A entrevista de Ciro Gomes no programa “Roda Viva” foi uma peça brilhante de ilusionismo, misturando real conhecimento e experiência com uma descarada manipulação de dados, e uma linguagem demagógica, com floreio populista. Ele promete revogar tudo o que o atual governo Michel Temer conseguiu aprovar no Congresso Nacional: o teto dos gastos públicos, a reforma trabalhista, e o que mais achar pelo caminho, explorando o enorme desgaste político do presidente.
Quando se trata da Previdência Social, o candidato Ciro Gomes reconhece a existência do déficit, e chama a atenção, corretamente, para a enorme desigualdade existente entre os benefícios do INSS e da previdência do setor público, criticando os chamados “direitos adquiridos”, que servem para esconder privilégios. Esta, a passagem mais lúcida do entrevistado no debate do programa “Roda Viva”, embora Ciro não avance muito em relação ao teor da reforma necessária, nem sequer fale na definição de uma impopular idade mínima. Ele defende teses, algumas corretas, como a transição do atual sistema de repartição (com um valor máximo dos benefícios) para o modelo de capitalização, que vincula os benefícios ao cálculo atuarial, mas termina sugerindo um plebiscito para discutir e decidir sobre questão de tal complexidade.
O ponto alto da entrevista de Ciro Gomes foi a sua proposta de acabar com o teto dos gastos e substituí-lo por um enganador e impreciso “teto da dívida”, numa mensagem para agradar os ouvidos sensíveis do eleitor e, principalmente, das viúvas do PT-Partido dos Trabalhadores e de Lula. O candidato entrevistado tenta enganar, com a afirmação mentirosa de que o teto dos gastos definido na Emenda Constitucional 95/2016 congela por 20 anos os recursos alocados em saúde e educação. Ele sabe que não. A emenda define um limite para o total das despesas primárias, e não para cada um e todos os itens do orçamento. Os governos não estão obrigados a congelar os resursos alocados na saúde e educação. Podem até elevá-los, desde que reduzam despesas em outros itens, na mesma proporção.
Nada desagrada mais o eleitorado que a ameaça de uma redução dos gastos em saúde e educação. E nada pode soar mais popular (populista, na verdade) que a promessa de criação de um teto da dívida pública. Teto este que, segundo o candidato Ciro Gomes, livraria o orçamento da União do teto dos gastos e, supõe-se, permitiria voltar a gastar à vontade. Ciro não explica se o teto limitaria os compromissos anuais (dívida vincenda), ou o valor total do endividamento do Estado. E não explica, porque existe um trade-off entre a dívida anual e o tamanho do estoque: o que se deixa de pagar a cada ano vai elevar o estoque da dívida e, ao contrário, para que esta não suba acima de um limite (que, supostamente, ele definiria) se terá que resgatar a dívida vincenda. Em qualquer das hipóteses, o governo teria que gerar superávit primário, o que parece difícil, diante do tamanho da crise fiscal e do crescimento inercial das despesas primárias.
Na verdade, quando fala do teto dos compromissos anuais, Ciro teria que começar reconhecendo que o governo atual não está pagando nada. O atual teto de gastos com um déficit elevado significa, rigorosamente, um limite zero de pagamento da dívida, simplesmente porque o governo não tem superávit primário (o que sobra depois das despesas primárias). Resultado: aumento do estoque de endividamento. Assim, se o limite anual definido por Ciro for maior que zero, o seu governo estaria sendo mais “generoso” com os credores, esses perversos “rentistas”, do que o “governo golpista” de Temer.
Mas, se o teto que ele pensa for um limite para o endividamento total, o seu eventual governo estará obrigado a resgatar anualmente parte dos juros e do principal de títulos vincendos (não poderá rolar os compromissos anuais). Assim, a não ser que aposte em um desastroso calote, o governo teria que produzir todo ano um superávit primário suficiente para liquidar os compromissos da dívida (ou, pelo menos, a partir de um certo limite, que estaria definido pelo teto do endividamento). Ótimo. Mas teria que apertar as contas públicas já em frangalhos, ou seja, reduzir as despesas primárias. Alguém teria que perguntar quais as despesas primárias que ele pensa cortar, lembrando a rigidez do orçamento, principalmente de itens como a Previdência Social, que já compromete mais de 40% das despesas primárias.
Se a proposta canhestra de teto da dívida mostra a habilidade ilusionista do candidato do PDT, ele se superou na entrevista, quando, questionado sobre a Venezuela, defendeu (timidamente, é verdade) o presidente Nicolás Maduro, e classificou a oposição de “fascista, neonazista, vendilhã” e outros adjetivos do seu arsenal de agressões. É, no mínimo, uma inversão de conceitos e enorme desconhecimento de História. O fascismo tem como característica, além de uma liderança carismática (coisa que Maduro, certamente, não é), o uso de grupos armados para atacar manifestantes e opositores, como as milícias bolivarianas, semelhantes às tropas de assalto do nazismo alemão.
Com palavras de efeito e promessas enganadoras, Ciro Gomes esquece a aritmética e ignora a História, manejando com habilidade as perigosas ferramentas do ilusionismo populista. A combinação contraditória de argumentos técnicos e manipulação demagógica talvez seja sua principal vantagem eleitoral. Mas constitui motivo suficiente para uma séria preocupação com a eventualidade da sua vitória no pleito presidencial de outubro.
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