Fernando Dourado

Aposta na sorte.

Fizesse chuva ou sol, estivesse o médico no Rio de Janeiro ou fora da cidade, Neco Borborema, um paraibano com alma mineira, tinha autorização de Dr. Florisvaldo Manga para jogar por ele na Mega-Sena sempre que o valor do prêmio anunciado ultrapassasse os R$ 20 milhões. “Por menos do que isso, não vale a despesa e ficará tudo igual”, comentava sobre seu critério. Os números, Neco os tinha anotados na gaveta e depois passou até a sabê-los de cor. Aos sábados, a caminho da banca de jornais, o cliente pontual passava na lotérica para acertar a conta. A fim de aumentar suas chances, Dr. Florisvaldo apostava em sete dezenas, sempre as mesmas. Assim sendo, na maioria das vezes, a brincadeira se liquidava com modestos R$24,50 e, por correção, Neco lhe dava o canhoto para que o cliente o conferisse e visse que apostara judiciosamente, honrando a confiança do médico. Quando o sorteio já acontecera, este se limitava a agradecer a entrega do bilhete sem serventia e, com um gesto, apontava a lixeira. “Ainda não foi dessa vez”. Esse rito datava de muitos anos.

O primeiro número em que apostava era o 6. Para Florisvaldo, seis eram os membros da casa paterna, ou seja, Mario Manga, o pai; D. Isadora, a mãe; Maria Odete, a irmã mais velha; Eustáquio Neto, que vinha logo depois dele; e Nelma, a caçula, uma aclamada atriz da Rede Globo, conhecida nacionalmente. O 6 também significava a metade de uma dúzia, uma medida padrão que muito o agradava. Por fim, o 6 correspondia à soma de todos os algarismos de seu telefone Samsung, se aplicados a eles a regra de excluir os noves. Isso dito, era uma forma consistente de gabaritar sua aposta, e lhe imprimia um começo seguro para fazer um jogo vencedor e personalizado. Em homenagem ao 6, pensava em honrá-lo com uma viagem aos 6 países de que mais gostava quando ficasse milionário. Estes seriam a França, Itália, Japão, Turquia, Hungria e Austrália. É claro que só se lançaria para o périplo idílico depois de check up, para viajar tranquilo e poder se deliciar com vinhos e saquês nobres, de acordo com o destino. 

Naquela semana de agosto, Florisvaldo Manga não estava em nenhum de seus destinos favoritos, mas se encontrava sim num congresso em Lisboa, cidade onde reinava uma canícula que, logo na chegada, lhe parecera insuportável, mas que foi amainando com o curso dos dias. Na verdade, tratava-se de um encontro promovido por um famoso laboratório multinacional que tentava promover um medicamento que se provara eficaz em testes clínicos contra a Esclerose Lateral Amiotrófica, enfermidade fatal de que padeciam alguns de seus pacientes. Ao que os indícios indicavam, era grande a chance de se conseguir estacionar a doença num patamar razoável, que permitiria sobrevida digna. Ali eles eram não mais de uma centena de renomados neurologistas e a programação incluía jantar em Estoril e amplo leque de entretenimento para as companheiras e companheiros dos participantes. No caso dele, levou a fonoaudióloga Mara Ferrão, com quem vivia já há alguns anos, depois da separação da mãe de seus dois filhos.

O segundo número era o simpático 25. Ainda que nenhuma outra razão existisse, ele correspondia ao vigésimo-quinto andar em que morava, diante da paisagem deslumbrante da lagoa Rodrigo de Freitas. Embora não tivesse mais o costume de passear de bicicleta por ali, mais especificamente desde quando foi assassinado seu melhor amigo, o também médico Jaime Gold, era bom saber que a opção continuava aberta tanto para Mara quanto para seu enteado, e que dali podia chegar facilmente ao consultório, no vizinho bairro de Ipanema, e também se deslocar pelos túneis em direção à estrada que o levava para o refúgio de Petrópolis, onde tinha uma casa em simpático condomínio de cuja sede avistava o Dedo de Deus, na serra dos Órgãos. Por fim, era no vigésimo-quinto andar que recebia uma vez ao ano a confraria de amigos do uísque que integrava há mais de uma década, em que se promoviam degustações de blends os mais nobres. A predileção pelos vinhos vinha, contudo, se acentuando.  

