apropriou das mudanças radicais e de novas aspirações, sem esperar pelo Estado. Talvez seja por essa combinação de mudanças universais, graduais ou radicais, que se explica porque os acontecimentos de 1968 ainda são tão lembrados e discutidos, em que pese a humanidade passar hoje por um processo bem diferente das ideias libertárias de 1968.
*Sociólogo, pesquisador do Centro Josué de Castro, membro do Grupo Ética e Democracia
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