Para Gerson, Isaías e Poli

Era um compromisso. Todo sábado às 11 horas. Izinho, Poli, Gerson e eu não faltávamos. Às vezes Fred aparecia. O Mercado da Boa Vista significava encontro com os amigos, prazeres da mesa, troca de ideias, local de contemplação de árvores frondosas.

Duas árvores. Mangueira e jambeiro, a sombra tornava o ambiente ameno, propício para uma cerveja gelada, para papos prolongados. Barraca de Seu Inácio. Cajás, cajus, acerolas, abacaxis. Frutas perfeitas para uma lapada. Ao alcance da mão, no meio do pátio. Conversas com o velho barraqueiro. Sempre carregávamos uma sacola das frutas da época para casa.  Selecionadas, vistosas.

O mais antigo barraqueiro. Desde o início do mercado, em fins do século XIX, a família tem um box. Vende quinquilharias e artesanatos. Enfeitava a frente do estabelecimento com plantas ornamentais e flores. Parávamos para elogiar, e um dedo de prosa.

O bar do amigo Roberto. A felicidade se estampava no rosto. Sempre que chegávamos era só afeto. O garçom Geraldo. Era nosso cúmplice. Avisava se algo não seria de agrado geral. Trazia seus dramas para a conversa. Tínhamos carinho e apreço por figura humana tão sofrida, mas tão esperançosa de tudo melhorar no dia seguinte. Dia que nunca chegava.

Patinho com feijão preto, cupim guisado, chambaril, galinha de cabidela, bodinho guisado, tudo muito gorduroso. Mas era o que queríamos. Às vezes Isaías nos convencia a comer arrumadinho, ou Poli, peixe frito, uma concessão que fazíamos para não desagradar os amigos. Bom mesmo era a carne gorda e o óleo de três dias na frigideira.

Não havia limite na bebida. A semana toda em abstinência era descontada. Cerveja gelada ou rum com coca cola. Motivo para muita conversa, muita confraternização, muitos brindes. Tudo era motivo para mais um gole, mais um copo.

Resolvíamos o mundo. Da economia às artes, tínhamos alternativas políticas e certezas firmadas. Se nos escutassem, o planeta estaria salvo. Um pouco de mentira, para dar mais dramaticidade aos argumentos. Mas mentiras críveis, se não o pragmatismo policarpiano seria cruel em apontar nossas contradições.

A última cerveja. Aproxima-se das 13 horas. Hora de fecharmos os serviços, pois a juventude ia se apossando de nossos espaços. Hora de renovarmos os compromissos de não faltar no sábado seguinte.

Chega a Pandemia e anunciam uma reforma no local. Tudo iria mudar. Jovens arquitetos planejavam essa mudança. Sem consultar os velhos, sem saber o que estes desejariam. O espaço é anunciado, não como mercado, mas como praça de alimentação. Infelizmente é isso mesmo. As barracas de suprimento de comestíveis diminuíram, assim como as de quinquilharias. Voltamos este sábado para conferir.

Uma tristeza imensa. Quase não se veem as árvores. Um mar de guarda- sóis brancos cobre o espaço. Quiseram dar um ambiente de Ipanema em verão escaldante. Uma mesa apinhada à outra. Cadeiras desconfortáveis de madeira em ripas, que incomodam os glúteos. Seu Inácio foi retirado. As plantas de Antônio são proibidas, atrapalham a circulação. Os bares mudaram de donos, apenas jovens, que atendendo às demandas do mercado, modernizaram os cardápios, retiraram os pratos com sustança. Os velhos, alcoólatras convictos, que frequentavam o final das manhãs, desapareceram. 

Meio dia, o espaço enche. Por todos os lados chegam pessoas. Aos gritos, procuram mesas. Fim de expediente, hora de relaxar. Cada um falando mais alto. As mesas ao lado não têm separação. As conversas se cruzam. Os atendentes correm em espaços estreitos, sem saber exatamente quem será o privilegiado de receber o pedido primeiro, o impessoal toma conta do espaço.

Falta o guisadinho de Dona Maria, o pratinho especial dos velhos donos de bares, os frios do box em frente. A época de Guri desapareceu, ele e as sextas-feiras à tarde, em que ninguém faltava ao expediente do Bar Escritório. Mas pelo menos uma coisa mantiveram. Leléu continua com sua cerveja quente e sua cachaça para endoidar. E, nos disseram, no domingo com sua música estridente, que faz doer os ouvidos.

Saudosismo existe para ser curtido. Com certeza, as mudanças atenderam à lógica de mercado, os novos frequentadores deveriam desejar isso. Eu, particularmente, odeio essa nova lógica.