Para ser 100% honesto consigo mesmo, Dr. Florisvaldo não estava particularmente animado com as evoluções apontadas para a cura da variante bulbar da ELA, pois tudo aquilo ele já vinha ouvindo desde o começo da década nos Estados Unidos e constava de publicações especializadas. O bom é que a troca de experiência com colegas mais antigos e algumas faces novas – especialmente os cientistas da África do Sul, Índia e Sudeste da Ásia, muito voltados para os avanços da biotecnologia -, lhe permitiria amplo leque de consultas. Todos aqueles profissionais estavam determinados a monitorar e publicar o que quer de relevante que se registrasse no combate àquela enfermidade que encapsulava o  paciente numa redoma tão terrível quanto cruel. Isso porque lhe preservava a lucidez, mas o corpo não reagia a estímulos, e sequer engolir conseguiam, a partir de certo estágio. Em alguns casos, apenas as pupilas se movimentavam, o que infringia rematada provação a quem a vivia e a quem testemunhava.

O terceiro número que costumava cravar na hora de fazer a tradicional fezinha, era o 27. Parecia-lhe esperto ter duas casas quase vizinhas preenchidas. Como normalmente as pessoas procuram ocupar o volante contemplando um número de cada casa decimal, aquela aposta lhe parecia um desses detalhes que fazem a diferença e que o aproximavam da glória máxima que seria, evidentemente, a de ganhar só. Não que essa condição estivesse a seu alcance determinar. Ou que ele fosse recusar uma bolada milionária caso ela tivesse que ser compartilhada entre um ou mais ganhadores. Mas o ganhar só para ele estava ligado ao velho Mario Manga, o falecido pai, que associava o prazer a uma espécie de benção individualizada, indivisível e inequívoca. É claro que pretendia manter o mais estrito sigilo no dia que a fortuna lhe batesse à porta e tinha um pacto simpático com Neco Borborema de que este faria jus a cem mil reais para manter a boca fechada sobre a identidade do ganhador, no caso de este vir a ser ele.

Dr. Florisvaldo Manga, 60 anos, não conseguiu disfarçar o frêmito de que foi tomado quando encontrou na área da piscina do hotel Pestana a lindíssima Dra. Maite Katz, uma argentina com quem tivera um envolvimento por ocasião de um grande congresso na Jamaica. Na oportunidade, ele estava só e ela idem, e não se intimidaram em circular juntos pelas áreas sociais do resort alegre. No último dia, saíram de Ocho Rios e foram se refugiar em Negril, onde tomaram banho de mar nus e fumaram um baseado abençoado, que lhes trouxe um nativo de tranças rastafári e sorriso permanente. Na volta, já escuro, resolveram se refrescar de novo nas imediações da casa do roqueiro Mick Jagger que, excepcionalmente, estava na propriedade. Embalados por uma festa discreta, convidados tomavam drinques num terraço iluminado por balões de hélio. Florisvaldo, ou Flori, como Maite preferia, ali mesmo combinou com ela que deveriam se ver com mais frequência. Na percepção dele, haveria até espaço para o amor de verdade.

O quarto número era aquele que dava uma indicação clara de suas preferências pelas cifras que eram múltiplas de 5. Assim sendo, a despeito de já ter jogado o 25, lhe parecia sensato que, na casa dos 30, cravasse o 35. Por que não? De mais, a soma dos dois perfaz o número 8, muito associado na Cabala ao dinheiro, segundo lhe dissera a própria Mayte, muito versada em esoterismo, a se crer no que deixava prenunciar sua eclética formação. Afinal, argentinos gostam de ocultismo e afins. O 35 estava também presente por duas vezes na sequência de números do telefone fixo de Petrópolis, um aliado importante, já que até recentemente as comunicações por celular a partir da Serra, sempre tinham sido problemáticas. Cercando-se de números que digam respeito a seus hábitos mais arraigados e preferências, Florisvaldo sentia que personalizava ao máximo o próprio caminho para o triunfo, e certos aspectos dessa estranha numerologia se faziam presentes em outros domínios de sua vida. 

