A mais importante eleição este ano acontece no domingo 14 de maio, segundo o “The Economist” (04/05/2023). Na Turquia. De fato, a política do país que controla o Bósforo e o acesso ao Mar Negro repercute nas relações com os Estados Unidos e a OTAN, em que é um aliado controverso sempre às turras, importa nas barganhas com a União Europeia e a Rússia, reflete no tabuleiro volúvel do Oriente Médio, e reverbera em qualquer nação em que há um líder populista autocrático no poder ou tentando chegar lá. 

Pela primeira vez nos 20 anos em que controla o governo, Recep Tayyip Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) enfrentam uma oposição com alguma chance de vitória. Erdogan tornou-se Primeiro Ministro em 2003 e desde 2014 é Presidente centralizador graças a uma mudança na Constituição que ele mesmo articulou. Em junho de 2018 ainda ganhou sua reeleição, apesar da recessão, com partidos de oposição divididos, centenas de opositores presos e milhares ameaçados, e um país já sem liberdades civis. Dessa vez, ao fim do seu segundo mandato presidencial de 5 anos, não está à frente nas pesquisas de opinião, e tem aparecido nessas pesquisas 1 ou 2 pontos percentuais atrás do opositor Kemal Kiliçdaroglu, candidato da Aliança da Nação, uma coalizão de seis partidos que inclui o Partido Republicano do Povo (CHP). CHP, de tendência social-democrata, é o partido do popular prefeito de Istambul Ekrem Imamoglu, eleito em 2019, e que agora é o principal cabo eleitoral de Kiliçdaroglu, que é o presidente desse mesmo partido CHP. (Analisamos as manobras de Erdogan para impedir a vitória de Imamoglu, em “Turquia: e Istambul deu o troco a Erdogan…” revistasera.info 28/01/2019. Ali também é evidente o caráter ditatorial do governo do AKP.) 

Killiçdaroglu é um economista de 74 anos que de carismático não tem nada, sua carreira é burocrática, e os partidos coligados demoraram até quase dois meses antes do dia da eleição para chegar a um acordo sobre seu nome. Além disso, há a questão religiosa. Ainda na eleição de 2018, apesar do país em recessão e uma centena de jornalistas presos, Erdogan ganhou de lavada entre muçulmanos fundamentalistas. Kiliçdaroglu é da minoria Alevi, o CHP moderou sua insistência no secularismo, mas os muçulmanos fundamentalistas continuam gratos à “proteção” dada por Erdogan, e o AKP já andou atribuindo ao oposicionista desrespeito aos muçulmanos, porque teria pisado num tapete de oração islâmico. Será possível derrotar Erdogan? Ou a pergunta maior: é possível conter um retrocesso autoritário e renovar o processo democrático?

 A Aliança Nacional tem orientado sua campanha basicamente contra um governo que chama de antidemocrático e autoritário, e diz que os seis partidos unidos em sua diversidade querem mostrar que, apesar da pressão constante do partido AKP para silenciar qualquer oposição, é possível a mudança pacífica de governo através de eleições, e nisso querem servir de modelo contra o autoritarismo mundo afora. No seu artigo-manifesto que publicou “a convite” no “The Economist” (05/05/2023), Kiliçdaroglu usou o termo “role model” quatro vezes, referindo-se à República quando fundada por Ataturk e a países batalhando o autoritarismo no Oriente Médio, na Europa, e nos vizinhos do Ocidente.

Além de liberdade e direitos fundamentais, os partidos coligados prometem eliminar discriminação e reduzir desigualdade. Kiliçdaroglu mencionou como desafios mais importantes a diferença de riqueza no mundo, a mudança climática que impacta o Mediterrâneo, e a “migração descontrolada causada pelas falhas no sistema de segurança internacional”. Desafio e tanto para quem já declarou tempos atrás que quer mandar de volta pra casa os 3,6 milhões de refugiados sírios que vivem na Turquia. Entre as considerações de uma política externa que pretende restaurar a orientação ocidental, fala em voltar ao processo para ingressar na União Europeia. Que membro da OTAN a Turquia já é desde 1952, na esteira de uma tentativa do líder soviético Josef Stalin, logo depois do fim da II Guerra Mundial, de afastar o controle da Turquia sobre os estreitos do Bósforo e de Dardanelos.

Não só democracias enfraquecem na pobreza, ditaduras também. A inflação ficou cada vez mais alta sob Erdogan. Depois da crise cambial e recessão de 2018 a economia cresceu pouco. À raiva de muitos com os preços altos e a lira desvalorizada juntou-se a dor do terremoto devastador de 6 de fevereiro, e a decepção com a incompetência do governo no socorro às vítimas. A inflação é persistente e a tese de que ela é causada por juros altos já ganhou apelido de “erdoganomics”. Erdogan efetivamente controla a política de juros, desde que nomeou como Ministro da Fazenda o seu genro. Às vésperas da eleição a taxa de inflação anualizada está em 43%, a taxa da inflação de alimentos em 68%, e o Banco Central manteve a taxa de juros em 8,5% na reunião de abril. Mas a inflação vem caindo (relacionada com políticas de sustentação da lira turca), pois estava em mais de 80% em 2022. E em período eleitoral falta de crescimento econômico é pior que inflação. Curiosamente os índices de confiança econômica subiram ligeiramente às vésperas da eleição, ainda que as perspectivas de recuperação da economia turca não existam para o curto prazo, mesmo em caso de vitória de uma oposição que promete independência do Banco Central.

