Incrivelmente prol?fico, o carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) era um personagem exuberante, tendo alcan?ado o status de maior compositor na m?sica cl?ssica brasileira. Fez um profundo estudo da nossa musicalidade folcl?rica, que assimilou num estilo musical ecl?tico. Esse conhecimento veio a constituir a base das reformas radicais no sistema de educa??o musical sob o governo nacionalista dos anos 1930.
As influ?ncias de Villa-Lobos foram t?o diversas quanto seu pr?prio estilo musical. Jovem, tocou em caf?s, rodou o Brasil coletando m?sica e estudou em Paris. Para um compositor que compunha com tanta facilidade e flu?ncia, a qualidade de sua produ??o impressiona. Raramente visto sem um charuto e um sorriso, Villa-Lobos era conhecido por seu car?ter expansivo e pela apaixonada defesa da m?sica brasileira, ?rea em que teve grande impacto como educador.
As primeiras composi??es de Villa, como ? carinhosamente chamado, trazem a marca dos estilos europeus da virada do s?culo XIX para o s?culo XX, sendo influenciado principalmente por Richard Wagner (1813-1883) e Giacomo Puccini (1885-1924), pelo modernismo da Escola de Frankfurt e logo depois pelos impressionistas. Nas suas ?Dan?as? caracter?sticas africanas (1914), entretanto, come?ou a repudiar os moldes europeus e a descobrir uma linguagem pr?pria, que viria a se firmar nos bailados ?Amazonas? e ?Uirapuru? (1917). O compositor chega ? d?cada de 1920 perfeitamente senhor de seus recursos art?sticos, revelados em obras como ?A Prole do Beb?? para piano, ou o ?Noneto? (1923).
Violentamente atacado pela cr?tica especializada da ?poca, viajou para a Europa em 1923 com o apoio do mecenas Carlos Guinle (1883-1969) e, em Paris, tomou contato com toda a vanguarda musical da ?poca. Depois de uma segunda perman?ncia na capital francesa (1927-1930), voltou ao Brasil a tempo de engajar-se nas novas realidades produzidas pela Revolu??o de 1930.
Apoiado pelo Estado Novo, Villa-Lobos desenvolveu amplo projeto educacional, em que teve papel de destaque o ?Canto Orfe?nico?, e que resultou na compila??o do ?Guia Pr?tico? (temas populares harmonizados). O compositor preocupava-se muito com os rumos da educa??o musical nas escolas brasileiras e, quando foi aprovado seu projeto de educa??o na ?rea, voltou a morar definitivamente no Brasil.
? aud?cia criativa dos anos 1920, que produziram as ?Serestas?, os ?Choros?, os ?Estudos? para viol?o e as ?Cirandas? para piano, seguiu-se um per?odo ?neobarroco?, cujo carro-chefe foi as ?Bachianas Brasileiras? (1930-1945), para diversas forma??es instrumentais.
As ?Bachianas Brasileiras? s?o uma s?rie de nove composi??es escrita em 1922. Nesse conjunto, Villa-Lobos fundiu material folcl?rico brasileiro (em especial a m?sica caipira) ?s formas pr?-cl?ssicas no estilo de Johann Sebastian Bach (1685-1750), intencionando construir uma vers?o brasileira dos magn?ficos Concertos de Brandemburgo do mestre alem?o. Esta homenagem a Bach tamb?m foi feita por compositores contempor?neos como o russo Igor Stravinsky (1882-1971). Todos os movimentos das ?Bachianas?, inclusive, receberam dois t?tulos: um bachiano, outro brasileiro.
As ?Bachianas n? 5? talvez sejam sua obra mais conhecida. Villa-Lobos era ex?mio ao violoncelo, e foi seguramente sua afinidade com o instrumento que lhe permitiu criar um amplo leque de texturas e sonoridades a partir da inusitada forma??o de oito violoncelos e soprano solista. A obra se divide em duas se??es:
?RIA [CANTILENA] ? Come?a com um pizzicato na linha de baixo acompanhando um delicado contraponto. A soprano entra com um vocalise sem palavras, influ?ncia do russo Sergei Vasilievich Rachmaninoff (1873-1943), ofuscado por um dos violoncelos, entoando uma linha vocal de t?pico sabor brasileiro. A se??o central ? sobre um poema de Ruth Valadares Correia, um apaixonado hino ? lua. O material de abertura ent?o retorna, com a soprano agora sussurrando a melodia:
https://www.youtube.com/watch?v=o-EZJFfMRSA
Aqui est? o poema cantado pela soprano:
Tarde uma nuvem r?sea lenta e transparente.
Sobre o espa?o, sonhadora e bela!
Surge no infinito a lua docemente,
Enfeitando a tarde, qual meiga donzela
Que se apresta e a linda sonhadoramente,
Em anseios d’alma para ficar bela
Grita ao c?u e a terra toda a Natureza!
Cala a passarada aos seus tristes queixumes
E reflete o mar toda a sua riqueza…
Suave a luz da lua desperta agora
A cruel saudade que ri e chora!