A verdade é que nunca voltaram a se encontrar desde então. Primeiro porque Mayte vivia um casamento bastante pleno. Se, aparentemente, não se queixara do deslize, tampouco queria abrir uma brecha na vida afetiva que lhe custasse uma união sólida com o marido, com quem tinha dois filhos agora adultos. Segundo, porque amante por amante, teria opções mais à mão em Buenos Aires. Em terceiro lugar, porque as coisas, por sublimes que sejam, precisam ser contextualizadas com serenidade para que não respinguem nem comprometam o desenvolvimento intelectual. Dra. Mayte achava que fazer ciência exigia uma ecologia de vida asséptica e sem ruídos, sob pena de se lhe esmorecerem as forças. Dr. Florisvaldo ficou deveras frustrado ao procurá-la por duas oportunidades na Argentina, a última delas há pelo menos três anos, e tudo o que conseguiu foi uma resposta monossilábica, quase mal humorada. Será que a Mayte da alegria e da luxúria só vinha à tona com maconha jamaicana?

O quinto número era o 45, integrante cativo de todas as suas credenciais, e presente duplamente na placa de seu carro Toyota. Ora, por que 45? Não apenas atendia o postulado de ser múltiplo de 5, mas assinalava, sobretudo, o ano em que a Segunda Guerra Mundial terminou. Apesar de que os eventos atômicos mais trágicos tivessem se abatido sobre o Japão neste ano, ele sempre os vira como uma espécie de purgação extrema, ao cabo da qual, ressalvada a desumanidade do bombardeio ignóbil, o capítulo negro chegava ao fim e tudo dali em diante apontava para o progresso e a refundação do mundo. A reforçar o argumento, a soma dos dois algarismos do 45 resultava em zero – consoante a regra dos 9 fora -, fato que reforçava sua convicção de que o recomeço lhe está na raiz, numa espécie de DNA visível apenas para iniciados. Por fim, o 45 enfatiza o destemor de ser flagrado no contrapé do destino e de ser refém de repetições inverossímeis. Gostava do final 5 e isso lhe bastava. 

Mayte tratou-o muito bem e contemplou Mara Ferrão, sua companheira, com dois beijinhos. Virando-se para o marido, disse que ela e Florisvaldo eram muito amigos desde a Jamaica e que acompanhava avidamente os papers que ele publicava periodicamente sobre a especialidade de ambos. Pareceu-lhe estranho e imprudente que ela fizesse referência ao Caribe da forma como fez. Mesmo porque lhe parecia que ao dar publicidade a um fato que lhe era caro, ela o banalizava e dessacralizava-o, servindo-o de bandeja para quem quisesse saber. Um leve ricto na boca levou-o por um momento a pensar que ela não estava muito bem de saúde e, efetivamente, iria ter a confirmação do fato até o fim dos trabalhos da boca de um colega de Rosário. Na noite do dia 08 de agosto, foram ao restaurante “Tasca da Esquina”, que não lhe pareceu à altura de uma filial que conheceu em São Paulo. E, voltando ao hotel para aquela última noite em Portugal, acendeu um charuto na pérgola, prometendo a Mara que logo subiria.