Uma das grandes dúvidas é quanto se sustentam com o tempo as medidas que vem sendo tomadas para conter a desvalorização da lira turca, essencialmente usando as reservas em moeda estrangeira do Banco Central. Em 2021, no pico da desvalorização da lira, o governo criou contas de poupança especiais que reembolsam o depositante em caso de aumento da taxa de câmbio da lira em relação à moeda estrangeira. Com isso evitou que os residentes locais comprassem dólares, o que ajudou a estabilizar a lira. Mas são um risco imenso para o orçamento público em caso de desvalorização repentina. O BC turco usou para apoiar a lira até mesmo reservas adicionais obtidas por um sistema de “swaps” em que obteve dólares de investidores no curto prazo. É como se o BC obtivesse por empréstimo os dólares para suas reservas. O cálculo das reservas do BC turco não é dos mais transparentes, mas estima-se que, descontados aproximadamente 30 bilhões de dólares obtidos dos bancos locais e das filiais locais dos bancos estrangeiros nesses “swaps”, as reservas líquidas estejam no negativo, isto é, sejam efetivamente uma dívida do Banco Central. O fato é que os investidores estrangeiros abandonaram a Turquia nos últimos anos.

Erdogan está há pelo menos 10 anos usando a máquina do Estado para se manter no poder pela repressão, expurgos entre os militares, demissão de funcionários, prisão de jornalistas, entre os quais estrangeiros, e controle quase total da mídia. Controle mesmo das organizações assistenciais. Nessa linha da intimidação, partidários do AKP jogaram pedras contra o ônibus em que estava em campanha o prefeito de Istambul, Imamoglu, do CHP. Ainda mais sério, obtiveram na Justiça meses atrás a abertura de um processo contra Imamoglu por injúria ao Alto Comitê Eleitoral, impedindo assim sua candidatura.

 Mas não usa o estado só para violência. Agora, a poucos dias da eleição, Erdogan prometeu um aumento de 45% na remuneração de 700 mil funcionários públicos do escalão mais baixo. Nas últimas semanas aumentou o salário-mínimo e a aposentadoria dos funcionários públicos, reduziu o preço da eletricidade, e isentou de pagamento por um mês os consumidores de gás natural. Orgulho nacional também é bom instrumento eleitoral: apareceu na TV inaugurando uma usina nuclear construída com ajuda russa e um novo porta-aviões de construção nacional, TCG Anadolu, navío de ataque anfíbio que é o primeiro porta-aviões do mundo preparado para lançar drones. Anunciou a descoberta de uma nova reserva de gás natural no Mar Negro que está sendo explorada por Turkish Petroleum e seria suficiente para cobrir as necessidades da Turquia por 35 anos.

E, na sua mistura exemplar de paternalismo e ameaça, não esqueceu de se apresentar mais uma vez como grande combatente anti-terrorista, convocando a TV na noite de 30 de maio, para anunciar que forças turcas operando na Síria teriam morto o líder islamista do ISIS Abu Hussein al-Quarashi, e acrescentando: “Continuaremos nossa batalha contra organizações terroristas sem qualquer discriminação.” Apoio ao terrorismo é o que Erdogan sempre alega contra todos os seus críticos e opositores, acusados de “gulenistas”. “Sem discriminação” é mensagem nada cifrada aos eleitores curdos ou simpáticos a eles, ou ao Partido Popular Democrático (HDP) que sempre acusou de estar ligado às milícias curdas na Síria e baniu do Parlamento como “organização terrorista”. Esse partido não faz parte da Aliança da Nação, mas seus votos não seriam de Erdogan.

Impossível que a marca dessa eleição não seja a dor do terremoto de magnitude 7.8 que atingiu regiões da Síria e da Turquia em 6 de fevereiro. A Turquia ainda não acabou de avaliar os danos do terremoto, nem os custos humanos, nem as possíveis ramificações econômicas e sociais do desastre natural. Em zonas remotas, inclusive na fronteira com a Síria, a ajuda é pouca, ainda reina caos entre as ruínas, famílias continuam ao relento e em barracas de refugiados. Ninguém acredita na cifra de 50 mil mortos até agora ao ver que os escombros ainda estão lá: 160 mil construções vieram abaixo, hospitais, igrejas, mesquitas, estações de polícia, pontes, hotéis, túneis afundaram, estradas racharam. E aos poucos vão se revelando decisões de anos passados que talvez possam explicar a dimensão dos danos que não podem ser explicados apenas pelo fenômeno natural. Veio mais ajuda de voluntários estrangeiros que de funcionários do governo. Será preciso ler a reportagem de Suzy Hansen “in loco” na área em ruínas, “Turkey’s Earthquake Election”, 32 páginas de tristeza no New Yorker Daily, 08/05/2023, que aponta corrupção no boom de construção privada e oficial. Está bem documentado que o governo que sempre se pretendeu “pai dos turcos” foi incompetente nas ações de resgate e ajuda. Mas seria absurdo pretender atribuir eventual vitória ou derrota de Erdogan ou Kiliçdaroglu ao terremoto de 6 de fevereiro. Se nenhum dos dois conseguir metade dos votos (pois há um terceiro candidato, à esquerda, na competição), haverá segundo turno em 28 de maio.

Certo é que as sequelas ainda vão atrapalhar a votação, pois muitos eleitores entre os milhares que deixaram as regiões atingidas e buscam sobreviver em Istambul e zonas menos atingidas não conseguirão voltar para os distritos eleitorais em que estão registrados para votar. O prazo para mudar o domicílio eleitoral acabou 2 de abril e milhares não o fizeram. Uma ONG está oferecendo ônibus para os que precisam ir votar longe de onde conseguiram abrigo. Mas o transporte por terra e até voos continuam interrompidos para as zonas de desastre.