Tarde uma nuvem r?sea lenta e transparente
Sobre o espa?o, sonhadora e bela!
Ruth Valadares tamb?m foi a cantora deste movimento durante a sua estr?ia em 1939, sob a reg?ncia do pr?prio Villa-Lobos.
DAN?A [MARTELO] ? O segundo movimento ? uma dan?a animada. A soprano canta um poema do recifense Manuel Bandeira (1886-1968) que descreve o uirapuru e tem de dar conta rapidamente de palavras repetidas e pausas s?bitas. Aqui, tanto quanto a se??o anterior, cantar em l?ngua portuguesa na m?sica cl?ssica se mostra um desafio extremo…
Eis o texto de Bandeira:
Irer?, meu passarinho
Do sert?o do cariri,
Irer?, meu companheiro,
Cad? viola?
Cad? meu bem?
Cad? Maria?
Ai triste sorte a do violeiro cantad?!
Sem a viola em que cantava o seu am?,
Seu assobio ? tua flauta de irer?:
Que tua flauta do sert?o quando assobia,
A gente sofre sem quer?!
Teu canto chega l? do fundo do sert?o
Como uma brisa amolecendo o cora??o.
Irer?, solta teu canto!
Canta mais! Canta mais!
Pra alembr? o cariri!
Canta, cambaxirra!
Canta, juriti!
Canta, irer?!
Canta, canta, sofr?!
Patativa! Bem-te-vi!
Maria-acorda-que-?-dia!
Cantem, todos voc?s,
Passarinhos do sert?o!
Bem-te-vi!
Eh sabi?!
L?! Li?! li?! li?! li?! li?!
Eh sabi? da mata cantad?!
L?! Li?! li?! li?!
L?! Li?! li?! li?! li?! li?!
Eh sabi? da mata sofred?!
O vosso canto vem do fundo do sert?o
Como uma brisa amolecendo o cora??o.
Competindo em popularidade com as ?Bachianas n? 5? est? ?O Trenzinho do Caipira?, movimento final das ?Bachianas n? 2? (1938), para orquestra, inspirada nas viagens de trem que o compositor fez em 1931 para a difus?o da m?sica de concerto pelo interior do Estado de S?o Paulo:
Villa-Lobos tamb?m escreveu trilhas sonoras para o cinema. A primeira, para o filme ?O Descobrimento do Brasil? (1937), de Humberto Mauro (1897-1983), acabou resultando na composi??o de quatro su?tes orquestrais. A segunda foi a trilha sonora do filme ?A Flor que n?o Morreu?, de Mel Ferrer (1917-2008), protagonizado pela bela Audrey Hepburn (1929-1993). O compositor polon?s Bronislau Kaper (1902-1983), que mexeu bastante na partitura, dividiu os cr?ditos da m?sica que foi ?s telas. Descontente, Villa-Lobos acabou compondo ?A Floresta do Amazonas?, para soprano, coro masculino e orquestra, para restaurar suas inten??es originais.
Reconhecido por ter sido o principal respons?vel pela descoberta de uma linguagem peculiarmente brasileira em m?sica, Villa-Lobos ? considerado o maior expoente da m?sica do modernismo, compondo obras que cont?m nuances das culturas regionais brasileiras, com os elementos das can??es populares e ind?genas. No Brasil, sua data de nascimento ? celebrada como Dia Nacional da M?sica Cl?ssica, a partir de decreto assinado pelo ex-presidente Luiz In?cio Lula da Silva em 13 de janeiro de 2009.
Não gosto de superlativos. Não gosto de hipérboles na linguagem. Mas o que dizer, sem usá-los, desse artigo de Frederico Toscano? Lindo e no momento certo, sobre uma maravilha bem brasileira que é também excelência internacional. Bom lembrar e ouvir, nestes meses de desânimo na vida nacional.
Diferente de Helga, Frederico, tenho uma vocação para a hipérbole, defeito muitas vezes apontado em mim por minha filha e minha mulher!
(Por isso nunca um texto meu é sua primeira versão…)
E um dos problemas dos hiperbólicos é que eles terminam gastando superlativos à toa…
Quando é necessário realmente empregá-los, como agora, ficam praticamente sem ter o que dizer.
A música de Villa-Lobos é superlativa; e seus escritos sobre música, todos eles, são magníficos.
Obrigado por mais esse.
Luciano Oliveira
Caros Helga e Luciano,
Muito obrigado pela receptividade ao artigo sobre o nosso querido Villa! O Hoffmann de Helga talvez explique a relação dela com superlativos, assim como o Oliveira de Luciano e o meu Toscano estejam associados à nossa queda por eles… Curiosamente, assim como o colega, também me policio para não publicar nada no primeiro momento – sigo o conselho de uma professora de metodologia que tive no doutorado e respeito o “repouso do artigo” por um tempo antes de revisá-lo. Isso me faz depurar o texto de meus excessos hiperbólicos, como bem disse Luciano. Sou solidário a Helga sobre o desânimo pelo momento nacional que vivemos. Trazer uma joia tão genuína da nossa cultura é um convite a renovarmos nossas esperanças.
Abraços com minha admiração!