Ora, ora, ora. Se ele gosta do 5 a ponto de cravar sistematicamente em seus múltiplos, por que não colocá-los um ao lado do outro, formando a simpática dupla 55? Além do mais, ele tinha 55 anos em 2013, quando viveu seus melhores momentos profissionais e pessoais. Foi o ano em que Mara veio em definitivo viver com ele e assinalou também a formatura de seus gêmeos. Paula em medicina, como o pai, só que com especialidade em pediatria; e Bruno em Ciências da Computação, disciplina que ele até hoje não sabe direito em que consiste, mas que já valera ao filho um tentador posto de trabalho na Califórnia, que ele agarrou com todo o empenho e entusiasmo. Aos 55 anos, embora tenha perdido o pai na ocasião, pode organizar a vida da mãe de forma a lhe proporcionar viagens com amigas e todas aquelas pequenas alegrias que o velho Mario coibia a seu modo, fazendo com que ela se sentisse culpada por estar feliz. Se há um número que não podia faltar a seu jogo, este era portanto o 55. 

A manhã da quinta-feira, 9 de agosto, estava resplandescente em Lisboa. Para não variar, Portugal seguia às voltas com sua rotina estival de incêndios florestais, mas eles não chegavam a perturbar a rotina da capital. Com o fim dos trabalhos na parte da tarde, e boletins televisados anunciando que a temperatura subiria no fim de semana, Florisvaldo se regozijou que naquela tarde mesmo eles estivessem voando para casa. Chegaria ao Rio de Janeiro ainda a tempo de trabalhar um pouco na sexta-feira, 10 de agosto, e subiria a Serra com os cachorros na manhã do sábado para aproveitar o restinho de inverno que ainda reinava por lá. No saguão do hotel Pestana, abriu um portal para ver as notícias do Brasil e, como costumava fazer, só por desencargo de consciência, foi até a notinha que falava de um único bilhete ganhador do último sorteio, feito na véspera. Saíra para São Paulo. Mas o coração de Florisvaldo Manga disparou e bateu forte como um tambor quando ele viu os números ganhadores: 6, 25, 27, 35, 45 e 55.

Por fim, Florisvaldo preservava sempre um número que correspondesse à sua idade do momento. Era o sétimo, este totalmente opcional, já que a Mega-Sena funciona à base de seis dezenas. Mas ora, um sétimo número lhe deixaria em paz com a consciência e só custava R$21,00 a mais. Já pensou se algum dos anteriores falhasse e ele perdesse o prêmio justamente por não ter colocado a idade? Tendo completado 60 anos em abril de 2018, Florisvaldo vinha consagrando a idade nos volantes e Neco Borborema fora informado a respeito. “Eu sou capaz de jurar que o Senhor ainda vai ganhar, Dr. Florisvaldo. A gente percebe”.  E então complementava: “Eu vou embolsar aquele troco conforme o prometido e vou viver na minha Campina Grande porque estou cansando disso tudo”. O médico ria: “Que nada, Neco. Você não aguentaria de saudades daqui, rapaz. O Rio é o Rio”. Neco não ia bem de saúde. Florisvaldo já o encaminhara a um colega que alegara que tinha uma séria insuficiência cardíaca. “Não esqueça seus remédios, hein”.   

No mesmo instante, ainda hiperventilando, Dr. Florisvaldo telefonou para a lotérica cujo número achou facilmente. Precisava apurar o que se passara. Não será que havia um erro na divulgação do domicílio da casa lotérica? Como poderiam dizer que era São Paulo, se sua aposta tinha sido feita no Rio de Janeiro? O que o bom Neco tinha a dizer daqueles R$ 35 milhões de prêmio? “Você tinha razão, um dia eu ganharia. Foram 15 anos apostando nos mesmos números. Quando chegar aí, preparo seu cheque”, sonhava em dizer. Foi ao segundo toque que alguém atendeu na Lotérica Borborema, a algumas quadras do Country Club. “Quero falar com urgência com o Neco, por favor. Se ele não estiver, me dê o celular dele”. Desolado, ouviu o que vinha temendo há um minuto: “Seu Neco morreu na terça-feira, doutor. Passou mal e ainda foi levado em vida para o hospital, mas não aguentou. O enterro foi ontem”. Passado, Florisvaldo Manga não pode deixar de pensar que pelo menos R$17,5 tinham se evaporado de suas mãos. Teria dividido o prêmio com prazer. Isso era hora, Neco?