Paulo Gustavo

Freud, já adulto.

Uma amizade de 15 mil anos não é todo dia que se encontra. Não se trata de lobo em pele de cordeiro, como diz o ditado, mas de lobo em pele de cão, pois, segundo os estudiosos, em algum momento de um longínquo passado, aquele, o lobo, em uma de suas variantes, teria se transformado neste, o cão. O filósofo Hobbes, se fosse mais otimista e menos pessimista, talvez tivesse achado que o homem seria não o lobo do homem, mas o cão do homem. Graças ao cão — acredita-se — o homem primitivo pôde dormir em paz: achara sua melhor sentinela. O fato é que há milênios o cão entrou para a História e para a Literatura. É o que se percebe lendo-se o “Mahabarata”, um poema épico da antiga civilização indiana no qual o herói se recusa a entrar no paraíso se não for acompanhado pelo seu cão.

A presença do cão na literatura ocidental merece um estudo à parte. Afinal de contas, “ele é cão como nós”, como diria o escritor português Manuel Alegre em livro tão singular quanto memorável. Memorável e clássico, por sua vez, também é o conhecido O colóquio dos cães,de Miguel de Cervantes. Mais recentemente, de Kafka a Thomas Mann, passando por Machado de Assis com seu Quincas Borba (e com sua Graziela da vida real), o cão tem roído conosco o osso da nossa dura humanidade. Que o diga a cachorra Baleia, de Graciliano, no oceano cinzento da caatinga. Afinal, sempre é triste e perigoso viver num mato sem cachorro, como insinua velho dito popular.

Guardas, pastores, caçadores, salvadores, soldados, companheiros, os cães, como diria o grande neurocientista português António Damásio, são uma espécie fora de série. Não por acaso, nós os humanizamos cada vez mais. O lugar-comum de símbolo da fidelidade vai dando lugar a outros lugares até há pouco incomuns para eles. Em alguns dos países mais ricos, os cães, já devidamente banhados pelo nosso tosco verniz humano, já frequentamlugares como meios de transporte, lojas, restaurantes, universidades e hospitais.Recentemente, em Cambridge, na Inglaterra, os cães foram prescritos para mitigar o estresse dos alunos em tempos de prova. Na Europa, alguns cães aprendem até a não latir em horas impróprias, ou seja, aprendem um silêncio que nós mesmos, humanos, vamos esquecendo de guardar. Ladram no limite da boa educação e da boa convivência. Por falar em ladrar, recorde-se a boutade de Millôr Fernandes ao dizer que “Cão que ladra não morde… enquanto ladra!”. Ou esta glosa de Guimarães Rosa ao sentenciar mineiramente: “Cão que ladra não é mudo”.

No capítulo dos nomes de batismo, talvez seja oportuno apontar o óbvio: que já passou o tempo dos tradicionais e bobinhos nomes de outrora. Ao batizá-los, cada vez mais, com nomes de gente, trazemos os cães para ainda mais perto de nós. Atualmente, já se tornou comum encontrar cães com nomes de celebridades, a exemplo de Diego de Rivera, de Trotsky, de Piaf, de Freud, de Proust, de Marylin, Maria Quitéria, etc. Muitos, porém, atendem por nomes apenas humanos, sem qualquer referência a terceiros ilustres e famosos.

E os vira-latas? São um capítulo à parte, uma defesa viva do valor da miscigenação. Umareportagem da National Geographic nos conta que um sertanista, num aldeamento indígena na Amazônia, resolveu homenagear a passagem do Sete de Setembro. Os índios, que há pouco tinham perdido uma vira-lata, logo se animaram a aplaudir o gesto por um ledoequívoco: ouviram “Pendência”, o nome da querida cachorra falecida, em vez do alvo dahomenagem: “Independência”. Diziam eles que ela, Pendência, merecia, sim, toda aquela especial homenagem preparada pela equipe do sertanista...

A fidelidade e a personalidade dos cães comove a todos e, em particular, os poetas e os escritores e artistas em geral. O português Alexandre Herculano não deixou por menos e cunhou esse testemunho lapidar: “Quanto mais conheço os homens, mais estimo os cães”. Na Alemanha, comprei em Berlim um souvenir no qual se lê a emblemática sentença: “A vida sem cão é possível, mas sem sentido”. Não só na literatura, tanto em verso como em prosa, são frequentes as homenagens aos cães. Em Edimburgo, em meados do século XIX, um cãozinho da raça skye terrier chamado Greyfriars Bobby passou catorze anos aos pés do túmulo do seu dono até a sua própria morte. Hoje Greyfriars é uma bela estátua e um inescapável ponto turístico da bela capital escocesa. No Japão, em Tóquio, numa estação de metrô, uma outra estátua canina. A homenagem é para Hashiko, um akita que durante nove anos e dez meses esperou em vão, na estação de metrô Shibuya, pela volta do seu dono.

Muito haveria a ser apontado em outras artes, na mitologia, na linguagem, no cinema e na cultura em geral. Para o faro de muitos, este texto terá inúmeras lacunas. E estes muitos terãotoda a razão. Por isso, não custa dizermos que aqui fizemos apenas um breve passeio em torno do melhor amigo. É tempo de latirmos o ponto-final.